sábado, 29 de julho de 2017

Ritual de agachar-se. Afinal, para que serve, qual o seu valor?

As artes marciais asiáticas, em especial as chinesas, coreanas e japonesas, estão cheias de "rituais". Desde modos de cumprimentar, dirigir-se aos colegas, professores e mestres, até as atitudes e gestos protocolares diante do espaço de treino, há muitas formalidades em um "dojo". Afinal, quais os sentidos destes ritos para o praticante de caminhos marciais no ocidente moderno?

Há alguns anos, eu pratico Kung Fu e Tai Chi em horários intercalados na academia. No Kung Fu, temos o hábito de começar e terminar cada treino em "postura de meditação". Certa vez, minha professora de Tai Chi fez um comentário: achava muito engraçada aquela nossa "meditação fast food", que não durava "nem uns 10 segundos". Rimos juntos, pois, de fato, como meditação, a postura não valia muita coisa. Qualquer qigong que praticávamos na aula de Tai Chi era muito mais meditativo do que aquela "posição de meditação". Desde então, eu fico intrigado com a presença da postura em nossos treinos de Kung Fu. Ela foi introduzida pelo mestre na sua antiga academia, a Wushukuan, e nunca mais deixou de figurar nas aulas de seus alunos e ex-alunos, como no caso do meu professor.

Desde cedo, somos instruídos a entender aquele gesto como um meio de, no início, fechar-se para o mundo exterior, abrindo-se para o treino, e, no final, como meio de concentrar no que foi aprendido. Mas o fato é que não dá nem tempo para tudo isso. Mal nos acomodamos na postura e já está na hora de cumprimentar e levantar. É uma postura agachada, semelhante ao kiza (跪座) das artes japonesas, que, em Chinês, poderia ser pronunciado como guizuo.

Fig. 01: posturas de seiza e kiza em artes japonesas.

A utilização do kiza como postura meditativa, em si, é estranha. Normalmente, trata-se de uma postura de transição para o seiza (正座, zhengzuo, em Mandarim), ela sim bastante utilizada em meditação zen-budista.

Fig. 02: exemplos de posturas de meditação em diversas tradições asiáticas. Entre elas, o seiza, típico do Budismo Zen japonês.
A diferença básica entre o seiza e o kiza é a postura dos pés. Em seiza, é o peito do pé que encosta no solo. Em kiza, quem encosta no solo é o metatarso. Para alguém levantar-se de seiza precisa transitar para kiza e esta transição é que justifica a sua existência. Note-se que seiza ou zhengzuo significa, literalmente, "forma correta de sentar-se". Correto (正), no caso, não se trata apenas de uma questão anatômica, mas também moral. Pode-se dizer que não é somente a maneira correta de sentar-se, mas igualmente a maneira do homem correto assentar-se. No Confucionismo, busca-se, com o ritual, a obtenção do efeito visual externo de um princípio moral devidamente internalizado. O gesto do homem cultivado é sempre, portanto, a expressão do seu coração. Por isso, a importância de assentar-se corretamente.

A postura de 正座 é muito antiga. Ela pode ser observada em imagens artísticas de séculos atrás. Um dos temas iconográficos em que mais aparece é tipicamente confucionista: o do "amor filial" (xiao, ).

Fig. 03: Exemplo de iconografia que representa o "amor filial".

No Confucionismo, a base da vida social nasce do "amor filial", que progride na direção do "amor aos mais velhos" e do "amor a todos". Este "amor" ou "respeito" relaciona-se à consciência de pertencimento à tradição (da família). É por meio do laço parental que o sujeito se reconhece como parte de algo muito maior e muito mais duradouro. Por meio deste coletivo, ele aprende os valores e cultiva a sua benevolência natural, conhece a cultura e a literatura, enfim, se faz homem. Sua maior expressão é o culto à ancestralidade, o compromisso que cada um deve fazer de preservar a essência da sua linhagem e a honra da sua casa.

Não é preciso ter muita familiaridade com os ambientes de artes marciais tradicionais, sejam elas coreanas, japonesas ou chinesas, para saber do peso que a ancestralidade tem para os seus adeptos. Em muitos casos, no ocidente, ela tende até mesmo a ser afetada, estereotipada, transformada em fetiche e dogma; mas, seja como for, ela é importante como amalgama dos grupos que se reúnem em torno de um mestre, um sensei, uma associação, uma academia... Se é assim, faz total sentido a preservação de gestos de reverência e respeito a partir das posturas de seiza e de suas variantes, como o kiza. Chamada de "postura de meditação", não necessariamente ela serve a este propósito. Muitas vezes, ela é uma postura ritual.

Como um exemplo de ritual nas artes marciais que parte da postura de seiza, é muito paradigmática, no Karatê Shotokan, a saudação inicial e final das aulas. Protocolarmente (como no vídeo abaixo), começa-se com a recitação do Dojo Kun, uma lista de compromissos éticos do praticante do karatê. Em seguida, o sensei, seguindo procedimento típico também do Judo, volta-se à imagem do mestre (ou simplesmente para as costas do sensei) e se faz uma saudação, o Shomen (正面) Ni Rei; depois, voltando-se para a turma a saúda e é por ela saudada com as palavras de Sensei (先生) Ni Rei. No caso do vídeo abaixo, acrescenta-se o Senpai (先辈) Ni Rei, quando os próprios alunos voltam-se uns para os outros, saudando-se fraternalmente.

Vídeo 1: Dojo Kun em uma aula/curso de Karatê.


Shomen, Sensei e Senpai são, todas, formas de tratamento respeitoso, ordenadas hierarquicamente do mais importante (e mais antigo), o mestre fundador, àqueles que estão no mesmo patamar dos praticantes ou em um patamar mais próximo: os "irmãos mais velhos", os alunos com mais tempo de prática ou maior graduação. Entre eles, está o sensei, o professor, que faz a mediação entre o passado da arte (de onde a aprendeu) e o seu futuro (aqueles a quem a ensina). Agachar-se é, neste caso, um gesto de humildade e respeito, por meio do qual todos tacitamente se reconhecem como parte de algo muito maior. Trata-se de um compromisso com a continuidade da prática e de seus valores, uma forma de lidar com o tempo e com a dialética da permanência e da impermanência. É similar ao culto da ancestralidade, do respeito funerário e de valorização do legado. Ao mesmo tempo, é um compromisso com as novas gerações, um colocar-se em serviço delas, com humildade e respeito também.

Honrar (a ancestralidade) e servir (ao senhor) são dois valores centrais do Bushido, o antigo código de conduta dos samurais japoneses, desenvolvido por volta do século IX da nossa era cristã, fortalecido no século XVII e cultuado até o século XIX, quando há o declínio do xogunato (Tokugawa). Não por acaso, a postura de seiza é das mais comuns na representação dos samurais. Ela indica e sintetiza estes valores, identificando o status da pessoa representada.

Fig. 04: Nakaoka Shintarō (1838-1867), samurai japonês do final do período Tokugawa,
representado na postura tradicional de seiza.
Fig. 05: Sensei Morihei Ueshiba (1883-1969), nascido no Japão já na Era Meiji,
fundador do Aikido, representado na postura tradicional de seiza.


O Budo apropriou-se tanto dos valores quanto dos gestos associados à antiga classe guerreira do "Japão feudal". Não por acaso, artes como o JudoKendo e o Aikido possuem tantas técnicas que partem da postura seiza e de suas variações, quando não, métodos completos de luta nessas condições. Em Kendo, por exemplo, os combates iniciam e terminam em posição de respeito denominada sonkyo (蹲踞), dunju, em mandarim, postura também bastante típica no Sumo. Não se trata de uma variação de seiza, mas também é uma postura agachada, intermediária entre o totalmente assentado do seiza e o totalmente de pé.

Fig. 06: praticantes de Kendo alinhados em sonkyo para o início de combate.


Uma das artes mais importantes do kendo é a de desembainhar a espada. Há inúmeras técnicas que envolvem-na e, geralmente, elas também são técnicas de elevação do corpo desde uma postura de repouso em seiza, kiza ou sonkyo para ficar em pé. O vídeo abaixo, em seus primeiros minutos, está recheado de exemplos.

Vídeo 2: Sensei Haga Junichi, demonstração de técnicas de Kendo por volta de 1957.


No Aikido, o mais belo exemplo é o suwari waza (座り技). Mal compreendido, algumas pessoas podem questionar a eficiência de suas técnicas em circunstâncias atuais de autodefesa. No entanto, além de ter um sentido muito preciso de treinamento para o Aikido, reduzindo consideravelmente as possibilidade de compensar falta de técnica com força bruta, o suwari waza faz todo sentido quando se pensa em hábitos mais recorrentes de posturas agachadas em sociedades como a japonesa durante o xogunato. É uma luta entre "cavalheiros", acostumados a se sentarem como tais.

Vídeo 3: Sensei Shirakawa Ryuji, demonstração recente de técnicas de suwari waza.


E não é só nas artes marciais que a postura agachada, especialmente de seiza, é utilizada no Japão, na China ou na Coréia. Ela está presente em quase todos os rituais cotidianos mais tradicionais, tais como as cerimônias do chá, por exemplo. Também é utilizada em outras artes, tais como a caligrafia e a Ikebana, inclusive por mulheres, pois a postura não é exclusivamente masculina.

Fig. 07: mulher, em trajes japoneses tradicionais, prepara Ikebana em postura de seiza.


A pura repetição irrefletida de posturas não ajuda a desenvolver nem técnica nem eticamente um sujeito que busque praticar artes marciais como um "caminho". Elas precisam ser compreendidas em seus sentidos tradicionais e repensadas conforme as circunstâncias do presente. Assim, retomo o uso do kiza  (guizuo) ou da "posição de meditação" em nosso sistema de guoshu. Seu uso atual não é nem a meditação propriamente dita nem a reverência cerimonial a que está convencionalmente associada. É, na verdade, uma combinação suavizada ou "liquefeita" de ambas. A postura cumpre o seu papel, que é organizar as atitudes dos alunos no Daochang. Ela busca ensinar que, ali dentro, deve-se adotar um comportamento de serenidade, humildade, respeito, seriedade e concentração; virtudes que se esperam no conjunto da vida de cada um daqueles sujeitos e não só durante os treinos. Ela também hierarquiza o grupo, sem perder de vista que, diante da turma, professores e instrutores também agacham-se com humildade e reverência. Ela resguarda uma atitude "filial" imprescindível para a prática do caminho marcial como memória e sentido de pertença. Mas, para meditar "mesmo", não passa de fast food...

sábado, 15 de julho de 2017

Quem somos!


No mundo das artes marciais, especialmente das artes marciais chinesas, ter credibilidade, normalmente, passa pelo conhecimento e reconhecimento da comunidade marcial de quem você seja e, mais particularmente, da sua proveniência. Não faça parte de algo tido como "puro", "legítimo" ou "antigo" e, fatalmente, será tratado, em algum momento, como "bastardo", "vira-lata", "embusteiro", praticante de alguma forma de "finjutsu" (termo pejorativo utilizado nestes meios para se referir a escolas ou estilos inventados por praticantes sem conhecimento algum ou com vernizes de algo superficialmente aprendido aqui ou acolá). Se este critério de procedência é positivo por ajudar a perceber os evidentes embustes que, de fato, existem neste universo, por outro lado, a obsessão pelos rótulos, em uma época em que se pensa que tudo que existe se acha no Google e na qual toda confiança é colocada em papeis, também cria os seus preconceitos e incompreensões. Pensando nisso, resolvi escrever hoje um pouco sobre mim e sobre o contexto marcial em que nossos projetos estão inseridos, de modo a dissolver qualquer eventual desconfiança sobre a seriedade do que temos proposto.

Da esquerda para direita: Gustavo, Andressa, eu e Lucas, na ocasião de minha aprovação no exame de quarto estágio de Zhong Wudao (faixa roxa), em 2015, na Academia CEU, em Uberlândia.
Primeiramente, devo ser franco: não reivindico nem nunca reivindiquei o status de professor ou mestre de arte marcial. Sou professor, mas de área acadêmica. Trabalho, desde 2003, como professor universitário, na área de história, sendo que, nos últimos treze anos, no Instituto de História da Universidade Federal de Uberlândia. É inclusive como "professor de história" que tenho incorporado o kung fu como ferramenta de trabalho e objeto de pesquisa. Na história, graduei-me em 1996, na Universidade Estadual de Campinas, onde realizei também o meu mestrado (1997-1999) e doutorado (1999-2003). Mais recentemente, em 2013, licenciei-me para realizar estágio de pós-doutorado em história da arte na Universidade de Warwick, em Coventry (Inglaterra). Porém, o meu trabalho com artes marciais na história é bem mais recente ainda, começando no ano passado (2016). Até então, trabalho e artes marciais, na minha vida, seguiam caminhos bem separados.

Eu, na faixa amarela, em meu primeiro campeonato interno de Karatê, na Nautillus.

Comecei a praticar artes marciais em 1990. Lembro-me da ocasião. Fui passar o verão na casa de praia do meu tio no Espírito Santo. Meu primo, que, na época de sua faculdade, começara a praticar Karatê Shotokan, me mostrou, naquelas férias, o que vinha aprendendo e eu fiquei fascinado. Chegando das férias, em Juiz de Fora, fui procurar uma academia e descobri que havia uma bem na frente do prédio para o qual eu acabava de me mudar. Era a Academia Nautillus, hoje já extinta, onde havia aulas de Karatê Kenyu Ryu com o professor Roberto, na época faixa preta primeiro dan e aluno do Sensei Akio Yokoyama, em Belo Horizonte. Treinei com ele durante aproximadamente 2 anos, entre 1990 e 1991. Parei de treinar com ele quando estava próximo das minhas provas de Vestibular e, em 1992, eu me mudava para Campinas, para cursar graduação.

Certificado de participação em curso com o Sensei Kadosaki e o Sensei Yamamura, em Belo Horizonte. Foi o primeiro curso que realizei como praticante de Karatê. Na época, foi um curso badalado, com o ginásio do Minas lotado. Depois, voltei a Belo Horizonte para cursos também com o Sensei Akyo Yokoyama, cuja técnica e formas de ensinar causavam-me enorme admiração.

Em Campinas, tentei, em primeiro momento, sem sucesso, encontrar um Dojo de Karatê Kenyu Ryu. Como não encontrei, custei a ter ânimo de começar tudo de novo em outro estilo. Juntou-se a isso uma certa frustração por coisas que aconteceram entre mim e meu sensei em Juiz de Fora. No final das contas, custei a reiniciar a prática de Karatê e, em meio a outras prioridades e a uma vida universitária típica de adolescente morando em república, não foi um retorno muito regular, com muitas idas e vindas. Porém, entre 1998 e 2000, consegui ter uma sequência mais estável, treinando Karatê Shotokan com o excelente sensei Durval Dornelas Junior, cujo Dojo, antes de transferir-se para um bairro mais distante, ficava a duas quadras de onde eu morava, no bairro Cambuí. Só parei quando o seu Dojo mudou-se para a Vila Marieta. Na época, eu não dirigia, tinha uma rotina corrida por conta do doutorado e ficava muito fora de mão. Eu tentei, ia de vã para treinar, mas foi ficando impraticável. Tentei começar com outros professores no centro da cidade, mas frustrado com a qualidade, acabei deixando o Karatê de lado e indo para a musculação.

Em Campinas, como aluno do Sensei Durval Dornelas Junior, também realizei cursos extras. Este foi em 1998, com o atleta José Manuel Egea Caceres.

De quando larguei o Karatê até quando comecei Kung Fu passaram-se doze anos! Neste meio tempo, as prioridades foram outras: terminei meu doutorado, casei-me, procurei trabalho, prestei concursos, investi na minha carreira de professor e de pesquisador, publiquei livros, escrevi artigos, participei de congressos etc. Na correria da vida, a musculação e, depois, a natação eram práticas mais convenientes do que as artes marciais e, no caso da natação, foi uma relação de amor que durou uns bons seis anos, até que a minha rinite começou a atacar mais forte. Minhas crises alérgicas foram responsáveis por me retirarem da água e, como o meu filho também não estava podendo nadar por conta de problemas no ouvido, minha esposa encontrou uma solução. Perto da nossa casa havia uma academia de artes marciais com uma nova modalidade cheia de crianças: kung fu. Primeiro ela matriculou o nosso filho e, um mês depois, já que eu tinha que levar e buscá-lo, decidi me matricular junto. Isso foi em 2012. Estou lá até hoje, na Academia Charles Carvalho, que mudou de endereço, mas continua próxima à minha antiga residência e não tão longe de minha atual.


Turma de Kung Fu na Academia de Artes Marciais Charles Carvalho. Os quatro de colete preto da esquerda para direita são, respectivamente: eu, o professor Gustavo, a Andressa e o Pietro.

A Academia de Artes Marciais Charles Carvalho é um Dojo de Aikidô. O Charles, dono do espaço, é quarto dan (se eu não estou enganado... menos que terceiro não é) e filiado à Aikikai - União Sul Americana de Aikido (Kawai Shihan), além de ter sido, no passado, praticante de kung fu e um dos primeiros alunos e dos poucos que tiveram graduação completa no primeiro grau do sistema de Zhong Wudao do Mestre Huang Yu Sheng, em Uberlândia. Por conta de sua relação com o mestre Sheng, ele abriu um grande espaço para o kung fu no seu Dojo, o que nos deixa profundamente gratos. Também há outras modalidades na Academia, como o Tai Chi Chuan, que também pratico, lá mesmo, desde 2014, quando voltei de meu pós-doutorado na Inglaterra.


Imagem do Mestre Huang Yu Sheng, em entrevista para emissora local de televisão.

O professor de Kung Fu na Academia de Artes Marciais Charles Carvalho é o meu querido professor e amigo Gustavo Rodrigues, auxiliado pela sua esposa, nossa amiga, Andressa, que, além de faixa marrom (antigo quinto estágio de Zhong Wudao) no Sistema Básico de Kung Fu Kuoshu, é faixa preta de Karatê Shotokan. O professor Gustavo iniciou sua formação em Kung Fu no início dos anos 2000 na antiga Wushukan, academia que pertencia ao mestre Huang Yu Sheng, aqui em Uberlândia. Quando o mestre decidiu fechar a academia, o Gustavo já era instrutor (colete preto) e, em sociedade com outros dois professores e um empresário, assumiu a Wushukuan. A sociedade, no entanto, precisou ser desfeita por diversas razões e, com o fechamento definitivo da academia, ele encontrou espaço para desenvolver o seu trabalho na Academia de Artes Marciais Charles Carvalho e, atualmente, também em outro espaço similar na cidade.

Quando o mestre Sheng decidiu fechar a academia e deixou de dar aulas de kung fu de modo mais público, o professor Gustavo continuou sendo seu aluno. Desde então, mesmo quando não está treinando com o mestre, não dá qualquer passo sem antes consultá-lo e informá-lo. Em 2013, o professor Gustavo tomou a iniciativa de reativar a Federação Mineira de Kung Fu Kuoshu, um projeto que havia iniciado no interior da Wushukan e estava parado. A sua criação teve apoio e participação do mestre, bem como do sensei Charles Carvalho e de outros praticantes de kung fu em Uberlândia e no Triângulo Mineiro.

A Federação Mineira de Kung Fu Kuoshu, dentre outras atividades, promove cursos de formação, como este de Shuaijiao (que eu não fiz) com o professor Niltoamar.
Em 2014 e 2015, dois professores ex-alunos da Wushukuan passaram a participar mais ativamente de atividades da Federação, Fabrício Monteiro e João Borges, ambos alunos do Professor Niltoamar. O professor Niltoamar, assim como o Charles, fora dos primeiros alunos do Mestre Sheng. Ele também estudou outras escolas de kung fu com outros mestres em São Paulo e no Rio de Janeiro e, hoje, é uma referência importante de artes marciais na cidade e representante de algumas escolas de kung fu tradicionais por aqui. João e Fabrício são dois dos alunos mais avançados do Professor Niltoamar. O Fabrício, por exemplo, tem mais de vinte anos de prática de Kung Fu. Sob a orientação do João e, principalmente, do Fabrício, em 2015, começou o processo de revisão técnica e padronização do currículo básico da Federação Mineira de Kung Fu Kuoshu, que tomou como base o Zhong Wudao do Mestre Sheng. O próprio mestre foi requisitado para o processo. Porém, distanciado do cenário público do kung fu desde o fechamento da Wushukuan, preferiu ficar à distância. Não se envolveu, mas também não se opôs e somos muito gratos a ele pelo legado que nos deixou.

Assim, desde 2015, sob a orientação do Fabrício, temos estudado e treinado o currículo da Federação. Quando este processo foi iniciado, eu me encontrava no terceiro estágio do Zhong Wudao, correspondente ao que hoje é a nossa faixa vermelha. Foi em 2015 que eu fiz o meu exame para o antigo quarto estágio, hoje a faixa roxa, quando começamos a habilitar instrutores. No início deste ano, fui aprovado no exame para a faixa marrom e pretendo, até o final deste ano, chegar à faixa preta. Em nosso sistema básico, a faixa preta não é a formação completa ainda, porém é quando iniciamos o processo de habilitação como professor.

Eu (ao centro), durante meu exame de faixa marrom. À esquerda, o professor Fabrício Monteiro e, à direita, o colega Renner Mariano, que ajudava no exame.
Execução de técnicas de shuaijiao contra chutes circulares em meu exame de faixa marrom.

O Sistema da Federação não é um estilo de Kung Fu nem possui uma linhagem. Ele é um currículo de formação básica e eclética. Não se espera de nenhum praticante que ele se especialize no Sistema. Pelo contrário, estimula-se que ele busque uma outra formação mais específica, conforme as suas inclinações. O que ensinamos, com ele, é uma base comum a vários estilos de kung fu, estudando fundamentos de algumas escolas em particular. Ele deriva do Zhong Wudao do Mestre Sheng, que, por sua vez, deriva do Zhong Wudao do Mestre Lin Zhong Yuan, de Taiwan. Wudao, para o Mestre Lin era uma forma de se referir genericamente às artes marciais chinesas praticadas como caminho, de modo análogo ao Budo japonês. Como Lin Zhong Yuan começou a estudar artes marciais na Associação Jingwu e, posteriormente, no Exército Nacionalista, há muito no sistema de elementos do Guoshu e do currículo geral da Jingwu, como as formas ligadas ao Tantui, particularmente. Porém, a versão do Mestre Sheng incorpora elementos do Louva-a-Deus, que ele estudou por alguns anos com o mestre Gao Dao Sheng, também em Taiwan, e de outros estilos.

No ano passado, a Federação Mineira de Kung Fu Kuoshu filiou-se ao Instituto Li Wing Kay. Nossa escolha deveu-se ao histórico de amizade e intercâmbio, desde a década de 80, entre os mestres Li e Sheng. O respeito mútuo entre os dois desperta, nos antigos alunos da Wushukuan, um sentimento de familiaridade com os discípulos do Grão Mestre Li. Nossa intenção é aprofundar estas relações e nos fortalecermos a partir de um contato mais próximo com o Instituto.

Prática de Zhan Zhuang durante aula de Tai Chi na Academia de Artes Marciais Charles Carvalho.

Voltando a falar de minha formação, desde 2014, pratico, paralelamente às aulas do Gustavo, Tai Chi Chuan. Minha professora é Sara Giffoni, instrutora com formação pela SBTCC, que representa a Família Yang na América do Sul. O Tai Chi Chuan Yang, diferentemente do Sistema Básico de Kung Fu Kuoshu, é uma formação bem mais específica. Durante estes três anos, aprendi a executar a forma longa 103, duas formas curtas (a 13 e a 16), alguns poucos exercícios de tui shou, e algumas séries de Qigong. Fiz formação na SBTCC em uma das séries de Qigong que praticamos. Pretendo fazer, quando tiver recursos, a formação de instrutor, apesar de ser um investimento alto para quem não pretende profissionalizar-se como professor de Tai Chi, como no meu caso. O Tai Chi Chuan é minha prioridade de especialização. É o que me move a estudar mais sobre as artes marciais chinesas de modo mais específico.

Foto minha no Zhi Jing Xuan, "Santuário Paz e Sabedoria", na sede campestre da SBTCC, onde estive para a realização de curso de Qigong em 2016. Memorial dedicado aos mestres da Família Yang de Tai Chi Chuan.

Como instrutor, nos projetos em parceria entre a UFU e a FMKK, ensino o Sistema Básico de Kung Fu Kuoshu, estudando-o e explorando-o em suas potencialidades pedagógicas, que vão muito além da instrução meramente técnica. Ele passa pela técnica e eu tenho me esforçado muito para as desenvolver e as compreender com a maior profundidade, orientado por professores de muita experiência e competência, como o João, o Gustavo e o Fabrício. Porém, o mais importante são os efeitos gerais da prática no trabalho com crianças, jovens e adultos, conforme objetivos de formação do sujeito ético, livre e antropologicamente aberto para o mundo. Em torno disso, temos experimentado muitas metodologias e ferramentas, mas que isso não seja confundido com invenção de estilos ou de técnicas. Não! Em termos marciais, ensino tão somente o que eu aprendi, do modo como compreendi e incorporei, sem inventar nada. Não ensino Tai Chi, pois, como disse, envolveria investir numa formação que, tendo um preço que considero justo, ainda assim, é um investimento alto para as minhas ambições.

Demonstração de postura básica (xubu) para alunos do projeto de Tupaciuguara. Imagem de 2016, na Escola Estadual Sebastião Dias Ferraz.

Caso você queira saber mais sobre o Sistema Básico de Kung Fu Kuoshu, sobre a Federação ou sobre a minha formação (acadêmica ou marcial), fique à vontade para entrar em contato por e-mail (guilhermealuz@gmail.com) ou pelo Facebook (pesquisando por Guilherme Amaral Luz). Terei o prazer de responder as suas dúvidas e questionamentos. Saudações! Jingli!

segunda-feira, 10 de julho de 2017

Caminho Marcial e a Lógica do Combate

O aprendizado da luta, como desenvolvimento do saber-reflexo, está na base do que entendemos por caminhos marciais.

Em postagem passada, sobre os princípios de caminhos marciais e as suas potencialidades na educação contemporânea, deixei sugerida a insuficiência do treinamento de luta como método voltado ao aprendizado de princípios de formação integral. Não quis dizer com isso que as lutas sejam dispensáveis no processo. Pelo contrário, defendo que elas sejam indispensáveis, porém, elas só adquirem algum sentido de caminho quando compreendidas para além da eficácia em combate.

Um amigo, educador físico e professor de Hapkido e de Artes Marciais Chinesas, Jerônimo Marana, escreveu certa vez, em um grupo de discussão nosso, que aprender a aplicar e receber um golpe é um modo disponível aos alunos para conhecerem, comunicarem e harmonizarem-se uns com os outros. Não utilizou a expressão, mas tomo a liberdade de traduzir este modo como uma linguagem ou, para utilizar sua ancestral grega: uma lógica. Se pensarmos o combate ou a aplicação de técnicas marciais como algo que faz sentido dentro de um sistema lógico, talvez comecemos a dar passos na direção de criar hipóteses em torno de fundamentos da luta como método de formação do ser humano.

Quando digo lógica, não quero subtrair das artes marciais as suas dimensões motoras, afetivas, sociais, restringindo-as ao aspecto cognitivo. Longe disso! Muito pelo contrário, penso em uma lógica abrangente. Não me refiro à Lógica "clássica", de matriz aristotélica, fundada em silogismos. Refiro-me ao logos dos pré-socráticos, modo de "enunciação" de uma ordem cósmica (kosmos), que é o fundamento de toda verdade e de toda a beleza. Refiro-me a um logos poético, o verbo criador, como traduziu, para o Latim, São Jerônimo, ao verter o livro Genesis da sua versão grega.

Também já escrevemos, neste blog, a respeito da relação entre as artes marciais chinesas e o poético. Importantes mestres chineses e japoneses de artes marciais deram atenção ao aspecto poético de seus sistemas. Um deles foi Jigoro Kano. Dentre as suas criações para o Judo Kodokan, é possível destacar os Itsutsu No Kata (五の形). Explica o Sensei:

"(...) Também existe o itsutsu no kata. Eu comecei a ensinar estes por volta de 1897 e eles trouxeram uma completa mudança para o judô. No antigo ju-jutsu, o propósito de todas as formas de exercício era, direta ou indiretamente, o ataque ou a defesa contra ataques. Entretanto, as últimas três formas do itsutsu no kata expressam a energia natural por meio do movimento e não têm nenhuma relação com ataques ou defesas. O quinto [princípio] destes kata é ligado a uma onda que se avoluma, bate no cais e retrocede, levando consigo os navios e casas que se encontram no caminho. No futuro, eu gostaria de criar vários kata desse tipo com o propósito de desenvolver um sentimento estético por meio do movimento de várias posturas, ao mesmo tempo em que treinamos o corpo". (KANO, J. Energia mental e física, São Paulo: Pensamento, 2008. p. 26)

A denominação Itsutsu No Kata não foi inventada por Jigoro Kano. Kano a tomou do Tenjin Shinto-ryu, que estudou sob a tutela do Sensei Masatari (Iso Matauemon Ryukansai Minamoto Masatari). A ideia positiva que Jigoro Kano desenvolveu do Aikido do Sensei Morihei Ueshiba relaciona-se à influência de princípios do Tenjin Shinto-ryu tanto no Judo quanto no Aikido. Estes princípios estão na base do próprio nome do estilo, que faz alusão à dobra de um salgueiro mediante o forte vento. Ou seja, os princípios de que alguém deve controlar o forte, sendo fraco, e controlar o duro, sendo flexível. Seu fundamento é o mesmo presente em artes marciais chinesas, decorrendo da dialética do yin/yang.

No seu projeto de Itsutsu No Kata, Jigoro Kano vislumbrava a possibilidade de abstrair por completo os princípios "universais" da "poética do movimento" da sua aplicabilidade marcial mais evidente. Entretanto, tamanha abstração é rara no conjunto das artes marciais (inclusive no próprio Judo). O mais comum é a presença sincrônica de aplicações e princípios gerais nas formas e técnicas, de tal modo que a aplicação ilustra os princípios e os princípios fundamentam as aplicações. Não há separação, mas sincronicidade de aprendizado. No limite (e em tese), seguindo este raciocínio, aquele que domina a técnica marcial com maior habilidade também é aquele que acumula maior conhecimento de princípios, tornando-se, portanto, mais sábio. É aquele que enuncia com maior riqueza as "leis" que regem a ordem do universo. É aquele que incorporou em si e em sua estrutura corporal a lógica do combate.

Porém, precisamos tomar alguns cuidados e estabelecer algumas mediações culturais para não tomarmos esta incorporação da lógica (do combate ou do "universo") como mero acúmulo de enunciados de preceitos. É preciso relacionar este "conhecimento" ligado ao combate com uma categoria presente no Confucionismo de caráter naturalista, tal como aquele desenvolvido por Wang Yangming: "conhecimento real". Conforme Philip Ivanhoe, nesta perspectiva,

"Conhecimento real é auto-ativado tal como as virtudes genuínas. Uma pessoa com conhecimento real, quando confrontada por situações de determinada maneira, agirá simplesmente respondendo de modo adequado. Não há necessidade de perceber, selecionar, julgar ou mover a intenção; isto seria excessivo. A pessoa aperfeiçoada responderia como um espelho, correta e imediatamente, 'refletindo' a circunstância". (IVANHOE, P. "Wang Yangming". In: Confucian Moral Self Cultivation, Indianapolis: Hackett, 2000. p. 63.)

Como "reflexo", a noção expressa acima não pode ser colocada em equivalência com a conceituação de "arco reflexo", na fisiologia ocidental moderna. Não se trata de pura resposta involuntária de um corpo a partir do estímulo de um nervo motor. É mais semelhante ao que, no senso comum, atribuímos aos reflexos de um goleiro de futebol. É uma habilidade que envolve posicionamento, previsão, tomadas de decisões extremamente rápidas, domínio natural das técnicas, conhecimento profundo do "jogo" e, sobretudo, percepção aguda do outro. É o reflexo do goleiro posicionado para a cobrança de um pênalti. Com a prática, com a repetição, o treinamento, este reflexo se aperfeiçoa; o goleiro vai se tornando hábil na leitura do corpo do batedor, dos seus ritmos, do timing, das tendências de força, direção, lado, altura, efeitos... Tudo se decide em uma fração de segundos. Ele treina inúmeras vezes para acertar aquela jogada, única, rápida, decisiva.

A ideia de "espelho" sugere outro aspecto deste "reflexo", que é a sua relação com o "outro". Não existe este "conhecimento real" fora de uma determinada circunstância em que o sujeito se depara com estímulos originados fora de si mesmo. Neste sentido, o "reflexo" envolve um imiscuir-se no outro, no seu movimento, tornando-se um com ele. É o que o nosso amigo Jerônimo falava sobre a comunicação e o harmonizar-se com o outro... Assim, a técnica marcial seria como uma mediação, um veículo por meio do qual o si mesmo e o outro tornam-se, por um instante, uma única estrutura cinética.

Neste vídeo, aluno de 7 anos do projeto do Culturarte aprende aplicação de técnica de bastão, adaptando-a para movimentos de punho livre, para bloqueio de soco, seguido de qinna (torção de articulações). O objetivo não é ensinar à criança a se defender ou a "bater" em brigas, mas a compreender as múltiplas possibilidades de uma técnica, ajudando a constituir um modo de pensar plástico, flexível e ajustado ao desenvolvimento do saber-reflexo.

Enfim, não se trata de uma construção acumulativa de conhecimentos. A educação na lógica do combate é uma construção orgânica de mediações técnicas para o "saber-reflexo". Não é uma forma de educação para solucionar problemas previsíveis, mas para lidar adequadamente com o imponderável, para tomar decisões justas mediante às contingências. Ela não se encerra com o domínio da técnica, mas precisa passar ao nível do que, em várias artes marciais, por inspirações taoistas ou zen, nomeia-se como "não-técnica". Ela é um treinamento integral das faculdades cognitivas, afetivas, bio-motoras, sócio-culturais, direcionando-as para a prática no caos da vida humana. É um treinamento que passa pela "luta corporal", cuja lógica/poética exige e promove o desenvolvimento das sensibilidades e habilidades pertinentes à constituição de um "conhecimento real" em suas efetivas materializações éticas.