quinta-feira, 21 de dezembro de 2017

Ética e Espiritualidade nas Artes Marciais. Frescura?

Motivado por situações recentes que agitaram o pequeno universo das artes marcais chinesas no Brasil, comecei a pensar sobre o tema da ética marcial. Para isso, resolvi revisitar um texto muito importante da minha juventude, a autobiografia do Sensei Gichin Funakoshi, que li pela primeira vez em meados da década de 90, quando praticava Karatê Shotokan em Campinas, com meu então professor, o sensei Durval Dornellas Junior (diga-se: um dos melhores professores que já tive e de um caráter gigante). Larguei o Karatê há muito tempo e hoje me dedico às artes marciais chinesas. Porém, o carinho pelo Karatê e o que aprendi nele eu guardo sempre, se não nas suas técnicas, no meu coração e na minha alma.

Gostaria de destacar um trechinho bem no final do livro, quando o autor reflete sobre a sexta de um conjunto de seis pontos a serem observados pelo praticante de Karatê-do:

"Eu gostaria de pensar que estou errado, mas temo não estar, por conta do que eu tanto venho escutando ultimamente de jovens praticantes de Karatê, que usam expressões tais como: jitsuryoku-gata ('um homem de verdadeira habilidade'), ou sento-gata ('um homem de batalha'), ou jissen-gata ('um homem de combate real'). Esses termos são absurdamente infantis e carregam uma profunda ignorância do sentido do Karatê-do.
Uma vez que o Karatê-do objetiva a perfeição da mente assim como do corpo, expressões que exibem apenas proeza física nunca deveriam ser utilizadas em conexão com ele. Como um sábio budista, Nichiren, afirmou com tanta aptidão, qualquer um que estude us Sutras deve lê-los não somente com os olhos que estão em sua cabeça, mas também com aqueles da sua alma. Essa é a principal admoestação para um praticante de Karatê-do manter em mente." (GICHIN, FUNAKOSHI, Karate-do. My way of life, Nova Iorque: Kodansha, 2012. p. 110. Tradução minha do inglês para o português.)

O trecho acima está relacionado à importância que Funakoshi credita à prática da ética em público e no privado, no Dojo ou no cotidiano, por parte de praticantes de Karate-do. Por isso, ele se irrita com termos que associam a excelência do praticante apenas ao domínio da técnica e da luta, sem referência com o mais importante de tudo: uma leitura espiritual das técnicas, na medida em que são aprendidas e dominadas pelo físico. Tornar-se um bom lutador ou alguém capaz de vencer batalhas é apenas um subproduto do Karatê-do de Funakoshi. Acima de tudo, o Karate-do, como se diz no título do livro, deve ser um "meio de vida", um "caminho", "uma forma de ser e estar no mundo".

Certo, alguém poderia dizer: "mas isso aí é no Karatê, não vale para todas as artes marciais". É verdade, não vale para todas as artes marciais. Aliás, não vale nem mesmo para o Karatê, de modo universal. Na época de Funakoshi mesmo havia outros caratecas em Okinawa que eram muito mais habilidosos do que ele e para os quais o elemento ético não vinha em primeiro plano. Pode-se dizer, inclusive, que a forma mais comum de prática de artes marciais (karatê ou qualquer outra) é aquela que prima pelas proezas físicas, busca forjar um guerreiro ou lutador eficiente, lapidar o soldado, no sentido mais beligerante do termo. É o que muitas vezes se expressa em nosso meio como "arte marcial sem frescura", "formar homem de verdade", "preparar para a luta real", "praticar sem romantismo"; é aquilo que se proclama como puro "chute no saco e dedo no olho"...

Para quem quer aprender este tipo de arte marcial, o mercado está cheio de opções, algumas mais caras, outras mais baratas; algumas vira-latas, outras com pedigree; algumas voltadas para a rua, outras para o ringue... Bater, bater, bater... Esta é a obsessão dos que procuram este tipo de prática marcial. Bate-se para ensinar, bate-se para aprender, bate-se para não apanhar, apanha-se para aprender a bater e não apanhar... Tudo se resolve naquela que é a grande meta final das artes marciais (segundo eles): a luta. E haja testosterona!

É fácil criar fantasias espirituais para o bater e o apanhar, para o "chute no saco e dedo no olho", para o "formar homens de verdade"... Sensei, Sifu, Shifu, Mestre, Lao Shi ou sei lá mais que título ou forma de tratamento: tudo isso pode dar uma roupagem de tradição ou filosofia oriental para a mais rasa e tosca "pedagogia da porrada". Isso não tem nada de chinês, de japonês, de zen, de confucionista... A pedagogia da porrada é militarista, patriarcal, vitoriana, é uma instituição para lá de conhecida e praticada na história do "ocidente". É a velha "disciplina" usada em si mesmo pelo penitente. É a mesma "pedagogia" que utilizavam os senhores para "educar" os seus escravos insubmissos no Brasil escravista! O "pai" que bate e tem autoridade para bater é o pater familia, dos Romanos, que tem ascendência não só sobre os seus filhos, como sobre a sua mulher e os seus servos.

A "arte marcial sem frescuras" travestida de "tradições orientais", no Brasil, não é outra coisa além de um subproduto cultural do autoritarismo latino-americano. É o aspecto (anti)ético do finjitsu! Ela está longe de ter algum papel transformador da sociedade, no sentido de torná-la espiritualmente melhor e eticamente ordenada. Ela é pura expressão do desejo de uniformização de tudo conforme o ego inflado de alguém que se julga mestre, professor, guia, guru... Ego que, uma vez contrariado, parte para a porrada, colocando em prática aquilo para que serve a sua "arte".

Alguns podem até se fantasiar com símbolos religiosos e utilizar um discurso exotérico; podem até realizar proezas mágicas e ilusionismos, mas não é nessas coisas que se encontra o espiritual nas artes marciais. O espiritual, nas artes marciais, voltando ao Karatê-do de Funakoshi, encontra-se no praticante colocar o coração e a alma na prática e no aprendizado, tornando-se, com o passar dos anos e treinamento sério, uma pessoa plena, em corpo, em mente, em espírito, pronta para o agir no mundo tendo como referência a perfeição.