domingo, 21 de janeiro de 2018

O problema dos gêneros e a prática de artes marciais


Introdução:

Recentemente, a mídia tem repercutido bastante um caso ocorrido no vôlei em que uma atleta transgênero ganhou o direito de atuar pela liga feminina. Muitos têm questionado o caso (alguns inclusive de modo agressivo e inflamado) por conta das vantagens esportivas que a sua condição biológica pode representar naquela modalidade. Sendo o vôlei feminino um esporte competitivo de alto rendimento e já bastante profissionalizado, o caso tem gerado preocupação e polêmica. Mesmo que não entremos nas questões propriamente culturais deste fato, que trazem a tona preconceitos e bandeiras políticas, o assunto é bastante complexo.

Não pretendo tratar aqui do vôlei, nem mesmo nos casos correlatos presentes no universo das lutas e dos esportes de combate. Pretendo, por outro lado, lançar algumas ideias e, mais ainda perguntas, sobre a prática esportiva ou, de modo mais abrangente, as práticas corporais entre pessoas de sexos biológicos e identidades de gênero distintos. Como não deixaria de ser, neste espaço, focaremos o caso das artes marciais, indicaremos uma questão educacional e direcionaremos a discussão para os seus aspectos culturais.

Antes de prosseguir, é preciso confessar aqui uma certa ignorância. Este assunto possui bibliografia específica, que ainda não fui capaz de percorrer. Assim, é possível (e provável) que meu texto seja bastante impressionista. Espero que ele possa ser mais um início de reflexão do que um destino final. Ele estará aberto ao contraditório e à revisão a partir de estudo posterior.


Práticas corporais, performances esportivas e o gênero:

Minha própria experiência como praticante e instrutor de artes marciais sempre me fez deparar com o tema. Desde quando jovem, sempre pratiquei artes marciais com meninas. No início de minha prática de karatê, por exemplo, eu tinha como parceira de treino uma menina um pouco mais graduada do que eu, com quem eu fazia, inclusive, treino de kumitê. Hoje em dia, minha professora de Tai Chi Chuan é mulher e pelo menos uma de minhas parceiras mais frequentes de treino de Kung Fu também. Minha turma de alunos no projeto de Tupaciguara é majoritariamente composta por meninas e mulheres. Ao longo da minha trajetória, treinar e aprender com mulheres foi uma rotina constante.

Obviamente, uma coisa é praticar e aprender, outra é competir. A divisão entre masculino e feminino, em competições de kung fu ou de karatê, é uma realidade não só nas modalidades de lutas como também nas modalidades de formas. Parte-se sempre do pressuposto de que há diferenças biológicas entre homens e mulheres e que, portanto, o desempenho esportivo de cada grupo é incomparável. Não questiono isso. De fato, mesmo quando há modificações corporais em um indivíduo por meio de hormônios e/ou por cirurgias, parece-me plausível pensar que nem todas as características físicas são alteradas, o que pode constituir vantagens ou desvantagens no campo do esporte competitivo.

Porém, uma questão que talvez precisasse ser colocada não é sobre a permissão ou não de atletas transgêneros competirem em modalidades femininas ou masculinas. Se é legítimo ou não, por exemplo, uma atleta transgênero entrar em um ringue de MMA contra uma outra atleta qualquer. Talvez pudéssemos colocar a questão de até que ponto a divisão entre masculino e feminino (somente) dá conta, nos esportes competitivos, de abarcar todas as novas identidades de gênero que afloram na contemporaneidade e que têm, nas tecnologias disponíveis, meios de romper (ao menos algumas) fronteiras naturais entre o homem e a mulher.


Transformações dos corpos nos esportes contemporâneos:

Outro ponto importante que parece ser facilmente ignorado neste tipo de discussão é o da natureza do corpo do atleta. No caso de esportes de combate (para não falar do atletismo, da natação, do halterofilismo e outros...), não sejamos hipócritas, o uso de anabolizantes e outras drogas (ilegais) é uma realidade que desafia os métodos de controle. Mesmo sem isso, a própria preparação física, nutricional e médica de atletas profissionais foge bastante ao ordinário. Tanto que um dos tipos de matéria que faz mais sucesso em épocas de Jogos Olímpicos é aquele que retrata a dieta de determinado esportista ou o cotidiano de um outro. A quantidade de proteínas e carboidratos ingerida por um nadador como o Phelps ou as lesões e contusões às quais estão expostas as ginastas olímpicas são temas quase obrigatórios em jornais e na TV de quatro em quatro anos...

Um dos grandes paradoxos do esporte hoje em dia é que, no âmbito competitivo de alto rendimento, ele se afastou bastante do ideal do corpo saudável, passando a valorizar o desempenho máximo de um corpo levado a situações extremas. Mesmo que isso destrua em médio ou longo prazo o corpo do atleta, no aqui e agora da sua vida útil, o que importa é tirar, dele, o maior rendimento possível, seja de velocidade, de resistência, de força...

Neste contexto em que as transformações corporais por artifícios químicos, nutricionais, hormonais ou de treinamento agressivo são realidades indispensáveis ao esporte, cabe perguntar: o que é um corpo de homem e o que é um corpo de mulher? Ou melhor: um corpo de mulher ginasta é o mesmo corpo de uma mulher esgrimista? O corpo de um homem nadador é o mesmo corpo de um homem tenista? E mais: quem é o homem ou a mulher neste ou naquele esporte de alto rendimento? Teria um homem de 1,65 m, como eu, alguma chance no basquete feminino?

Quero chegar no seguinte ponto: em qualquer esporte competitivo e em cada uma das suas categorias de gênero, existe o seu paradigma corporal de homem e de mulher. Qualquer anomalia dentro desses paradigmas, como no caso de um atleta trans ou de sexualidade indefinida, significa uma crise dentro deste esporte. O fato é: esportes competitivos são, por definição, exclusivos. As diferenças, quando existem, precisam ser confinadas em categorias específicas. Sim, existem esportes mistos. Por exemplo: tênis em duplas mistas; patinação; competições de formas de wushu por equipe etc. Porém, via de regra, não são modalidades em que homens e mulheres competem entre si, mas times formados por homens e mulheres competem uns contra os outros. Este é um enorme limite que os esportes possuem quando vamos tratar de um assunto em particular: a educação inclusiva.


Homens e mulheres separados nas artes marciais:

Há um grande preconceito nas sociedades contemporâneas: nelas, as artes marciais, muitas vezes, são vistas como atividades essencialmente masculinas. No senso comum dessas nossas sociedades, atributos como a agressividade, a força ou a postura combativa são compartilhados tanto pelas artes marciais quanto pela masculinidade.

Tanto é assim que, se há artes marciais normalmente mais aceitas, no senso comum, como próprias para as mulheres, são aquelas vistas como mais "suaves", como o Wushu, o Tai Chi Chuan ou o Aikido, ou então aquelas que foram assimiladas ao universo fitness, como o Muay Thai. E mesmo assim, em algumas delas, olhe lá! A prática de artes marciais também é associada ao feminino naqueles casos em que se reconhece alguma necessidade de defesa pessoal, sobretudo para evitar agressões ligadas ao abuso sexual. Assim, valoriza-se a prática feminina de atividades como Krav Maga, Jiu-Jitsu Brasileiro e outras formas mais ligadas à auto defesa. Por último, podemos mencionar a valorização da participação de mulheres em artes marciais que tenham um caráter plástico ou mais próximo da dança, como é o caso da Capoeira. Apenas minoritariamente e mais recentemente tem havido maior interesse e valorização das mulheres lutadoras de competição. Ainda assim, são vistas como figuras masculinizadas ou "capazes de encarar homens". É como se perdessem ou devessem perder, para se tornarem lutadoras capazes, a condição de mulheres.

Já o homem parece estar à vontade no mundo das artes marciais. Não raramente, por sinal, é neste mundo que muitos jovens do sexo masculino colocam a sua insegura masculinidade à prova. Muitas vezes, a cultura marcial no ocidente exala testosterona! Entre músculos, pancadas, treinamentos puxados e sangue escorrido, aspirantes a machos testam os seus medos, superam-nos, resistem às dores e aos golpes uns dos outros. Isso para, no final, construírem uma imagem positiva sobre si mesmos como "homens". Atributos como coragem, ação, resiliência e força são altamente enfatizados, qualidades que, supostamente, mulheres não teriam, a não ser quando "mulheres masculinizadas" são comparadas a "homens afeminados".

Sendo assim, distintas artes marciais são associadas ou a homens ou a mulheres. Por exemplo, Tai Chi Chuan, além de ser associado como "coisa de velhinho" é mais para mulheres do que para homens. "Homens de verdade" preferem luta de ringue, com eficácia de combate (normalmente algo que se dissocia das artes internas, no senso comum). Forma (taolu) é algo para "afeminados"; Sanda ou Boxe Chinês já é para quem tem as qualidades de um "homem". Isso tudo é algo que, embora muitas vezes não se explicite de forma escancarada, percebe-se implícito em muitos discursos.


Juntando Homens e Mulheres:

Que uma jogadora trans possa gerar um problema no vôlei profissional é compreensível; porém, um pouco menos óbvia é a divisão, em aulas de educação física no ensino fundamental, da turma entre meninos e meninas. Menos óbvia ainda: meninos para jogarem futebol e meninas para jogarem vôlei.

Na China imperial, na Dinastia Qing, mulheres eram impedidas de praticar artes marciais, o que mudaria no final deste período, já na passagem do século XIX e do XX. A ideia de que artes marciais eram para homens foi questionada em um contexto de modernização da China e das artes marciais. Este é um fato interessante, principalmente tendo em vista a pré-existência de muitos mitos que atribuíam autoria feminina a vários estilos antigos.

Quando mulheres resolvem praticar artes marciais, elas se descobrem tão capazes quanto os homens de aprender e de se desenvolver nas técnicas. Ainda que sejam bombardeadas por preconceitos que chegam a ser desanimadores. Para a melhora da saúde, do condicionamento físico, da aplicação marcial, do auto-cultivo e do autoconhecimento, as artes marciais são tão boas para as mulheres quanto são para os homens. E mais, treinando juntos e desenvolvendo atividades uns com (eventualmente contra) os outros, homens e mulheres descobrem (quando se dispõem a isso) as capacidades, potencialidades e limites uns dos outros. Praticando de modo responsável com o outro, aprendem a lidar com o colega ou a colega de modo a colaborar com o crescimento mútuo sem a exposição de um ou de outro a grandes riscos de lesão.

A prática de atividades corporais ou físicas entre homens, mulheres e outras identidades de gênero que existam é um excelente meio de construção de diálogo com o outro. Ao termos experiências desta natureza com indivíduos de identidade de gênero distintas da nossa, aprendemos a enxergá-los para além das nossas convenções sociais e dos seus estereótipos. Experimentamos um contato gestual, tátil e verbal uns com os outros, sentimos a sua força e as suas habilidades; somos convidados a nos colocar no seu lugar e a sentir as semelhanças e as diferenças que compõem a diversidade humana.

Por meio das artes marciais, homens são, muitas vezes, introduzidos à necessidade da suavidade e da flexibilidade, enquanto mulheres são levadas a desenvolver força e agressividade. São convites normalmente pouco encontrados nos seus cotidianos sociais, mas que aparecem nos treinos. Com isso, podemos trabalhar alguns antídotos contra os lugares estanques que a nossa cultura reserva para homens, mulheres e tudo mais que pode existir para além deste binômio. O masculino não existe sem o feminino, como o suave não existe sem o duro. A unidade está dentro de cada um de nós e só é possível alcançá-la com o auxílio do outro. Homens, treinem com mulheres. Mulheres, treinem com homens. Ambos, treinem como seres humanos e se descubram uns nos outros.

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