terça-feira, 18 de dezembro de 2018

O que é Tantui (Parte 5: Jindai Tantui, 近代弹腿, e a Força Elástica, 弹力)

Arqueiro Manchu no final do século XIX

Postura inicial "clássica" de Tantui

Introdução:

Retomo a série sobre Tantui após um hiato de publicações a respeito. De uns tempos para cá decidi me dedicar ao estudo atento do Tantui. Para isso, busquei o professor Niltoamar Pereira Gomes, aqui em Uberlândia, uma das referências mais respeitadas do Kung Fu em nossa região. Venho tendo aulas com ele há alguns meses. Primeiro, fiz com ele uma "reciclagem" completa do Shi Er Lu Tantui, do Zhong Wudao, do Mestre Lin Zhong Yuan, conforme ele aprendeu com o Mestre Huang Yu Sheng. Depois, ele me ensinou a forma Tantui Duilian, que eu ainda não havia estudado. Nos dois casos, ele aprofundou bastante no entendimento das aplicações dos movimentos e me orientou sobre rotinas de exercícios físicos específicos, voltados para aspectos relevantes de cada linha. A metodologia de ensino do professor Niltoamar é bastante individual e direta. O foco é totalmente direcionado à compreensão dos princípios e dos fundamentos que permitem a execução viva da técnica.

Wang Zi Ping - Etnia Hui - Mestre de Tantui Moderno

Wang Zi Ping - Mestre de Tantui Moderno - Etnia Hui

Terminada a "reciclagem" sobre as formas de 12 linhas do Zhong Wudao do Mestre Sheng, ele começou a trabalhar comigo um sistema "completo" de Tantui. Eu mesmo afirmei, no primeiro texto desta série, que não existe mais um sistema completo de Tantui, mas não há contradição aqui. De fato, o sistema que ele me passa não é a mesma arte "miticamente" originada em Linqing, na província de Shandong durante a Dinastia Song. Nem mesmo aquela arte supostamente criada no final da Dinastia Ming, em Xingjiang, conforme outra versão histórico-mitológica da sua origem. Não há, entre o sistema que eu estou aprendendo e a arte "original", uma ligação direta plausível, nos moldes de linhagens e genealogias tradicionais. Sua concepção é bastante "moderna" e, até mesmo, "esportivizada", ainda que traços de sua ancestralidade estilística e das suas origens étnicas no Jiaomen sejam ainda muito evidentes.


O Tantui do professor Niltoamar:


O sistema que o professor Niltoamar está me apresentando é de criação atribuída a um mestre de etnia Hui, atuante na primeira metade do século XX, Ma Enchen 吗恩趁 (1895-1961), de Xi'an, na província chinesa de Shaanxi. O nome deste mestre, associado ao Tantui, tornou-se conhecido internacionalmente nos anos 80 e 90, graças a uma publicação do Mestre Ma Zhenbang (artista marcial, treinador de equipe de Wushu, autor de livros, ator e diretor de cinema famoso nos anos oitenta): Shi Lu Tantui, traduzido para o inglês como Ten Routine Spring Leg, lançado em 1985. Este livro também recebeu tradução para o espanhol: Diez ejercicios de proyección de piernas (Madri: Miraguano Ediciones, 1989). A versão espanhola foi traduzida para o português e editada no Brasil: 10 exercícios de projeção de pernas (São Paulo: Sampa, 1995). Trata-se de uma obra que, apesar de muto simples, tornou-se mundialmente difundida. Também foi lançada, por exemplo, na França, com o título de Jeu de la jambe elastique en dix enchainements, lançado em 1991.

Este livro, como o próprio título diz, é sobre uma série de Shi Lu Tantui (十路弹腿), ou seja uma rotina, um taolu, não sobre um sistema completo. Ma Zhenbang, cuja especialidade era o Xing Yi Quan, afirma ter aprendido a rotina com o Mestre Ma Enchen por volta de 1940. Ma Enchen era reconhecido como mestre de Chaquan e Jiaomen Changquan. Certamente, a sua compreensão do Tantui advinha da relação histórica entre estas escolas. No manual de Ma Zhenbang, inclusive, a versão narrada sobre a origem do Shi Lu Tantui é aquela da sistematização de Cha Shangyi 查尚义, o Chamir, à quem se atribui a difusão do Chaquan de Xingjiang para Shandong. Além disso, tanto Ma Enchen quanto Wang Ziping, terceiro professor de Tantui de Ma Zhenbang, teriam sido discípulos da linhagem de um mesmo mestre, Yang Hongxiu 杨鸿修, fundador do Yangshi Chaquan (杨式查拳).

Ma Zhenbang. 10 exercícios de projeção de pernas.
Capa da edição brasileira de 1995.

Segundo o professor Niltoamar, ele aprendeu o sistema de Tantui do Mestre Ma Enchen em São Paulo nos anos 90, com um professor chamado Ton Shan (não sei se é assim a grafia e certamente não se trata do famoso Mestre Thomas Chan, da Confederação Brasileira de Wushu, de quem o professor Niltoamar também foi aluno, mas de Wushu Moderno). Não me parece coincidência que alguém possa ter ensinado um sistema como este, em São Paulo, mais ou menos na mesma época do lançamento de 10 exercícios de projeção de pernas. Naquela época, este tipo de publicação era amplamente comercializado e gerava interesse tanto na comunidade praticante de artes marciais quanto em curiosos e mesmo em "auto-didatas". Esta era uma ótima oportunidade de diversificação de "produtos" oferecidos em academias de artes marciais. A própria academia em que o professor Niltoamar me disse ter aprendido este Tantui, segundo ele, era especializada em Hung Gar, não em Tantui ou mesmo Chaquan. Isso não quer dizer, necessariamente, que estes "novos" produtos eram falsos ou de qualidade duvidosa. Quer dizer apenas que eram, na época, novidades e que, quem tivesse conhecimento sobre o assunto (ou ao menos fosse convincente neste sentido), encontraria mercado para ensinar.

Genealogia de Ma Enchen conforme o material de Tantui fornecido pelo Prof. Niltoamar

Também de acordo com o próprio professor Niltoamar, quando ele começou a treinar Tantui em São Paulo, ainda estava ligado ao Mestre Huang Yu Sheng em Uberlândia, que não aprovava a busca independente de seus alunos por aprendizado em outras escolas. Este era um ponto de tensão na sua relação com vários alunos, dentre os quais o professor Niltoamar, provavelmente, o mais curioso e ávido no sentido de conhecer várias artes e estilos diferentes. Na época, Niltoamar trabalhava como bancário e realizava serviços em agências espalhadas em várias partes do Brasil. Aproveitava as viagens para estabelecer contato com professores e mestres de vários lugares, realizava cursos e intercâmbios com vários deles e, assim, constituiu, ao longo de muitos anos, um currículo recheado de formações distintas. A motivação era, conforme ele diz, entender melhor o que aprendia com o Mestre Sheng, ampliar aquela compreensão a partir da consideração mais específica das escolas presentes no Zhong Wudao. Não é difícil imaginar o quanto foi atrativa a oportunidade de estudar um sistema "completo" de Tantui, cujas características pareciam tão fortemente presentes no sistema do Mestre Sheng.

Apesar de ter estudado vários estilos de artes marciais chinesas, o professor Niltoamar não os mistura. Ele treina-os e ensina-os em separado. Quando o buscamos para fazer aula, ele nos apresenta diversas possibilidades. Para organizá-las, utiliza, como recurso, pastas catálogo, contendo folhas/programas relativas às escolas que ele conhece. O programa de Tantui encontra-se descrito em cinco folhas, contendo tabelas referentes aos seus oito estágios. As folhas foram fornecidas pela própria academia em que aprendeu e a sua redação demonstra um português bastante precário, de alguém que ainda não possuía muita desenvoltura em nossa língua. Elas compõem um documento, por si só, interessante da época. No cabeçalho das folhas, aparece o nome do programa de graduação de Tantui: 批个奧谈腿.


O programa de Tantui de Ma Enchen:


Este nome, 批个奧谈腿 (pi ge ao tan tui), por si só, já é bastante indicativo do que se trata. Uma tradução pode ser: "conjunto de Tantui olímpico". O termo "olímpico" está aqui abreviado pela palavra 奧 (ao - 奧林匹克, ao lin pi ke). Não é necessário dizer o quanto este sistema relaciona-se, portanto, ao projeto do Wushu Moderno, da República Popular da China, sob um viés claramente esportivo. O próprio Mestre Ma Enchen, conforme Ma Zhenbang, foi do time da província de Shaanxi na Competição Nacional de Wushu, em Beijing, no ano de 1956, quando obteve a primeira colocação.



Os anos de 1953 a 1958 formam um período importante e decisivo para a história do Wushu Moderno, pois marcou a fundação da 中华全国武术总会 (Zhonghua Guanguo Wushu Zonghui), a Associação de Wushu de Toda a China. Este período foi de grande euforia para a recém criada República Popular da China, nos anos que sucederam à Revolução de 1949 e os sucessos militares subsequentes, como aqueles relacionados à conquista do Tibete e à derrota dos Nacionalistas remanescentes nas províncias de Yunnan e Xinjiang, todos ao oeste do país, em regiões estratégicas de fronteira. O Wushu, como "esporte nacional", receberia, nesta época (até a fase da Revolução Cultural), um tratamento específico do Estado chinês a fim de se tornar vitrine para uma "nova e grandiosa" China. Este era o papel da Associação de Wushu de Toda a China.

Ma Enchen foi um dos personagens do que podemos chamar de primeira fase do Wushu Moderno, entre 1949 e 1966, antes da Revolução Cultural. Nesta etapa, houve bastante colaboração de mestres de artes marciais tradicionais para as suas adaptações ao modelo atlético e competitivo, inspirado em expressões esportivas da União Soviética e da Alemanha Oriental (LU, 2008: 39). Neste momento, foi idealizado um estilo "híbrido" ou "genérico" chamado de "Punho Longo", Changquan (长拳), que incorporava rotinas tradicionais de artes advindas de províncias do norte da China, como Shaanxi, Shandong, Henan e outras, tais como eram o caso do Huaquan e também do próprio Chaquan (MONTEIRO, 2014: 58). O Tantui, neste contexto, foi incorporado ao Wushu Moderno como rotinas básicas de treino fundamentais para o desenvolvimento de habilidades e consciência para o "Punho Longo".

Nesta primeira fase do Wushu, as formas e rotinas ainda eram bem diferentes do que se tornariam a partir do final da década de 1970, na reabertura política e econômica posterior à Revolução Cultural, sobretudo, em relação ao movimento de internacionalização do final dos anos 1990 e início dos anos 2000, quando foram intensificados os esforços para a elevação do Wushu à categoria de esporte olímpico, por meio da 国际武术联合会, Guoji Wushu Lianhehui, Federação Internacional de Wushu. Naquele momento inicial, as formas modernas estavam bem mais articuladas às suas origens em artes "tradicionais" do que atualmente. Os seus movimentos dominantes ainda mantinham características eminentemente marciais, ainda que estilizadas e estetizadas para o espetáculo competitivo. Ainda não havia se estabelecido, tão claramente, uma dicotomia entre as rotinas formais (o taolu) e a luta (sanshou ou sanda).

Ma Zhenbang, executando uma forma de Xingyiquan 

Um outro aspecto do nome do sistema chama a atenção: a grafia de "Tantui", no caso, 谈腿, com 谈 (Tan), indicando "família Tan". Devemos lembrar, neste caso, que a publicação de Ma Zhenbang adota uma outra nomenclatura, hoje mais usualmente aceita: 弹腿, "pernas elásticas" ou "spring legs", como na tradução inglesa, "jambe elastique", em francês, ou ainda "proyección de piernas", em espanhol. Vale lembrar que, conforme o próprio Ma Zhenbang, seu último professor de Tantui, no final dos anos 50 e início dos 60, foi outro mestre de etnia Han: Wang Zi Ping 王子平 (1881-1973)*, vice-presidente da Associação de Wushu de Toda a China e um dos grandes expoentes do movimento nesta fase. Ele é considerado um dos pioneiros do chamado 近代弹腿 (Jindai Tantui, Tantui Moderno). A consolidação do nome 弹腿 frente a outras versões ao longo do desenvolvimento do Wushu Moderno parece resultado também de um entendimento prático sobre a forma. Este entendimento é expresso de modo bastante sintético no prefácio do manual de Ma Zhenbang:
"Com as instruções dos famosos mestres mencionados [Ma Enchen, Wang Qingshan e Wang Ziping] e com mais de vinte anos de ininterrupta prática em meu trabalho como treinador na equipe de wushu da província de Shaanxi, fui compreendendo pouco a pouco que os 'Dez exercícios de projeção de pernas' eram excelentes para a flexibilidade do torso, as pernas e mãos e para a coordenação dos passos, todo o qual requer sólida técnica, concentração de força e movimentos rítmicos das diferentes partes do corpo" (MA, 1995: 05).
* Wang Zi Ping também conhecia Tongbeiquan,
uma outra escola de Jiaomen que incorporou
formas de Tantui em seu treinamento. Um outro Ma,
o famoso Mestre Ma Yongzhen, foi responsável
pela fusão de Tantui ao Tongbeiquan, dando origem
ao Ma Tongbeiquan Tantui, que, embora aparentado, não
se confunde com o Tantui de Ma Enchen ou de Ma Zhenbang.
Sobre este assunto, recomendo a parte final do ótimo
documentário abaixo:


A "flexibilidade de torso, pernas e mãos" é uma expressão de 弹. Fosse ou não o ideograma original presente no nome do antigo Tantui, ele agora assumia um significado estilístico renovado. Interpretado conforme as necessidades de desenvolvimento de fundamentos técnicos do antigo Chaquan ou do moderno Changquan, o 弹 deste novo Tantui torna-se um conceito fundamental a partir do qual as rotinas de 10 ou de 12 lu (路) de Tantui poderiam fazer sentido. Um conceito que também pode ser aplicado, por exemplo, ao exercício com armas tradicionais treinadas em conjunto com o Tantui, com o Chaquan ou com o Qishiquan: gun (棍) - bastão; dao (刀) - sabre; qiang (枪) - lança; jian (剑) - espada.

O ideograma 弹 (tán ou dàn), cujo caractere tradicional é 彈, forma-se pelo método picto-fonético, sendo o seu componente pictográfico 弓 (gōng), "arco", e o fonético, 單 (dān), que significa "unidade" ou "sozinho". O sentido é sugerido por 弓e pode significar, modernamente, "bala" (munição), "tiro"ou ainda algo "elástico". 力 (), por sua vez, é um pictograma que sugere a imagem de um instrumento de arar, podendo, assim, significar "força", "capacidade", "potência". 弹力, a "força elástica" é o princípio mais geral das técnicas do Tantui.

Como no tiro de um arco, a propulsão é gerada por uma contração em sentido oposto ao alvo, gerando um equilíbrio entre tensão e estabilidade para que, de súbito, ocorra um relaxamento e, consequentemente o disparo. As "pernas elásticas" não carregam este nome apenas em virtude dos chutes, mas por conta do papel das pernas na geração da força elástica do corpo como um todo.

Este entendimento das "pernas elásticas", ainda que a nomenclatura traga o 谈, de "família Tan", está presente no sistema de Ma Enchen. É importante frisar que a grafia 弹腿 não começou a ser adotada pelo Wushu Moderno; por exemplo, o manual de 1922, de Wu Zhiqing, a respeito da rotina de 10 estradas já utilizava esta nomenclatura. O manual de 1934, de Ma Yongzhen, também escreve 十路弹腿 (ver: https://www.plumpub.com/images/Biblio/t1004.jpg). O reconhecimento deste princípio da força elástica no Tantui antecede a sua incorporação no Wushu moderno, portanto.

Diferentemente, em 1917, no manual ilustrado da rotina de 12 estradas, da Livraria Chinesa de Xangai, a palavra utilizada, seguindo o que aparece também em materiais da Associação Jingwu, é 潭, em referência ao "Templo do Lago do Dragão", em Linqing, berço lendário do estilo, como já vimos na "Parte 1" desta série. A mesma grafia aparece em um manual de Liu He Tantui (六合潭腿), de 1933 (ver: https://www.plumpub.com/images/Biblio/t1005.jpg). Isso demonstra maior ênfase na história (lendária) do nascimento do estilo/forma do que nas suas características técnicas (sem, contudo, necessariamente negá-las).

Apesar de supostamente advir da versão da Jingwu, no Zhong Wudao do Mestre Sheng, a palavra "tan" das rotinas de 12 linhas de Tantui é grafada como 彈 e não 潭, o que talvez sugira uma outra proveniência ou, pelo menos, uma ênfase no seu entendimento técnico sobre o entendimento "histórico-literário". Nomenclaturas à parte, o entendimento da "força elástica" está, de algum modo, presente em todas as variações "modernas" das formas de Tantui, sejam elas do início do século XX, anteriores ao projeto do Wushu, sejam posteriores, já da segunda metade do século XX, quando passam a representar uma síntese técnica dos fundamentos de Chanquan moderno.

A versão da Associação Jingwu às vezes apresenta, como no material acima, a grafia 潭腿.

A força elástica parece ser uma chave relevante para entender a atração que o Tantui exerceu sobre tantas escolas e estilos diferentes de artes marciais chinesas, sobretudo, aquelas relacionadas ao conceito mais geral do "punho longo". Embora diversos estilos e artes marciais possam divergir sobre os métodos de geração e de aproveitamento da força elástica, ela está presente de modo muito central em vários deles, sejam considerados de escola "interna" ou "externa". Daí, talvez haja mais do que elogio hiperbólico no famoso ditado chinês de que, se o seu Tantui for bom, o seu Kung Fu também será. Talvez também haja nisso o reconhecimento, na essência do Tantui, de fundamentos comuns a várias artes marciais e seus respectivos estilos. Por isso, ele funciona tão bem como rotina básica e introdutória em tantas escolas, infelizmente sendo, por isso mesmo, muitas vezes, subvalorizado.

Apenas começo a apreciar o sabor da força elástica trabalhada no sistema de Ma Enchen. Mais do que apresentar formas "vazias" ou a serem decoradas, o sistema explora o seu entendimento por meio de exercícios específicos, práticas de Qigong, experiência com aplicações, técnicas com armas tradicionais etc. Trata-se de um currículo de muita riqueza e detalhes, voltado ao desenvolvimento de fundamentos técnicos-esportivos, sem dúvida, mas também com muito valor em si mesmo, seja pensando nos aspectos de consciência somática, seja pensando em aplicações para combate "real". Praticado isoladamente ou em paralelo com outra arte marcial ou estilo, ele traz muitos benefícios e não se resume a formas simples para iniciação no Kung Fu.

Referências Bibliográficas:


LU, C. Modern wushu: When Chinese martial arts meet Western sports, In: Archives of Budo, 2008, 4: 37-39. Disponível em: https://wushuspain.com/wp-content/uploads/2018/06/Modern-wushu-min.pdf. Acesso em 11 de dezembro de 2018.

MA, Z. 10 exercícios de projeção de pernas, São Paulo: Sampa, 1995.

MONTEIRO, F. História das artes marciais chinesas. Tradição, memórias e modernidade, Uberlândia: Assis Editora, 2014.


Outros recursos:


Baidu - Item 弹腿. Disponível em: https://baike.baidu.com/item/弹腿 . Acesso em 12 de dezembro de 2018.

BRENNAN TRANSLATION. Ten-line Tantui. Illustrated Handbook for the Muslim Art of Tantui (1922). Disponível em: https://brennantranslation.wordpress.com/2017/07/31/ten-line-tantui/. Acesso em 04/02/2018.

BRENNAN TRANSLATION. Twelve-line Tantui (1917). Disponível em: https://brennantranslation.wordpress.com/2013/01/27/twelve-line-tantui/. Acesso em 01/02/2018.

Filmografia de Ma Zhengbang - In: Hong Kong Cinémagic. Disponível em: http://www.hkcinemagic.com/en/people.asp?id=14788. Acesso em 12 de dezembro de 2018.

Fontes sobre Tantui - In: Plum Plublications. Disponível em: https://www.plumpub.com/info/knotebook/boxtantuia.htm. Acesso em 12 de dezembro de 2018.

Iron Legs of Tan Tui - Chinese Documentary (CCTV4). Versão bilíngue, Chinês-Inglês. Disponível em: https://youtu.be/eHDIYxi87pM. Acesso em 12 de dezembro de 2018.

Lives of Chinese Martial Artists (22): Wang Ziping and the Strength of the Nation. In: Kung Fu Tea. Disponível em: https://chinesemartialstudies.com/2018/06/15/lives-of-chinese-martial-artists-22-wang-ziping-and-the-strength-of-the-nation/. Acesso em 12 de novembro de 2018.

Ma Enchen 吗恩趁 - Programa Graduação Tantui 批个奧谈腿. Cópia disponibilizada pelo professor Niltoamar Pereira Gomes em novembro de 2018. Digitalizada por Guilherme Amaral Luz. 5 p. Acervo próprio.

Tan Tui - Is it a separate school of its own? In: Kung Fu Magazine Forums. Disponível em: http://www.kungfumagazine.com/forum/showthread.php?27492-Tan-Tui-Is-it-a-separate-school-of-its-own&s=81f1499a409ed221d8c455508b5757b8. Acesso em 11 de novembro de 2018.

Wang Zi-Ping - In: Wikipedia (En). Disponível em: https://en.wikipedia.org/wiki/Wang_Zi-Ping. Acesso em 12 de dezembro de 2018.

Xingyiquan by Ma Zhenbang (形意拳马振邦大师). Disponível em: https://youtu.be/3PqVQyL9ct0. Acesso em 12 de dezembro de 2018.

Yellow Bridge - Dictionaries, Tools, and Resources for Learning Chinese. Disponível em: https://www.yellowbridge.com/. Acesso em 12 de dezembro de 2018.

sábado, 17 de novembro de 2018

Caminhos Marciais e Humanidades no Twitter



Na busca por diversificar os meios de divulgação, compartilhamento e de diálogo sobre os textos publicados neste Blog, reativei e repaginei uma antiga e mal cuidada conta no Twitter, que, a partir de agora, receberá melhores cuidados. Siga-nos no Twitter, interaja conosco por lá. Estamos preparando outras novidades para o futuro.

Perfil no Twitter: https://twitter.com/guilherme_a_luz

#caminhos_marciais_e_humanidades @guilherme_a_luz


quinta-feira, 15 de novembro de 2018

Facebook considera este blog uma ameaça

Censura ao combate à violência contra mulheres e grupos LGBTI+ no Facebook!
Isso viola os meus padrões de comunidade!


Todos os leitores deste blog que me conhecem na rede sabem o quanto eu sempre fui ativo no meu perfil no Facebook. Lá, dentre outras postagens, eu sempre divulguei amplamente os conteúdos deste Blog. Mais de 90% dos acessos que este blog recebe vinham por meio do Facebook. Grupos específicos voltados às artes marciais e a outros temas aqui tratados eram canais importantes pelos quais eu divulgava este material.

Por isso, quando decidi encerrar a minha conta do Facebook, eu sabia que teria que criar uma outra, nem que fosse somente para divulgar os conteúdos deste blog. Isso não seria nenhuma novidade. Conheço dezenas de perfis que não se confundem com a vida pessoal dos seus donos. Não são perfis fake, nem sem identificação, mas perfis que privilegiam um único setor da vida de seus donos. Conheço dezenas de professores, por exemplo, que criam perfis somente para contato com os seus alunos da escola ou da universidade, perfis de associações de artes marciais, perfis de grupos de estudo etc.

Foi o que fiz. Tão logo exclui o meu perfil pessoal - cheio de fotos familiares, histórias sobre minha vida, amizades com pessoas estranhas, memórias de viagens e de momentos especiais -, criei um outro perfil bem mais sóbrio. Minha foto era o ideograma 道 (Dao), belamente caligrafado e selado, nos moldes da escrita tradicional. De fundo, uma paisagem de cachoeiras. Minha ideia inicial era colocar como nome Wudao Liberales, em referência a este blog, mas logo na primeira desativação da conta, percebi que não era possível e troquei para Guilherme Luz, deixando Wudao Liberales como apelido. Achei curioso porque tenho muitos amigos que usam pseudônimos há anos no Facebook, mas tudo bem.


Já com o meu nome verdadeiro, Guilherme Luz, comecei a montar o meu perfil, curtindo páginas de artes marciais, auto-defesa, cultura e língua chinesa, auto-defesa para mulheres, auto-defesa para LGBTI+ etc. Comecei a compartilhar conteúdos de artes marciais e a escrever sobre projetos de extensão passados e em fase de elaboração. Postei fotos e vídeos de projetos, de treinamentos, de cursos. Quando tentava postar matérias deste blog, o Facebook bloqueava. Dizia que o conteúdo feria as suas políticas. Tudo começou quando postei a matéria sobre feminicídio e sobre auto-defesa para LGBTI+. Quando escrevi uma postagem sobre o projeto de auto-defesa para LGBTI+ no ano que vem, meu perfil caiu de novo. Fui desativado!



Desde que o Facebook me excluiu, este blog teve uma queda vertiginosa de acessos. "Curiosamente", a última postagem com Facebook foi Feminicídio e Artes Marciais, com mais de 750 acessos até hoje. Já a primeira censurada, Autodefesa e a Comunidade LGBT: abordagem preliminar do problema, tem, até agora, menos de 40 acessos! Normalmente, as minhas postagens autorais têm ao redor de 200 a 350 acessos, quando postadas no Facebook. É "curioso" que a sobre feminicídio tenha tido mais que o dobro de acessos normais e, depois disso, meu perfil do Facebook tenha caído, junto com a proibição de postagem do meu blog no aplicativo, levando a uma queda vertiginosa dos seus acessos.

Peço a todos e todas que são contrários à censura, que conhecem este blog e gostam dos seus conteúdos, que divulguem este e outros textos que lanço por aqui. Vamos denunciar esta política sem critério do Facebook, que persegue o combate à violência enquanto tem sido cúmplice, do outro lado, de uma onda de discursos de ódio, fake news e lixo cultural espalhada pelas redes sociais! Não podemos ser reféns de aplicativos de celulares e páginas da Internet. Nós que deveríamos usá-los, não o contrário.

Post Scriptum: tentei contato com o Facebook pelo Help Centre várias vezes, sem sucesso, sem nem mesmo resposta.

segunda-feira, 29 de outubro de 2018

Autodefesa e a comunidade LGBT: abordagem preliminar do problema


Hoje, dia 29 de outubro de 2018, o Brasil acordou com um novo presidente eleito. Ao longo desta última campanha eleitoral, talvez uma das mais polarizadas e violentas da história da nossa frágil e jovem democracia, velhos ódios e intolerâncias foram inflamados e até mesmo instrumentalizados. O discurso conservador, defendido enfaticamente pelo grupo mais vitorioso no pleito (grupo que elegeu, além do presidente da República, governadores de vários estados e uma numerosa bancada no Congresso Nacional), foi utilizado pelos mais exaltados, que deram vazão a arroubos de violência. Não somente ocorreram diversos casos de agressão física como um número ainda maior de casos de ameaças e de constrangimento simbólico. Os diversos grupos LGBTI+, principalmente os transsexuais, são dos mais vulneráveis neste processo. Toda esta situação tem levado ao medo e até mesmo ao pânico muitas pessoas que se veem nesta condição.

Foi percebendo este contexto, ainda ao longo do processo eleitoral, que tive a ideia de criar, para 2019-2020, um projeto de extensão voltado especialmente para lidar com o problema. Várias pessoas da comunidade LGBTI+ já estão procurando artes marciais e aulas de defesa pessoal para se protegerem. Entretanto, eu penso que esta busca é insuficiente se não vier acompanhada de outros instrumentos importantes e outras atitudes/atividades auto-protetivas e de auto-conhecimento. Cabe assinalar, também, que o fenômeno, infelizmente, não se resume ao Brasil e ao nosso processo político-eleitoral. Ele é crescente mundialmente, acompanhando ondas de conservadorismo também em países da Europa onde, em tese, haveria maior tolerância, como é o caso da França. Por isso, é importante também compreender o fenômeno como um todo, nas suas articulações locais, nacionais e globais.

Primeiramente, ainda não existe, no Brasil, uma cultura bem estabelecida de oferta de aulas de artes marciais para o público LGBTI+. Em outra publicação, tratamos um pouco deste tema: O problema dos gêneros e a prática de artes marciais. Há uma forte cultura masculina e mesmo machista em ambientes de artes marciais, ainda que nem sempre se reconheça isso. Também tratamos do assunto no texto Feminicídio e artes marciais. Em outros países, como na Inglaterra, encontram-se academias de artes marciais mais atentas à inclusão de mulheres e do público LGBTI+. Conheça uma destas iniciativas no vídeo abaixo (em inglês):



Aqui no Brasil, este é um seguimento ainda pouco explorado do mercado de artes marciais e que deve crescer e promete bons rendimentos para os que se aventurarem no negócio. Mas ainda não basta. Um trabalho muito mais amplo precisa ser feito de investigação, de estabelecimento de redes e de multiplicação de condutas e orientações práticas. Em boa medida, é o que pretenderemos desenvolver com muita seriedade em nosso projeto a partir do ano que vem.

Uma atitude que me preocupa e deriva de um certo pânico do momento é a busca por informações parciais e materiais supostamente autodidáticos, com uma certa dose de voluntarismo. É preciso ter muito cuidado. Artes marciais são atividades potencialmente perigosas, em múltiplos sentidos, quando não envolvem estudo, prática e treino muito bem orientado. Não é impossível aprender muita coisa sozinho, mas é muito melhor aprender com quem sabe o que está fazendo e tem experiência com as melhores formas de ensinar. Cuidado também com os aproveitadores e charlatões oportunistas que vejam neste momento de medo uma chance de encherem os próprios bolsos.

Além disso, arte marcial para auto-defesa não se limita ao domínio de técnicas. Muito mais do que isso, é uma arte completa de autodomínio, envolvendo perfeita harmonia de corpo, mente e emoções. Na maior parte das situações, o mais protetivo é não entrar em provocações, o que se consegue facilmente quando se tem uma autoestima fortalecida. Muito do trabalho marcial é sobre o fortalecimento da autoestima e isso não se consegue lendo manuais sozinho, enquanto a cabeça se encontra no labirinto do pânico.

Se você for gay, lésbica, transexual, intersexo, queer ou se identificar com qualquer outro espectro desta comunidade e quiser começar a praticar artes marciais para se defender, apresento algumas dicas e sugestões:

1) Não se aprende artes marciais do dia para a noite, muito menos a ponto de se tornar capaz de utilizá-la para autodefesa. Por isso, tenha em vista que um curso de curta duração não adiantará muito. Quando começar, tenha consciência de que precisará de alguns meses ou anos para se tornar hábil a ponto de se defender contra agressores minimamente perigosos em situações de riscos medianos;

2) Não parta do princípio que você é incapaz de se defender. Não pense assim: "eu não tenho força"... Arte marcial não tem nada a ver com força. E, quando ela precisar de alguma força, ela lhe dará meios também para desenvolvê-la. O mais importante, de novo, é ter bons professores e ter determinação para treinar (tanto a parte técnica quanto à física, quando elas já não estiverem integradas no mesmo exercício);

3) Compreenda que as artes marciais são caminhos de vida e que pretendem alterar a sua relação com todo o mundo à sua volta. Bem praticadas, elas afetam as suas emoções, as suas sensações, as suas visões de mundo, a sua vida de modo geral. Assim, não parta de uma visão puramente instrumental da técnica. Ela é apenas a parte mais fácil e menos útil de um conjunto maior e melhor de autoconhecimento e de cuidado de si;

4) Comprometa-se com a sua comunidade. Lembre-se: você tem como motivação defender-se contra agressões de quem não aceita quem e como você é. Portanto, seja solidário ou solidária com outras pessoas que estão na mesma situação que você. Seja um multiplicador de tudo o que aprender. Inclusive, uma vez que se tornar proficiente em técnicas, ensine outras pessoas. Tenha isso no seu horizonte;

5) Comprometa-se com aqueles que estão ajudando: seus colegas de treino (LGBTI+ ou não) e seus professores (LGBTI+ ou nçao). O pior vício de praticantes de artes marciais modernos é acharem que aquilo que desenvolvem é individual. Quando um professor passa uma técnica, ele está transmitindo um conhecimento que, até chegar a você, percorreu um longo caminho no tempo e no espaço. Respeite este legado. Tenha reverência aos mestres e ao local de treinamento. Comprometa-se com a arte;

6) Procure um lugar em que você se sinta à vontade para treinar, sendo quem você é, sem se esconder. Se você passará anos da sua vida naquele lugar, ele tem que ser confortável. Não se esconda. Se sentir que não há clima para você ser quem você é, não será possível durar muito tempo ali. Melhor sair logo e procurar outro lugar, outra arte, outro professor ou professora etc;

7) Forme, se possível, um grupo que tenha interesse de treinar junto. Além de ser muito útil para desenvolvimento técnico, isso pode facilitar na socialização;

8) Nunca se envolva em brigas. Sempre as evite. Aprenda a se defender e lembre-se: quem não briga não se machuca, logo, pratica a melhor das auto-defesas. Não aceitar provocações e tomar medidas preventivas, desde o início, devem ser o seu "mantra". De maneira alguma seja quem começa o conflito;

9) Compreenda que o agressor é fraco! Ele pode estar armado, ter força física e até ter técnica, mas um agressor que violenta as pessoas por serem diferentes é alguém ética e emocionalmente frágil! Fortaleça-se ética e emocionalmente. É neste campo que você conseguirá se proteger melhor;

10) Não deposite confiança em armas. Mesmo que você utilize armas para se defender (de fogo ou não), o que realmente protege é mente ativa e tranquila. Armas nas mãos de alguém com mente agitada e confusa apenas se torna um perigo a mais.

Espero ter sido útil. Qualquer coisa, entre em contato. Ficarei feliz se puder ajudar. Qualquer pergunta ou dúvida, faça. Se eu não souber responder, ajudarei a procurar respostas.

sexta-feira, 19 de outubro de 2018

Participação no II Encontro de Conferencistas da Casa Plural (2017)

Um dos nossos principais parceiros dos projetos que conduzimos desde o início vem sendo a Casa Plural, de Tupaciguara-MG, um grupo de pessoas idealistas que, sem qualquer finalidade lucrativa ou político-eleitoral, organizou-se para fomentar a cultura e a cidadania na pequena cidade de Tupaciguara, no Triângulo Mineiro. E 2017, apresentamos o projeto "Kung Fu: interfaces entre artes marciais e educação em humanidades" no II Encontro de Conferencistas da Casa Plural. Foi uma oportunidade de conversar com as pessoas da cidade sobre o que vínhamos fazendo por lá. Fazemos o convite para que assistam ao registro do evento em vídeo produzido pelos seus organizadores. Muito obrigado, Casa Plural!

quarta-feira, 26 de setembro de 2018

Feminicídio e artes marciais


No dia 20 de setembro de 2018, há aproximadamente uma semana, foi divulgado pela mídia um laudo do IML, confirmando que Tatiane Spizner foi morta por estrangulamento. O réu acusado de sua morte é o próprio marido, que, segundo as notícias veiculadas, é faixa roxa de Jiu-Jitsu.

Conheça o caso:



Não adianta tampar o sol com a peneira: o uso de técnicas de artes marciais fatais, no caso, do Jiu-Jitsu, para esganar, asfixiar e, assim, matar esta mulher é um fato que necessita ser pensado, questionado e denunciado! Evidentemente, não se trata de demonizar o Jiu-Jitsu ou qualquer outra arte marcial. Toda arte marcial é perigosa. O que precisamos entender é o que pode estar favorecendo o uso de artes marciais para finalidades como esta. Eu gostaria de levantar pelo menos três fatores que potencializam isso na história recente da difusão e da prática das artes marciais no mundo.


1. Negligência ou má compreensão quanto à ética marcial


Há uma história nas artes marciais chinesas (em parte lendária, em parte real) de que, antes de ensinar algo realmente importante para os alunos, os mestres ou professores devem testá-los por ao menos dois anos. Este "teste de índole" ou de "caráter" teria como objetivo evitar que alunos violentos ou de atitudes inadequadas pudessem agir de modo a envergonhar o seu mestre e a sua arte. Durante um tempo, antes do ensino de técnicas de luta, o professor cuidaria principalmente da formação civil do caráter do aluno, ensinando-o sobre valores compartilhados na sua cultura. Vários mestres importantes enfatizaram isso, sobretudo, a partir de concepções confucionistas. Dois exemplos que eu posso citar de cabeça são o Mestre Yang Banhou (recentemente analisado pelo professor Roque Severino em seu Tai Chi Chuan - A arte de meditação no movimento) e o Sensei Gichin Funakoshi.

Este valor ou primazia do civil sobre o marcial, enfatizado em escolas tradicionais de artes marciais asiáticas, é mal compreendido e até mesmo negado por praticantes contemporâneos de artes marciais (inclusive de artes marciais tradicionais). Muitos deles argumentam que as funções básicas das artes marciais são relacionadas à defesa e ao ataque, inclusive ao ferir e ao matar. A dimensão ética ou filosófica (civil) seria somente um subproduto, uma função secundária, introduzida em momentos posteriores da história das suas evoluções. Além de um erro histórico, esta concepção é uma armadilha ética, pois dá autonomia à marcialidade como um fim em si próprio e não como meio de autoconhecimento, auto-uso e auto-realização.

Por outro lado, há aqueles que entendem a ética marcial de maneira culturalmente deslocada e associam wu ao militarismo. Sobre este equívoco, já escrevemos um outro artigo ao qual me remeto aqui para não ficar repetitivo. Sob esta perspectiva, a ética acaba sendo resumida há um rol relativamente restrito de preceitos relacionados à hierarquia, à obediência, à lealdade e aos rituais formais de um Dojo, Dao Chang ou academia. As conexões necessárias entre o wu (武) e wen (文), características da wude (武德) das artes marciais chinesas, ficam perdidas e os referenciais éticos do praticante, embaçados por preconceitos advindos da sua cultura, muitas vezes, patriarcal, militarista e mesmo totalitária.

No ambiente comercial das academias de artes marciais contemporâneas, há negligência enorme quanto ao estudo criterioso e qualitativo das culturas relativas ao universo das artes marciais. Junto com isso, a ética marcial decai e a violência, muitas vezes, aflora. Muitos praticantes, inclusive professores e mestres, chegam a menosprezar o estudo e a leitura das tradições filosóficas relacionadas as suas artes, considerando algo menor ou mesmo "frescura". E desta ignorância nasce a sementinha da barbárie.

2. O machismo nas artes marciais


Também já abordamos o tema do gênero na prática das artes marciais e me remeto ao artigo para não ficarmos repetitivos: aqui. Não tenho dados estatísticos confiáveis a respeito, mas é visível, quando se frequenta espaços relacionados às artes marciais asiáticas (no Brasil), que a enorme maioria de praticantes é do sexo masculino. Isso talvez só seja exceção no Taijiquan - socialmente associada (equivocadamente) a uma arte "suave", que "só" mereceria ser praticada por finalidades "terapêuticas" - e no Muay Thai - que ganhou a fama de ser uma atividade fitness. Quando se fala em artes marciais para competição ou para "defesa pessoal", a maior parte dos interessados é sempre homem. Mulheres neste meio, inclusive, são vítimas de muito preconceito e discriminação.

Este ambiente é altamente atrativo a públicos machistas, cujos hábitos mentais e de comportamento, algumas vezes, denotam sérios problemas de relacionamento com o sexo oposto e/ou com a sua própria sexualidade. Sem querer fazer aqui qualquer tipo de análise que reforce estereótipos, mas apenas mencionando alguns tipos que recorrentemente aparecem para aprender artes marciais, há entre eles muitos meninos que buscam estas atividades para vencer a timidez, enfrentar o bullying ou para dar vazão ou melhor controle à sua agressividade. Por trás disso, também sem querer fazer psicologia barata, há muitos traumas que o acompanham desde o ambiente familiar. Em suma: tem muitos homens e meninos nas artes marciais na busca de resolver problemas relacionados à sua masculinidade.

Este público masculino mais problemático que frequenta o universo das artes marciais não é um problema em si. O problema é propriamente quando os seus professores e mestres (muitos dos quais sofredores dos mesmos problemas) ignoram ou fecham os olhos para ele, não conseguindo, portanto, ajudar os seus alunos a superá-lo. O problema é quanto o comportamento deste público contamina o ambiente e passa atrair somente ou majoritariamente este tipo de perfil para dentro de uma academia ou de uma arte, tornando-a hostil, por exemplo, a mulheres, homossexuais, idosos etc. Esta "arte marcial testosterona" é mais comum do que se pode imaginar e bastante traiçoeira, pois muitos dos seus sujeitos não conseguem se reconhecer nela.


3. A esportivização do "Vale Tudo" e a massificação das Artes Marciais Mistas (MMA)


Na história contemporânea, uma das condições de preservação e expansão da prática das artes marciais asiáticas foi a sua esportivização. Assim como outras práticas potencialmente violentas do ocidente, no século XIX e início do século XX, a transformação de artes marciais em esporte fez parte de um processo que, na Sociologia, recebe o nome de "civilizador". É interessante lembrar que, como afirmei acima, nas artes marciais, o civil, de certo modo, acompanha e precede o marcial. Quando estas artes se tornam esporte, o aspecto "civil" acentua-se, embora com outros significados éticos ligados a valores de "competição saudável", tais como o fair play, o respeito ao adversário e a importância da preparação/treinamento. A esportivização das artes marciais significa também o abrandamento do seu potencial violento. Ela limitou o uso da força e das técnicas mais lesivas ou letais em competições de modo que a luta esportiva tornou-se "artificial".

A artificialidade das lutas esportivas em determinado momento da história (a partir de por volta dos anos 1980 e 1990) levou a questionamentos sobre a "eficácia" destas artes em situações "reais" de defesa e de combate. Foi, neste contexto, que surgiram as competições de "vale tudo" (em países como o Brasil e os EUA). Estas competições, muitas vezes clandestinas, primavam pela ausência de regras e de restrições a golpes perigosos. Entre os desafiantes, não raro, havia aqueles que buscavam a demonstrar o quanto a sua arte era "superior" às demais em contextos similares ao da "realidade". Foi assim, inclusive, que o Jiu-Jitsu brasileiro ganhou fama. Sua difusão mundial esteve (como de certo modo ainda está) muito relacionada à eficácia de suas técnicas neste tipo de competição.

Com o tempo e a necessidade de se institucionalizar e garantir um mercado, o "Vale Tudo" evoluiu para o MMA, as Artes Marciais Mistas. Neste processo, o minimalismo de regras foi alterado. As lutas de MMA, por exemplo, envolvem categorias por peso, um controle anti-doping e possuem preocupações com a integridade física dos competidores. Os competidores dos grandes eventos de MMA são atletas profissionais bem preparados e devotados ao seu esporte. Este esporte é mundialmente ascendente em popularidade e, no Brasil, possui legiões de fans.

O MMA não é um problema em si. Trata-se de um esporte (sem dúvidas arriscado e violento) com muitos adeptos e tão legítimo quanto qualquer outro. Seus competidores são adultos, sabem o que estão fazendo e se preparam para o que fazem. O problema é que, como um esporte de massa, possui fãs de todos os tipos, inclusive aqueles que, com pouco ou nenhum tipo de preparo ou conhecimento de artes marciais, fantasiam-se capazes das mesmas façanhas de seus heróis. É um público que procura academias e, frequentemente, também está associado aos dois fatores que citei anteriormente: o machismo e a ignorância. Tais fantasias relacionam-se a conceitos de dominação, submissão e opressão do outro. Inclusive do outro sexo.


Considerações Finais


Em conclusão, eu gostaria de fazer algumas considerações. Primeiro, não é o caso de condenarmos as artes marciais (o Jiu-Jitsu ou qualquer outra em particular). O que precisamos condenar é o modo que tais artes vêm sendo ensinadas e passadas para pessoas sem atenção ao mínimo de estrutura emocional, cultural e ética dos praticantes. Neste sentido, causa-me arrepios, por exemplo, a ideia de ensino de artes marciais nas escolas sem um cuidado muito grande com o seu modo de transmissão e o contexto do seu aprendizado.

Em segundo lugar, é preciso recuperar a dimensão civil das artes marciais e enfatizar os seus aspectos de autoconhecimento, de controle das emoções e de fruição cultural. Enquanto isso for secundário frente a demandas de auto-defesa e de técnicas de combate, mais suscetíveis estaremos à violência por meio destas artes.

Terceiro, embora o MMA seja legítimo como prática esportiva, é preciso criar meios de controle da violência em potencial de parte de seu público, seja por meio de uma política mais restritiva de classificação etária, seja por meio de campanhas e práticas efetivas organizadas pelas empresas que comandam este negócio.

Em quarto e último lugar, talvez mais importante neste caso específico, a sociedade brasileira em geral e as comunidades marciais, de modo mais específico, devem ser intransigentes com o feminicídio, as práticas misóginas e os pensamento e comportamento machistas. Está na hora, no caso das comunidades marciais, de dar bons exemplos, inclusive por meio de banimentos e perda de graduação para aqueles praticantes que se envolvam em casos de violência de modo geral, mas especialmente nos recorrentes casos de violência de gênero. É necessário que as associações, federações e academias desenvolvam estratégias positivas de acolhimento de mulheres e do público LGBT. Esta é uma dívida histórica das artes marciais que não pode mais tardar e que tem feito muitas vítimas, desonrando e envergonhando os nossos mestres, nossos ancestrais e a nossa história.

quarta-feira, 15 de agosto de 2018

Fronteiras das artes marciais e limites de compreensão

Chinesas? Japonesas? Coreanas? Malaias? Tailandesas? Brasileiras?
Serão mesmo as artes marciais restritas à geografia das nações modernas?

Há tempos não atualizo este Blog. Tomado pelos afazeres (nem sempre prazerosos) do trabalho e do cotidiano, tive que interromper o ritmo das publicações. Retorno para abordar uma temática polêmica. Hoje, naturalizamos certos conceitos que são frutos de acidentes históricos. Enxergamos com os olhos do presente o resultado parcial e momentâneo de séculos de rupturas e continuidades. Atribuímos identidade muitas vezes petrificadas a culturas vivas e pulsantes. É o caso das artes marciais (todas elas!).

Tomemos, por exemplo, uma das artes mais associadas ao Japão: o Karatê. Sabemos que, originário das ilhas Ryu Kyu, modernamente nomeadas como Okinawa, antes de se tornar as "mãos vazias", pela interpretação de Gichin Funakoshi, era uma arte marcial conhecida pelo nome de "mãos chinesas", em provável alusão ou atribuição às suas origens em artes presentes na Província de Fujian (ou Fukien). A japonização das "mãos chinesas" está ligada a um processo de natureza geopolítica e militar pelo qual passava o leste asiático no século XIX.

O caso do Karatê é muito conhecido, pois esta arte foi das primeiras a se popularizarem fora da ásia, atraindo interesses de americanos e europeus. Mas a sua história não é tão distinta à de muitas outras artes que só foram se tornando conhecidas e praticadas em tempos mais recentes na Europa e nos EUA, como é o caso das artes malaias, filipinas e da Indonésia, por exemplo. Entre os séculos XVI e XVIII, ocorreram muitas transformações históricas importantes no mundo todo e, em particular, no leste asiático. É um contexto histórico também muito decisivo para as artes marciais e talvez seja oportuno falar sobre isso.

Neste período, podemos destacar pelo menos três vetores importantes que alteraram as feições do leste asiático. Desde o início do século XVI, tem-se o início do processo de expansão comercial e marítimo europeu para o extremo oriente. Portugueses, espanhóis, seguidos por holandeses, franceses e ingleses iriam se estabelecer militar e comercialmente em várias partes da costa asiática no Pacífico, tais como em Macau, Filipinas, Formosa (Taiwan), Batávia (Jacarta) etc. Outro vetor importante é a queda da Dinastia Ming e o início da Dinastia Qing, da China, quando há um dos mais intensos processos de expansão dos domínios territoriais chineses e uma profunda reestruturação das relações interétnicas no seu interior. Por último, no início do século XVII, tem início, no Japão, a Era Tokugawa ou o Edo Bakufu. Todas as regiões do leste asiático foram, em algum aspecto, bastante afetadas por ao menos um destes três vetores.

No caso das artes marciais, pode-se destacar dois fenômenos bastante articulados a este contexto: o desenvolvimento e o ganho de interesse pelas artes marciais de punho (quan, 拳) na transição entre as eras Ming e Qing, na China; a mudança do estatuto social dos samurais na Era Edo.

No caso Chinês, as artes marciais de punho associavam-se, muitas vezes de modo ambíguo ou sutil e outras de modo mais explícito, à resistência étnica Han à nova dinastia. Um exemplo é a própria associação (por mais que fantasiosa) do Mosteiro Shaolin e dos seus monges guerreiros com a formação de seitas sediciosas, como a Tiandihui (天地会), Sociedade do Céu e da Terra. Outro exemplo é o Neijiaquan (内家拳). Huang Zongxi, em 1669, atribuiu a sua arte ao meio-lendário monge taoista Zhang Sanfeng, das montanhas de Wudang (武当山), o que autores como Douglas Wile e Meir Shahar interpretam como efeito do partidarismo Ming da família Huang frente ao início do domínio Manchu e às tentativas de cooptação dos chineses Han, no reinado de Kangxi.

No caso Japonês, a partir do século XVII, o Bushido (武士道), código ético dos guerreiros samurais, ganhará um renovado sentido. A elevação social da classe dos samurais e a sua ociosidade nos cada vez mais longos momentos de paz favoreceram um processo de sofisticação cultural e de nobilitação ética por parte dos clãs. A distinção, neste caso, não estaria tanto ligada somente ao uso eficiente das armas, mas a uma aura de excelência moral e espiritual, inspirada no Confucionismo e no Budismo Zen. É quando, por exemplo, surge o livro Hagakure (葉隱), de Yamamoto Tsunetomo, no qual se encontra, por exemplo, uma apologia ao suicídio ritual do Seppuku (切腹), mesmo após as suas proibições oficiais.

Tanto na China Qing, no interior das famílias Han, quanto no Japão Edo, entre os Samurais, as artes marciais foram assimiladas ao universo da alta cultura. Na China, o par Wu Wen (武文) torna-se uma constante nos círculos mais literários ligados às artes marciais de punho. No caso do Japão, é exemplar o caráter especial que passa a acompanhar a simbologia da katana. Símbolo máximo da honra do Samurai, sua espada era forjada por meio de técnicas que não eram só de natureza metalúrgica, mas também ritual.

Porém, as artes marciais não se restringiam aos círculos da alta cultura das famílias de chineses Han, tampouco dos samurais japoneses. Para além (ou aquém) dos elevados valores éticos confucionistas e das ligações que eram feitas entre as técnicas marciais e os universos simbólicos e filosóficos do taoismo, do budismo e do xintoísmo, por exemplo, as artes marciais também continuavam a servir outros fins, dentre os quais, a defesa, a sobrevivência, a diversão popular e até mesmo as práticas ilícitas. Na China, hoje sabemos o quanto foi importante o contexto dos "rios e lagos" (jianghu, 江湖) para o desenvolvimento das artes marciais. As populações itinerantes da China entre o final da Dinastia Ming e início da Dinastia Qing reuniam artistas marciais, atores de teatro popular, contadores de histórias, adivinhos e muitos outros sujeitos sociais errantes, que se encontravam pelos caminhos e, não raro, eram acolhidos em mosteiros taoistas e budistas pelo interior da China. Neste ambiente, as artes marciais estiveram sujeitas a um franco processo de circularidade cultural. Nele, a elite letrada interessada nas artes de punho encontrava-se com monges itinerantes, artistas populares e até mesmo bandidos, trocando técnicas, entendimentos, experiências e anedotas sobre os seus estilos.

Outro contexto importante no surgimento, desenvolvimento e difusão de artes marciais nos séculos XVI, XVII e XVIII, na China, eram as vilas, sobretudo aquelas localizadas nas Províncias com menor presença e controle por parte de Beijing. Sujeitas a ações de grupos marginais de bandidos e de rebeldes, estas vilas precisavam desenvolver as suas milícias. Sua população era treinada militarmente por professores locais ou mestres contratados de fora. Por segurança, suas técnicas e táticas de combate ficavam em segredo e eram passadas somente para os conterrâneos. Em momentos de guerra, como nas crises que marcaram o fim da Era Ming e início da Era Qing, muitas destas populações eram arregimentadas e treinadas por generais do Império. Isso pode ter sido um fator importante de popularização de técnicas e conhecimentos marciais junto ao "povo comum".

Duas regiões insulares nas fronteiras entre a China e o Japão do século XVII são importantes para a compreensão deste momento histórico: Taiwan e Okinawa. No final da Era Ming, na China, as duas regiões foram parcialmente relacionadas ao Império Chinês. Okinawa, então do Reino de Ryukyu, tornou-se tributária do Império Chinês no final do século XVI, mas, no início do século XVII, em meio à crise dinástica da China e o advento do Xogunato Tokugawa, foi submetida ao Japão. As relações entre as ilhas Ryu Kyu com a China eram intensas e eram intermediadas pela província de Fujian (Fukien). De lá, pode ter chegado a influência principal das artes marciais de Okinawa.

Também Taiwan estava articulada a província de Fujian. Aproximadamente entre as décadas de 1640 e 1680, Taiwan foi território em disputa entre holandeses, colonos chineses ligados ao comércio no Pacífico e o Império Qing. Os colonos chineses eram liderados pela família Zheng, ligada à pirataria e à navegação, constituindo uma rede comercial que se estendia entre Macau e Nagazaki, passando por Fujian, Taiwan e Okinawa. O mais famoso líder da família foi Zheng Chenggong, conhecido como Coxinga. Ele possuía uma fortaleza em Amoy (Xiamen) na costa sul de Fujian, que dava acesso portuário ao sul de Taiwan. De lá ele conseguiu expulsar os holandeses da colônia da Zeelândia, obrigando-os a refugiarem-se para a Batávia (Jacarta), na ilha de Java, Indonésia. Coxinga era um típico sujeito de fronteiras. Sua mãe era japonesa e seu pai chinês e, conforme o historiador Jonathan Spence, sua fortaleza em Amoy abrigava uma capela com imagens budistas e cristãs; em sua guarda de segurança, havia inclusive africanos fugidos da tutela de portugueses em Macau.

Na década de 1680, após consolidar-se no continente ao conter a guerra dos Três Feudatários, no sul da China, o Império Qing pode concentrar-se na conquista de Taiwan. Apesar da vitória contra o clã dos Zheng, Beijing tornou-se omissa na administração da Ilha. Assim, ela se tornou, por muito tempo, aberta a aventureiros e pessoas ambiciosas, principalmente, ligadas ao comércio e com ligações nas províncias sulistas da China (como Fujian e Cantão). A Dinastia Qing era bastante arredia ao grande comércio e evitava a presença de estrangeiros na maior parte de seu território. Mas nas franjas do Império, em lugares como Taiwan, isto se deu intensamente, tornando a região estratégica para a participação europeia no mercado asiático.

Hoje em dia, muitas artes marciais chinesas são praticadas em Taiwan. Entretanto, a maior parte das escolas foram criadas por lá na segunda metade do século XX, por mestres vindos da China Continental, no contexto da Guerra Civil, que destituiu os Nacionalistas do poder e instituiu a República Popular da China, sob o governo do Partido Comunista. Antes disso, porém, é muito possível que sistemas autóctones tenham sido desenvolvidos na ilha e fossem muito parecidos com os ancestrais de artes marciais de Okinawa, das Filipinas ou da Indonésia. Da mesma forma, é possível que tenha havido muita troca de saberes e técnicas marciais entre os sujeitos que circulavam pelas redes comerciais do Pacífico (em outra publicação, já falamos um pouco sobre isso: http://wudao-liberales.blogspot.com/2017/06/afinal-qual-graca-do-nunchaku.html).

Recentemente, um amigo compartilhou um vídeo nas redes sociais de um grupo de praticantes de Pencak Silat, de Jacarta, que me chamou muita atenção por conta de eu ter sentido muitas semelhanças com o universo das artes marciais chinesas. Segue o vídeo:


Eu fiz o seguinte comentário: "só eu vi alguma semelhança com o Louva Deus?" E ele me respondeu: "sentia familiaridade enquanto assistia mas não tinha associado com o tang lang, reassistindo realmente parece, muitas movimentação de braço com pernas mais estáticas, eixo mais curto e central na movimentação dos braços, o recurso didático ou estética de bater contra os próprios braços e emitir sons, os tipos de envolvimento dos braços e ganchos com as pernas, etc." Claro isto não quer dizer nem muito menos prova nenhuma relação efetiva entre o Tanglangquan e o Pencak Silat. Aliás, é bem provável que esta impressão puramente "achista" nossa seja equivocada. São realmente impressões vagas e sem qualquer tipo de critério mais rigoroso de avaliação. Pode ser que as semelhanças sejam acidentais ou, mesmo que não, relacionem-se a um contexto de intercâmbio mais recente.

Para efeito de alguma comparação (levando em conta que, mesmo sendo um vídeo de Taiwan, provavelmente, isto não tem relação com as artes marciais da Ilha nos séculos XVII e XVIII), ver este exemplo mais moderno de Tanglangquan:


Não pude, ainda assim, evitar de pensar que Jacarta, nos séculos XVII e XVIII, foi o refúgio dos Holandeses expulsos de Taiwan por Coxinga, base de atividades da Companhia das Índias Orientais, que cultivavam lá cana-de-açúcar com mão-de-obra de imigrantes chineses. Também não pude deixar de me lembrar que, neste contexto, javaneses e chineses chegaram a se juntar em rebeliões contra os holandeses e que, talvez, com alguma plausibilidade, eles tenham trocado conhecimentos sobre técnicas de combate.

Fui, então, consultar a importante enciclopédia  de artes marciais mundiais do professor Thomas Green a fim de conferir as possíveis conexões entre o Pencak Silat e as artes marciais chinesas. Encontrei duas referências importantes. Uma no verbete Political Conflict and the Martial Arts e outra no próprio verbete Silat. Nos dois casos, enfatiza-se a crença de antigos praticantes de Pencak Silat em técnicas esotéricas (o tenaga dalam) capazes de tornar o corpo invulnerável (inclusive a armas de fogo). O autor compara estes métodos "mágicos" àqueles presente na Guerra dos Boxers, como o Jinzhong Zhao (金钟罩). Contudo, enquanto a teorização chinesa destes métodos apela a um vocabulário e a uma semântica taoista da circulação do Qi (气), o tenaga dalam é explicado em termos sufistas, próprios do misticismo islâmico difundido em Java. Interessantemente, assim como os Boxers recuperaram métodos desta natureza para combater europeus na China no século XIX, o Pencak Silat foi recuperado e, de certo modo, redescoberto, no contexto das lutas anti-coloniais da Indonésia, contra holandeses, na época da II Guerra Mundial. Atualmente, as escolas modernas de Silat negam as práticas de tenaga dalam como parte de seus sistemas. De modo análogo, as artes marciais chinesas modernas buscam se dissociar daqueles métodos "mágicos" ou "xamânicos", tomados como "supersticiosos".

É claro que Karatê é Karatê, Silat é Silat e Tanglangquan é Tanlangquan! Não estamos dizendo que todas as artes sejam simplesmente a mesma coisa. Há enormes diferenças técnicas, teóricas e de entendimento entre elas. Em cada cultura em que se fizeram e se fazem presente, adquirem seus novos significados e articulam-se aos seus atributos próprios, seja no âmbito da literatura, da língua, da ética, da filosofia, da religião ou da estética, por exemplo. O que queremos dizer é que elas estão conectadas historicamente e não podem ser reduzidas a substâncias coincidentes com o espírito de um único povo, nação ou etnia. Suas fronteiras são porosas há muitos séculos. Elas relacionam-se entre si desde muito tempo, não só a partir do momento de sua ocidentalização. Além disso, queremos dizer que fora de ambientes aristocráticos das famílias chinesas Han e dos clãs de samurais japoneses, há muita história das artes marciais. Histórias marginais, que nem sempre encontraram disposição de registro entre viajantes japoneses, generais da Dinastia Ming ou letrados Han da Dinastia Qing. Conhecer a fundo as suas histórias talvez seja muito difícil, por conta da escassez de fontes. Isso não é motivo, entretanto, para as negar.

Referências Bibliográficas:


GREEN, T. A. Martial arts of the World: an Encyclopedia, Santa Barbara: ABC-CLIO, 2001.

HENNING, S. The Chinese martial arts in historical perspective. In: Military Affairs, 45(4): 173-179, 1981.

KNYSH, A. D. Islamic Mysticism: a short history, Leiden: Brill, 2000.

KOBAYASHI, L. Peregrinos do sol: a arte da espada samurai, São Paulo: Estação Liberdade, 2010.

LORGE, P. Chinese Martial Arts: from Antiquity to the twenty-first century, Cambridge: Cambridge University Press, 2012.

MEYER, M. W. Japan: a concise history, Lanham: Rowman & Littlefield, 2009.

MONTEIRO, F. P. História das artes marciais chinesas. Tradição, memórias e modernidade. Uberlândia: Assis Editora, 2014.

OSBORNE, M. E. Southeast Asia: an introductory history, Crowns Nest: Allen & Unwin, 2010.

PINGUET, M. A morte voluntária no Japão, Rio de Janeiro: Rocco, 1987.

SHAHAR, M. O mosteiro Shaolin. História, religião e as artes marciais chinesas, São Paulo: Perspectiva, 2011.

SHAHAR, M., Evidências da Prática Marcial em Shaolin durante o Período Ming, In: REVER - Revista de Estudos da Religião, n. 04: 93-144, 2003.

SPENCE, J. D. Em busca da China moderna, São Paulo: Companhia das Letras, 1995.

WETZLER, S. Myths of the martial arts, In: JOMEC Journal, n. 05: 1-13, 2014. Disponível em: https://publications.cardiffuniversitypress.org/index.php/JOMEC/article/view/332/339. Acesso em 10/10/2017.

WILE, D. T'ai Chi's Ancestors: the making of an internal art, New City: Sweet Ch'i Press, 1999.

Links de referência:


https://en.wikipedia.org/wiki/History_of_the_Ryukyu_Islands

https://en.wikipedia.org/wiki/Jakarta

http://www.niten.org.br/penaespada/penaartigos/hagakure.html

terça-feira, 13 de março de 2018

O Que é Tantui? (Parte 4: A Versão da FMKK)

Introdução:

Volto a falar do Tantui após uma breve pausa para refletir em geral sobre as relações entre as artes marciais chinesas e o tema da guerra. Nesta parte da série, pretendo apresentar a versão de Shier Lu Tantui (十二路弹腿) da Federação Mineira de Kung Fu Kuoshu (FMKK), que é a versão que eu estudo e a que acabo de começar a ensinar para os alunos do projeto "Kung Fu: interfaces entre prática de arte marcial e ensino e aprendizagem em Humanidades (Ano III)", desenvolvido em Tupaciguara-MG, na Escola Estadual Sebastião Dias Ferraz.

Recapitulando, na primeira parte da série, abordamos a respeito das origens da forma, suas relações com o chamado Jiaomen (教门) dos Hui (回) e como ela foi incorporada a programas mais modernizados de aprendizagem de artes marciais desde o início do século XX, por meio, principalmente, da Associação Atlética Jingwu (精武体育会). Na segunda e na terceira partes, o foco foi metodológico, quando abordamos cinco operações que acompanham o estudo da forma, segundo a minha concepção e percepção: memória, análise, síntese (temas da segunda parte), experimentação e aplicação (temas da terceira parte). Agora, apresentar a versão da FMKK é importante, pois as suas especificidades não são generalizáveis e a compreensão que tenho da forma se articula a um conjunto maior do qual ela se tornou parte.

A FMKK e o seu Sistema Básico:

O Sistema Básico de Kung Fu Kuoshu não é um estilo de "Kung Fu", nem uma arte marcial "inventada", fora do contexto chinês. Também não é um sistema de defesa pessoal, tampouco um programa de mixed martial arts, muito menos um apanhado de formas de Wushu moderno, voltadas a competições de Taolu. Ele é um programa didático de iniciação geral às artes marciais chinesas em desenvolvimento desde aproximadamente a década de 1970, em Taiwan.

A Federação Mineira de Kung Fu Kuoshu (FMKK) foi recriada em 2013, na cidade de Uberlândia, retomando um projeto que havia iniciado na década de 1990, mas que se encontrava interrompido, de organizar uma estrutura de intercâmbios regionais entre escolas de artes marciais chinesas. No final dos anos 90, este projeto era liderado pelo Mestre Huang Yu Sheng e a sua academia, a Wushukuan, fechada nos anos 2000. Antes dele, entretanto, entre 1995 e 1998, funcionou, com sede em Belo Horizonte, a "Federação Mineira de Kuoshu Tradicional", presidida pelo professor Urbano Ribeiro Silva. Neste meio tempo, outras organizações foram surgindo e se desenvolvendo no estado, com destaque para a Federação Mineira de Kung Fu Wushu (FMKFW), sediada em Itajubá, ligada a Confederação Brasileira de Kung Fu Wushu (CBKW).

A FMKK não surgiu como rival da Federação Mineira de Kung Fu Wushu. Pelo contrário, enxerga-a como parceira na divulgação das artes marciais chinesas na região. As duas estão presentes no Triângulo Mineiro e, muitas vezes, participam de atividades uma da outra. A FMKK surgiu com uma proposta própria, mais voltada ao resgate de trajetórias do desenvolvimento do Kung Fu na nossa região e, particularmente, comprometida em resgatar o legado da Wushukuan. Desde o fechamento da academia, a dispersão dos seus antigos alunos vinha gerando uma fragmentação na liderança do seu legado técnico. Uma das metas da Federação é, exatamente, assumir esta liderança. Para isso, contou com o apoio do Mestre Sheng, que foi um dos seus membros fundadores.

Em 2015, após estudos, reuniões e consultas, um grupo de professores e instrutores ligados direta ou indiretamente à Wushukuan assumiu a tarefa de padronizar um currículo comum de iniciação ao Kung Fu Kuoshu. Este currículo segue, como base, o que na antiga academia era ensinado como Zhong Wudao (中武道). Em 2016, a padronização do currículo ficou pronta e, para se diferenciar do Zhong Wudao, que tem as suas particularidades, foi nomeada "Sistema Básico de Kung Fu Kuoshu". Este sistema serve para a iniciação geral ao kung fu e como uma língua franca a partir da qual praticantes de estilos específicos podem dialogar no interior da FMKK. Ele também é a base da qual derivam os programas de iniciação ao kung fu utilizados em projetos educacionais, culturais e sociais, como este mesmo de Tupaciguara.

Em 2017, a FMKK, a fim de articular-se a uma estrutura nacional e internacional, filiou-se ao Instituto Li Wing Kay. Esta escolha se deu em sintonia com a história de desenvolvimento do Zhong Wudao do Mestre Sheng, que incorporou elementos provenientes de intercâmbios com o Mestre Li na década de 1990, dentre os quais a introdução de técnicas de Shuaijiao (摔跤) na sua etapa básica. Há várias outras semelhanças entre o Zhong Wudao do Mestre Sheng e o Garra de Águia de Mestre Li, inclusive relacionadas à padronização do Tantui. Isso sem falar na forma Zhongyiquan (忠義拳), típica do movimento do Kuoshu em Taiwan, presente no Garra de Águia do Mestre Li e que era uma forma "extra" do Zhong Wudao. Ela, atualmente, compõe o currículo obrigatório do Sistema Básico de Kung Fu Kuoshu.

Zhong Wudao e Sistema Básico:

Mas o que é o Zhong Wudao? Como sugerido anteriormente, trata-se de uma compreensão pedagógica e filosófica das artes marciais chinesas desenvolvida em Taiwan na década de 1970 por um mestre chamado Lin Zhong Yuan. Nativo de Shanghai, Mestre Lin era um ex-combatente do exército do Guomingtang, lesionado durante a Guerra Civil e que passou a viver em Taiwan após a Revolução Comunista. Desde quando deixou o exército, dedicou-se à sua carreira de professor e de educador, tornando-se, inclusive, diretor de uma escola de nível mais ou menos correspondente, no Brasil, ao Fundamental II. Foi no contexto da educação que ele criou o Zhong Wudao.

Hino do Zhong Wudao, acervo particular. Originalmente enviado
pelo Mestre Li Zhong Yuan para o professor Fabrício Pinto Monteiro
e repassado para mim em 2016. Tradução possível:
"Caminho Marcial Chinês
As Culturas de Wen e Wu são unidas ao Caminho do Meio
O acaso está de acordo com a resposta ao momento ideal
Herança da Filosofia, Mérito, Técnica e Arte
Da virtude e sabedoria tem-se o início da Grande Paz"
Zhong Wudao, para o Mestre Lin, não era um estilo, mas uma forma de educar os jovens chineses (em Taiwan), aliando wen (文) e wu (武). Tem como meta a formação do caráter ético do cidadão a partir do despertar das suas potencialidades inatas. Essa é a base da sua wude (武德), à qual articula outros quatro aspectos ligados ao wu (武): wugong (武功), wuxue (武学), wuyi (武艺) e wuji (武技). A intenção do Mestre Lin era apresentar o seu Zhong Wudao ao governo de Taiwan de modo a fazer dele um programa de estado, o que nunca ocorreu. Acabou tornando-se uma "ideia abstrata", cuja formalização se deu na forma de um artigo publicado na revista Chinese Kuo Shu Quartely, em seu primeiro número, em 1984, periódico ligado à International Chinese Kuoshu Federation (ICKF), de Taiwan.


Excerto de página do artigo 为国武呐喊! 替国术开道! do Mestre
Li Zhong Yuan, publicado em 1984 na Chinese Kuoshu Quaterly.
Acervo da antiga Wushukuan, digitalizado por Guilherme Amaral Luz
em 2015.
Não existia um programa técnico fixo de Zhong Wudao, com formas estabelecidas e princípios próprios de estilo. Qualquer estilo de arte marcial chinesa poderia ser praticado a partir de princípios filosóficos ou pedagógicos do Zhong Wuadao. Neste sentido, ele não deixava de ser uma versão chinesa da concepção japonesa de Budo, cuja grafia em kanji, 武道, não se distingue daquela dada pelo Mestre Lin, em Chinês, ao seu projeto.

Antes de imigrar com a sua família para o Brasil, Huang Yu Sheng foi aluno do Mestre Lin Zhong Yuan em Taiwan. Antes dele, entretanto, já havia aprendido alguns estilos de artes marciais chinesas com outros professores e mestres. Seu primeiro professor era mestre de Chaquan (查拳), mas a última arte que vinha treinando com mais ênfase antes de vir para o Brasil era o Tanglangquan, estilos Changquan Tanglangquan (長拳螳螂拳), Bei Tanglangquan (北螳螂拳) e Mimen Tanglanquan (密门螳螂拳).

Diagrama da Wude do Zhong Wudao, elaborado pelo Mestre Lin Zhong Yuan.

Com o Mestre Lin, Huang Yu Sheng participou da construção de programas de Zhong Wudao para serem utilizados em escolas, o que incluía uma seleção de rotinas básicas, a começar pelo Tantui de doze linhas, que o Mestre Lin trazia a partir da fonte da Jingwu, onde teria começado a aprender artes marciais, quando ainda residia em Shanghai. Ao chegar no Brasil e começar a ensinar para brasileiros, Mestre Sheng aproveitou estes programas de Zhong Wudao voltado para escolas e inseriu rotinas de estilos de sua própria escolha, preferência e experiência, de modo mais "livre" em relação às escolhas do Mestre Lin.

Planilha da década de 1990 contendo parte do
programa de Zhong Wudao da Wushukuan. Acervo
da antiga Wushukuan, digitalizado por Guilherme
Amaral Luz em 2015.
 O Zhong Wudao do Mestre Sheng, na Wushukuan, dividia-se em três etapas: básica (terra), intermediária (homem) e avançada (céu). Originalmente, a etapa básica era bem sintética, constituída por 10 formas básicas de punho, com suas técnicas e aplicações. A segunda etapa, intermediária, incluía outras 10 rotinas, inclusive algumas com armas e maior atenção à luta natural, ao qigong e à meditação. A terceira etapa, aparentemente não trabalhada com nenhum aluno, seria mais livre e orientada conforme o perfil da pessoa. Com o tempo, a etapa básica foi ganhando autonomia e sendo ampliada em conteúdos, como uma nova forma de punhos introdutória, técnicas de shuaijiao, de autodefesa, de sanshou (散手) e de armas. O Sistema Básico de Kung Fu Kuoshu referencia-se nesta etapa básica ampliada.

Atualmente, o Sistema Básico conta com uma estrutura que contém, ao todo, 13 formas obrigatórias de punho, 4 formas obrigatórias de armas, técnicas de shuaijiao, de sanshou, de auto-defesas, de qigong (气功) e estudo isolado de técnicas de membros inferiores e superiores (punhos, palmas, garras, chutes, cotovelos, joelhos etc). Suas formas de punho são todas bem básicas e compiladas de estilos tradicionais, algumas bem conhecidas e famosas, outras nem tanto. São elas:

1) Xibuquan 系步拳 (faixa cinza)
2) Zhongyiquan 忠義拳 (faixa amarela)
3) Wubuquan  五步拳 (faixa verde)
4) Xiaobaji 小八极 (faixa azul)
5) Tantui 弹腿 (faixa vermelha)
6) Shibasou 十八叟 (faixa roxa) - colete preto - instrutor
7) Yingchui 硬捶 (faixa marrom) - colete preto - instrutor
8) Yiquan 易拳* (faixa preta) - colete preto - professor
9) Chuji Changquan 初级 长拳 (faixa preta com ponteiro branco) - colete preto - professor
10) Nanquan 南拳 (faixa preta com ponteiro branco) - colete preto - professor
11) Zuojiquan 做基拳 (faixa preta com ponteiro amarelo) - colete preto - professor
12) Jingzhongquan 精忠拳 (faixa preta com ponteiro amarelo) - colete preto - professor
13) Tantui Duilian 潭腿对练 (sem faixa) - colete preto com detalhe em amarelo - professor graduado

* não confundir com 意拳

Aqui já se percebe uma peculiaridade do Tantui. Diferentemente da maioria das escolas que adotam-no como forma introdutória, no Sistema Básico da FMKK, ele figura no quinto estágio (faixa vermelha). No Zhong Wudao do Mestre Sheng, logo quando introduzido no Brasil, ele era o segundo estágio, antecedido somente pelo Xiaobaji, uma forma criada pelo Mestre Lin Zhong Yuan para trabalho de movimentação básica e uso eficiente da força do quadril. Com o tempo, o próprio Mestre Sheng simplificou o Xiaobaji e criou uma forma didática anterior a ela, o Xibuquan. Mais recentemente, a Federação incluiu o Zhongyiquan e o Wubuquan antes do Xiaobaji. Ambas são formas muito simples: a primeira, Zhongyiquan, é uma sequência criada em Taiwan no contexto da Federação Internacional de Kuoshu (ICKF), inspirada em movimentos de Bajiquan (八極拳); a segunda é uma forma bem simples de Wushu Moderno, normalmente mais utilizada para aprendizado de crianças e, no Sistema Básico da FMKK, uma rotina de preparação prévia para o Changquan, que aparece mais à frente no programa, com uma forma básica um pouco mais sofisticada: Chuji Changquan.

Mestres Li Wing Kay e Huang Yu Sheng no Campeonato
Brasileiro  de 2001. Acervo da  Antiga Wushukuan,
digitalizado em 2015 por Guilherme Amaral Luz
Esta composição curricular pode parecer bastante estranha aos olhos de praticantes especializados nos estilos que aparecem no programa. Um praticante de Tanglangquan, por exemplo, vai se assustar com o fato de uma forma simples como o Shibasou estar na faixa roxa, etapa a partir da qual se preparam tecnicamente os instrutores. Um praticante de Changquan ou de Wushu Moderno não entenderá como que Chuji Changquan pode estar na faixa preta etc. Para compreender isso é importante ter em vista o objetivo do sistema, tal como proposto pela FMKK: ele não tem um valor em si só, não é algo para ser estudado "para o resto da vida". O recomendável é que ele seja uma etapa inicial da formação, quando o praticante que está começando possa descobrir seu "perfil", ou que seja uma formação paralela a outra de caráter mais específico, preferencialmente tradicional. No meu próprio caso, tenho estudado o sistema em paralelo à prática de Tai Chi Chuan da Família Yang. O sistema básico serve muito bem como formação complementar eclética, que visa dar conhecimento geral sobre modos e estilos diferentes de artes marciais chinesas*.

*É interessante notar, como sintomático deste objetivo, que muitos  ex-alunos de Zhong Wudao do Mestre Sheng, em Uberlândia, acabaram dando continuidade às suas trajetórias em outras artes marciais, tornando-se referências nelas, tais como o Prof. Ubiratan, de Kickboxing, o Sensei Charles Carvalho, de Aikido, a Professora Beth Li, de Tai Chi Chuan Yang, o Professor Niltoamar, de vários estilos tradicionais de artes marciais chinesas, o Professor Sebastião, de Louva Deus do Norte, linhagem de Brendan Lai, etc. Mesmo os professores que hoje ensinam o Sistema Básico da FMKK ou o Zhong Wudao também se dedicam de modo mais específico a outra arte marcial ou a um estilo mais específico de artes marciais chinesas.

Esta peculiaridade impacta na compreensão do Tantui no currículo da FMKK. Quando o praticante começa a estudá-lo, ele já adquiriu um certo domínio das técnicas básicas de kung fu. O tempo mínimo que um praticante leva para chegar até ele é de um ano e três meses, levando em conta o calendário de exames. Normalmente, leva dois anos ou pouco mais. Neste meio tempo, ele já incorporou os principais elementos técnicos fundamentais e já teve, inclusive, experiências com armas (bastão, gun, 棍), shuaijiao, qigong e sanshou. Muitas vezes, ele já chega a esta etapa com objetivos e perfil específicos mais bem definidos. Ele já deixou de ser um total iniciante e, teoricamente, estaria apto a desenvolver compreensão mais aprofundada da forma.

O Shier Lu Tantui do Zhong Wudao e da FMKK:

O Tantui oficial presente como taolu obrigatório no Sistema Básico da FMKK é a mesma versão utilizada no Zhong Wudao do Mestre Sheng desde a década de 1990. Ele é, na verdade, uma condensação da forma de doze linhas em apenas quatro. Todos os movimentos são mantidos, entretanto, são realizados em apenas um dos sentidos. A forma completa e "original" também continua existindo e sendo treinada, ainda que não seja utilizada nos exames e em competições. Assim, o Shier Lu Tantui, na sua rotina completa, pode ser considerada uma "forma extra" no currículo da FMKK ou uma variação da forma oficial.

A forma completa é, em si, uma variação da versão da Associação Atlética Jingwu de Shanghai, aprendida pelo Mestre Lin Zhong Yuan por volta da década de 1930 ou 1940 e, desde então, certamente sofreu alterações. Em relação à atual forma da Jingwu, há diferenças bastante sensíveis, embora o esquema geral e a ordem das linhas sejam idênticos. A versão é muito provavelmente contemporânea àquela da forma Yingchui (parente de Gongliquan, 功力拳), presente na faixa marrom, que também fazia parte do currículo da Jingwu, e da versão de Tantui Duilian, que encerra o programa. No Zhong Wudao, há outras formas extras e da "etapa intermediária" que também advém desta mesma origem, porém elas ficaram de fora do currículo do Sistema Básico da FMKK.

Registro realizado há alguns anos, pelo Professor Fabrício Pinto Monteiro,
do Tantui de 12 linhas do Zhong Wu Dao do Mestre Lin Zhong Yuan.

No conjunto das suas 12 linhas, o Tantui da FMKK revela, em síntese, três princípios gerais. Primeiro, há um padrão básico de geração e transmissão de força: a propulsão e o enraizamento são realizados a partir dos hálux ("dedões") dos pés; por intermédio do dantian (丹田), a força é transmitida para a porção superior do corpo, de modo a ser emitida com uso do fechamento e da abertura das escápulas e do tórax. No caso dos movimentos de membros inferiores, a transmissão também se inicia pelo hálux, passa pelo dantian e com a movimentação do quadril, redistribui o peso e a força de uma perna para a outra. Basicamente, é este o princípio cinético geral da forma.

O segundo princípio geral da forma é o seu padrão geométrico de movimentação. No caso, há um referencial de angulações de 180º em todas as movimentações e posturas. Isso resulta em grande ênfase nos movimentos amplos, circulares e alongados. Em termos de movimentação, resulta em mudanças rápidas de direção com o uso do quadril e da cintura e em combinações harmônicas entre movimentos circulares em eixos horizontais e verticais. O terceiro princípio geral é um desdobramento deste segundo. Em toda forma há dois padrões de punhos: ora quebrando para dentro, ora quebrando para fora, de modo a formar linhas retas (180º) na linha do punho com o antebraço. Conforme a variação de punho, a movimentação torna-se mais aberta ou mais fechada, favorecendo técnicas curtas (duanda, 短打) ou alongadas (changquan, 长拳).

As linhas também seguem basicamente dois padrões de ênfase na movimentação: um mais alongado e de movimentos abertos e circulares e outro mais fechado e de movimentos explosivos; porém, em todas ou quase todas, há uma mistura de ambos. As linhas 1, 3, 4, 8, 10, 11 e 12 tendem mais à movimentação alongada. As linhas 2, 5 e 7 são tendem claramente para movimentos mais fechados. As linhas 6 e 9 sejam bastante equilibradas entre o longo e o curto. Em todas, entretanto, existe a ideia de transformar o longo em curto e vice-versa, sendo isso muito evidente em alguns movimentos das linhas 1, 4, 6, 8, 9 e 11, por exemplo. A compreensão destas possibilidades, observando as dinâmicas energéticas e de contração e extensão musculares em cada movimento nas suas distintas variações, dá origem a uma quantidade muito grande de possíveis aplicações para cada porção da forma. Isso é constitutivo da riqueza do Tantui, que traz abundantes exemplos de técnicas de da (打), ti (踢), shuai (摔) e na (拿).

Considerações Finais:

O Tantui, no Sistema Básico da FMKK, possui como objetivo consolidar o desenvolvimento dos fundamentos do praticante em fase inicial de aprendizagem, nos seus primeiros dois anos de estudos e de treinamento. Entretanto, é uma forma bastante rica e que pode ser explorada em detalhes pelo praticante com mais experiência (seja no próprio sistema ou em outros estilos ou artes marciais). Em Tupaciguara, no projeto que tocamos desde 2016, o Tantui foi levado para constituir, durante o ano de 2018, um meio de consolidar o desenvolvimento dos fundamentos técnicos dos alunos. Diferentemente do seu aprendizado regular no sistema, que leva de três a seis meses a depender do praticante e da sua rotina de treinos, a ideia é levar bem mais tempo e estudá-lo de modo mais verticalizado para explorar ao máximo a sua riqueza. Não é uma forma muito longa, nem traz técnicas muito difíceis. Porém, trata-se de uma excelente ferramenta de educação somática, cinética e energética para o praticante de artes marciais em qualquer momento ou etapa de sua formação, seja inicial, intermediária ou avançada. Nas próximas postagens da série, buscarei detalhar cada linha específica da versão de Tantui da FMKK, buscarei ilustrá-la melhor com imagens e vídeos, mas este será um processo lento e paulatino, como o trabalho que temos para frente ao longo deste ano.

Bibliografia:


FEDERAÇÃO MINEIRA DE KUNG FU KUOSHU. Sistema Básico de Kung Fu Kuoshu, Uberlândia: FMKK, 2016.

LIN Zhong Yuan. Do brado de Guowu, abre caminho Guoshu! [Wei Guowu Nahan! Ti Guoshu Kaidao! 为国武呐喊! 替国术开道!]. In: Chinese Kuo Shu Quartely, 1(1): 24-42, 1984.

MONTEIRO, Fabrício Pinto. História das Artes Marciais Chinesas. Tradição, memórias e modernidade, Uberlândia: Assis Editora, 2014.