sexta-feira, 16 de fevereiro de 2018

O Que é Tantui? (Parte 3: Experimentação e Aplicação)

Parte 3: Experimentação e Aplicação

Introdução:

No primeiro texto desta série, tratamos das origens do Tantui, das suas relações com a etnia Hui e com o chamado Jiaomen Changquan. No segundo, começamos a explorar algumas características gerais da forma, que sugerem métodos de aprendizado, estudo e treinamento. Na ocasião, trabalhamos três operações metodológicas que a forma propicia: memória, análise e síntese. Indicamos que outras duas operações exigiriam mais tempo para serem comentadas: experimentação e aplicação. Pois bem, vamos a elas.

O Tantui em Duplas:

Antes de iniciar é preciso recapitular um pouco da história da introdução do Tantui, como forma, em sistemas mais modernos de aprendizado de artes marciais. No primeiro texto desta série, já nos referimos à presença de algumas formas ligadas ao Tantui no currículo da Associação Jingwu, em Shanghai, no início do século XX.

Das 10 formas básicas do currículo da Jingwu, duas eram formas de Tantui: Shierlu Tantui e Jie Tantui. Da primeira, já temos falado e ainda falaremos bastante ao longo desta série. Ela era utilizada como rotina inicial do currículo, preparando os fundamentos de cada praticante desde os primeiros momentos. Já a segunda situava-se mais adiante no currículo e sua principal diferença em relação à primeira estava no fato de ser praticada em dupla  (对练, dui lian).

接潭腿 (Jie Tantui) - 接 Jie significa "responder", "ligar", "conectar", "estender", supõe uma prática em que cada um desempenhe o seu papel de modo coordenado e interligado. A prática do Jie Tantui talvez esteja na base da própria execução individual da forma Tantui. Nela, os movimentos fazem sentido em relação aos movimentos do oponente. Trata-se de um exercício de  "luta combinada". Ao ser praticada em dupla, a sequência apresenta, bem claramente, muitas possibilidades de técnicas marciais, sejam elas de da (打), ti (踢), shuai (摔) ou de na (拿). Outra característica interessante é o contato entre os praticantes, o que favorece o fortalecimento de resistência de braços e o entendimento das distâncias, dos ângulos, das trajetórias, das áreas de contato e das pegadas com as garras. Abaixo, segue um vídeo com a versão da Jingwu do Jie Tantui.


Versão da Associação Jingwu (Chin Woo) de 接潭腿 (Jie Tantui)

O Tantui Individual e em Duplas no Sistema Básico da FMKK:

No caso do currículo do Sistema Básico de Kung Fu Kuoshu da FMKK, também temos as práticas individual e em dupla da forma Tantui. No caso, tratam-se de versões mais modernas criadas a partir das formas da Associação Jingwu, que foram incorporadas ao Zhong Wudao, ensinado no Brasil pelo Mestre Huang Yu Sheng, do qual já falamos em publicação anterior.

Fragmento de anotações do Mestre Huang Yu Sheng sobre a versão do Tantui
em duplas de seu Zhong Wudao. Acervo remanescente da Academia Wushukuan,
Uberlândia-MG. Digitalizado por Guilherme Amaral Luz em 2015.
No Zhong Wudao, a forma básica introdutória de Tantui é uma condensação de Shierlu Tantui em apenas quatro "linhas" (路, lu). Originalmente, a forma "completa" de 12 linhas era ensinada como a primeira do sistema em Taiwan. Mais tarde, outras formas iniciais foram criadas até que, atualmente, o Tantui, de modo condensado, aparece apenas na faixa vermelha (quinto estágio) do Sistema Básico de Kung Fu Kuoshu. Entretanto, a forma "completa" de 12 linhas também foi preservada, padronizada e continua sendo ensinada junto com a forma menor. Na prática, a versão condensada serve para apresentação e exame, enquanto a completa é mais utilizada para aprendizagem e treinamento.

Já a forma em dupla era a última do primeiro grau do currículo de Zhong Wudao do Mestre Huang Yu Sheng e, hoje, também permanece como o último estágio (décimo terceiro) do Sistema Básico de Kung Fu Kuoshu. Ela é trabalhada em doze linhas e é chamada, na sua denominação completa, de Tantui Shier Lu Duilian Quan (腿十二路对练拳).

Experiência e Aplicação:

Embora o Shier Lu Tantui não envolva a presença de um parceiro, como no Jie Tantui, isso não quer dizer que as aplicações só devam receber atenção quando se pratica a forma em Duilian Quan. Em sua compilação de textos relacionados ao Tantui de 12 linhas, o Mestre Hu Jian indica haver quatro funções básicas na sua prática, a saber:

(1) 長氣力 (Chang Qi Li) - desenvolvimento de força/energia;

(2) 穩步武 (Wen Bu Wu) - estabilização da base;
(3) 致實用 (Zhi Shi Yong) - aplicação prática;
(4) 筋骨 (Jian Jin Gu) - fortalecimento de músculos e ossos. (Obs.: Jingu também pode significar coragem e força de vontade. Jian Jingu também significa trabalhar a perseverança, o espírito marcial).

É interessante notar que, junto com funções estruturantes do corpo e da técnica, aspectos importantes para a preparação do praticante desde o início do aprendizado, uma das funções do Tantui é a aplicação prática. No caso desta função, o manual recomenda a prática em duplas (接潭腿, Jie Tantui), mas não a condiciona a isso. Promete-se, neste manual, de 1917, com a prática do Tantui, não só um exercício de desenvolvimento de fundamentos, mas também um método de auto-defesa eficiente.


Os exercícios de Tantui com um parceiro, na forma de "luta combinada", como aquela presente no Jie Tantui, apresentam apenas um exemplo de aplicação para cada movimentação. Eles proporcionam experimentar o contato com um parceiro, mas não esgotam as possibilidades presentes na forma nem bastam como método de naturalização das técnicas para uso efetivo em combate. É possível e necessário bem mais. Para além de movimentos decorados, a aplicação efetiva e eficiente das técnicas presentes nas linhas de Tantui exige uma experiência pessoal profunda com os princípios que estão na base de todo conjunto e com cada expressão destes princípios nos movimentos singulares. Em outros termos, exige, novamente, as operações de análise e síntese.


O que chamamos de experiência e aplicação é a análise e a síntese operadas de modo ativo pelo praticante, que deve projetar/conceber situações de uso prático. A prática do Tantui não deve ser, neste sentido, um exercício alienante, puramente repetitivo e memorizado. Não deve ser pura ginástica. Envolve a realização de testes e simulações, preferencialmente com o auxílio de parceiros de treino. Não se trata apenas de decorar usos formais específicos, presentes na rotina em dupla, mas perceber possibilidades mais variadas e naturais de aplicação.


No texto anterior desta série, mostramos um vídeo que exemplifica o treinamento por linhas no Bajiquan. No caso, além da movimentação, o vídeo mostra algumas das suas aplicações possíveis mediante um treinamento com parceiro. Com o Tantui, o mesmo pode e deve ser feito. Cada linha apresenta um conjunto de possibilidades de aplicações formais catalogadas por uma escola ou mestre, além de outras que podem vir ao praticante como variações a partir do entendimento dos seus princípios técnicos.



Experiência e Aplicação como Qigong:

Quando se fala em aplicação marcial, não necessariamente precisamos ficar presos a um conceito de técnicas marciais. A aplicação também está relacionada ao modo que nos preparamos física, mental e energeticamente para o combate. É algo que no Zhong Wudao do Mestre Lin Zhong Yuan nomeia-se como Wu Gong (武功). No caso do Tantui, as funções Chang Qi Li Jian Jin Gu enquadram-se perfeitamente neste conceito, enquanto as outras duas se encaixam, no mínimo, de modo indireto.

Pensemos de modo prático: o que adianta saber como dar um soco se ele não tiver potência, se o punho não tiver estrutura adequada para receber aquele impacto, se o efeito que eu busco com ele não funcionar? O que adianta eu saber como fazer uma pegada, se meus dedos não tiverem a força necessária, se eu não conseguir manter algo preso por algum tempo em minha garra? O que adianta eu saber dar um chute se eu não desenvolvo uma consciência tal do meu corpo que me permita ter equilíbrio e firmeza numa perna só? Quanto eu duro em um combate contra alguém que saiba lutar se meu corpo não aguentar nem a primeira pancada? Para tudo isso serve o Qigong, assunto que já desenvolvemos muito neste blog (como neste artigo aqui).

Qigong não é um conceito que se resume a séries pré-estabelecidas de exercícios. Ele é, sobretudo, um conceito relacionado ao "trabalho da energia". Não é preciso (nem creio que oportuno) ter um entendimento esotérico ou mágico em relação a ele. Muito mais do que a realização de truques, o Qigong oferece meios de adquirirmos consciência corporal (tanto de nosso corpo material, composto por tendões, ossos, músculos; quanto de nosso corpo energético, composto, conforme a MTC, por nossos canais ou meridianos de circulação do qi, os chamados 络, luo). Ao adquirirmos consciência, podemos ter maior controle e entendimento do nosso corpo, utilizando-o de modo mais eficiente e com o menor desperdício possível de energia.

Há uma infinidade de maneiras e entendimentos possíveis de como trabalhar o qi na prática de Tantui. Como exemplo, podemos citar o apêndice contido no manual sobre Shilu Tantui, do Mestre Wu Zhiqing, que traz um trecho da obra anônima Fórmulas Secretas do Método de Combate de Mãos de Shaolin (少林拳術秘訣, Shaolin Quanshu Mijue), de 1915. Este apêndice apresenta teorias e métodos a serem seguidos para o treinamento do qi, relacionados a aspectos como fortalecimento (運使, yun shi), respiração (呼吸, hu xi), suavidade e dureza (剛柔, gang rou) e os cinco requisitos [éticos e espirituais] (五要說, wu yao shui). Não precisamos ficar presos nestas recomendações e preceitos. O mais importante é desenvolver uma postura de treino atenta aos aspectos cinéticos e energéticos contidos em cada linha (e também na síntese da rotina), os observando e treinando.



Considerações Finais:

Em duplas ou individualmente, tão mais é proveitoso o treinamento de Tantui quanto mais ele se faz de modo ativo e tendo como horizonte a aplicação. Isso se atinge por meio da percepção das técnicas marciais que abrange, as experimentando com um parceiro de treino e da prática como preparação física, mental e energética para o combate. No próximo texto da série, começaremos a descrever mais minuciosamente algumas das características do Tantui do Sistema Básico de Kung Fu Kuoshu da FMKK. Continuem acompanhando!


Bibliografia:

BRENNAN TRANSLATION. Ten-line Tantui. Illustrated Handbook for the Muslim Art of Tantui (1922). Disponível em: https://brennantranslation.wordpress.com/2017/07/31/ten-line-tantui/. Acesso em 04/02/2018.
BRENNAN TRANSLATION. Twelve-line Tantui (1917). Disponível em: https://brennantranslation.wordpress.com/2013/01/27/twelve-line-tantui/. Acesso em 01/02/2018.
DRAGON: Revista de Cultura y Artes Marciales de China, 37(2), "Especial Chaquan & Tantui", 2013.
FEDERAÇÃO MINEIRA DE KUNG FU KUOSHU. Sistema Básico de Kung Fu Kuoshu, Uberlândia: FMKK, 2016.
GREEN, T. A. Martial arts of the World: an Encyclopedia, Santa Barbara: ABC-CLIO, 2001.
GREEN, T. A.; SVINTH, J. R. (ed.) Martial Arts in the modern world, Westport & Londres: PRAEGER, 2003.
LIN Zhong Yuan. Do brado de Guowu, abre caminho Guoshu! [Wei Guowu Nahan! Ti Guoshu Kaidao! 为国武呐喊! 替国术开道!]. In: Chinese Kuo Shu Quartely, 1(1): 24-42, 1984.
LORGE, P. Chinese Martial Arts, Cambridge: Cambridge University Press, 2012.
MONTEIRO, Fabrício Pinto. História das Artes Marciais Chinesas. Tradição, memórias e modernidade, Uberlândia: Assis Editora, 2014.
MROZ, D. Taolu. Credibility and decipherability in the practice of Chinese martial movement, In: Martial Arts Studies, n. 03: 38-50, 2017.

quarta-feira, 7 de fevereiro de 2018

O que é Tantui (Parte 2 - O Método)

Introdução

Na primeira parte desta série de textos sobre o Tantui, abordou-se um pouco da sua história, das suas origens étnicas e das suas relações com o Jiaomen Chanquan e outros estilos relacionados, sobretudo, da província de Shandong. Vimos que ele se originou como um estilo específico, hoje não mais existente no seu "todo", e que acabou sendo reduzido a um conjunto estruturado de sequências de movimentos (taolu, quantao, kati...) vistos como introdutórios para escolas de "punho longo" ou também para escolas "norte" de Kuoshu ou Wushu.

Nesta segunda parte, pretende-se abordar um aspecto um pouco mais específico relativo à estruturação das sequências ou "linhas" do Tantui. Não se pretende esgotar o tema, tampouco aprofundar nas hipóteses em torno dos motivos desta estruturação, para o que tenho poucos elementos, inclusive. O objetivo principal é refletir sobre esta estrutura como uma proposta pedagógica voltada aos dias de hoje.

As "Formas", Tao Lu (套路):

Alguém que está familiarizado com a prática de artes marciais chinesas certamente já se deparou com os termos 套路 (taolu), 拳套 (quantao) ou kati. Recentemente, um praticante avançado de Shaolin do Norte me passou uma explicação de que a palavra kati, ao contrário do senso comum que às vezes a supõe como uma adaptação do japonês kata (型) , vem do chinês e é termo próprio das artes marciais chinesas. Segundo esta explicação, o termo chinês, na verdade, seria 架子, jia zi, que pode significar "estrutura". Kati seria uma pronúncia de jia zi a partir do cantonês.

Todas estas palavras - inclusive a palavra kata, do japonês, pronunciada xing, em chinês - têm sentidos semelhantes. É comum, no âmbito das artes marciais, tomarmos todos eles como sinônimos e traduzi-los como "forma". Não é errado, porém, isto elimina alguns sinais de entendimento que cada uma destas expressões sugere sobre o próprio uso que podemos fazer das práticas que nomeiam.

套, tao, é um ideograma importante neste caso. Neste contexto (em outros, pode significar até mesmo preservativo masculino...), seu significado mais próprio é o de "pacote" ou de "classificador para um conjunto ou uma coleção". Coleção significa um conjunto de objetos singulares correlacionados entre si. Se eu possuo uma coleção de moedas, cada moeda vai ser de um material diferente, de um tamanho diferente, cada uma terá seu valor, sua procedência, sua datação, seu formato, mas todas serão classificáveis como "moedas", o que supõe relativa unidade de sentido, de uso, de função etc.



Nos quantao ou nos taolu, o que colecionamos que pode ser classificado? Esta resposta parece simples, mas não é tanto assim. Colecionamos chutes, socos, torções, projeções, chaves, golpes? Sim, mas os termos "golpes" ou "socos" não são suficientemente genéricos para classificarem uma coleção. Mesmo quando dizemos 拳套, quantao, não queremos dizer que a nossa coleção é de quan, punhos. O que queremos dizer com isso é que colecionamos técnicas marciais: 拳法 (quan fa). 法 é um ideograma que significa método, modos. No caso, quan  não significa apenas "punho" mas é uma sinédoque (uma figura de linguagem que permite tomar o todo pela parte) para se referir a todas as partes do corpo que podem ser utilizadas como "armas", para ataque e defesa.

Se quisermos, podemos utilizar a expressão inteira para a entendermos: 拳法套路, quan fa tao lu. Para entender a expressão, falta entender o conceito de linha. Até aqui está claro que se trata de uma organização (tao), de métodos ou técnicas (fa) marciais ou do corpo como arma (quan). Mas qual o sentido da linha (lu)? 

Linhas (lu, 路):



O termo "linhas" talvez não seja o melhor para traduzir lu, embora seja muito utilizado em português (e mais ainda em inglês) no meio marcial. Seu significado mais próprio e mais sugestivo é o de estrada, rota, viagem... Mesmo como "linha", seu sentido mais usual é como linhas de meios de transporte, como, por exemplo, linhas de ônibus. Veja (acima) novamente a imagem que utilizamos na publicação anterior. A imagem sugere percursos de um início até o fim, numa espécie de ziguezague, como um trajeto de jogo de tabuleiro. Mas esta é apenas uma representação gráfica. A prática do Tantui se dá sobre apenas uma reta, em deslocamentos da direita para a esquerda e da esquerda para a direita. Porém, cada deslocamento, de um ponto ao outro até inverter a direção novamente é chamado de uma "linha": 路. Cada uma destas linhas é um percurso, um deslocamento, um processo de sair de um lugar para chegar a outro e, a partir dele, tomar outra direção. No final do conjunto (ou da coleção) destas estradas, tem-se formado um todo. Este todo se forma pelo acúmulo destes caminhos, cada qual com as suas particularidades, mas todos partícipes desta inteireza, com os seus princípios gerais.

A analogia do percurso do quan fa tao lu com a ideia de uma viagem também aparece em manuais de outras formas e estilos diferentes do Tantui. Por exemplo, um manual de 1936, escrito pelo Mestre Miao Ganjie, sobre o Bajiquan (八極拳), afirma que o estilo pode ser condensado e aprendido a partir de uma única "rotina". Para se referir à rotina, ele se utiliza de uma palavra diferente das que já vimos: 趟, tang, que quer dizer, literalmente, "viagem". Esta "viagem" ou rotina, por sua vez, subdivide-se (no caso, em seis). Ele poderia chamar cada subdivisão de "linha" ou "estrada", lu, entretanto, ele prefere o termo 節, jie, que quer dizer "parte" ou "seguimento" (no caso, da viagem...). Cada uma das seis partes abriga oito "técnicas" (術, shu), o que perfaz um total de quarenta e oito movimentos.

Outro exemplo de arte que também se utiliza bastante de "estradas" ou "linhas", lu, para a composição de exercícios educativos e rotinas é o Louva Deus, o Tanglangquan. Na escola onde comecei a estudar um pouco deste estilo, por exemplo, tínhamos um educativo nomeado Jiben Shilu (基本十路); isto é: dez linhas básicas. Cada uma destas linhas trazia uma sequência de técnicas com valor em si. Quando vistas em conjunto, elas apresentam uma visão geral de aspectos fundamentais do estilo. O exercício não chegava a ser um taolu, não precisa ser praticado em uma ordem padrão e nem do início ao fim, todas as "linhas". São exercícios, em tese, preparatórios para que o praticante possa se desenvolver tecnicamente, desde o início, focalizando a qualidade de cada movimento ou o entendimento (físico e mental) de cada princípio que o subjaz.



Em Louva Deus, alguns estilos também desenvolveram rotinas de
Tantui (彈腿). Neste vídeo, temos um exemplo de 十四路彈腿, um
Tantui de 14 "linhas" do estilo 七星螳螂 (Louva Deus 7 Estrelas). É
interessante que, nesta versão, as linhas não se limitam ao sentido
leste-oeste, mas vão também em outras direções, inclusive diagonais.

Por coincidência ao não, os dois exemplos fornecidos aqui como comparação vêm de estilos que nasceram nas vizinhanças da terra natal de Tantui. O Tanglangquan nasceu e se desenvolveu sobretudo na província de Shandong, a mesma em que nasceu o Tantui. O Bajiquan, por sua vez, embora tenha prosperado no sul da China e em Taiwan, teria nascido no norte, na província de Hebei (onde fica a capital, Pequim), fronteiriça à província de Shandong. Rotinas e educativos formados por "estradas" (lu) foram muito populares no início do século XX, quando diversos manuais sobre estilos e rotinas foram escritos, publicados e difundidos em academias, institutos e associações que cresciam pela China. Por meio deles, várias rotinas e estilos tornaram-se célebres. Em meio a isso, o Tantui, em diferentes versões, ganhou bastante visibilidade.

Passaremos, agora, para aquelas operações que o treinamento por "estradas" ou "linhas" enfatizam como método de treinamento. Muito do que traremos aqui são reflexões iniciais e interpretações a partir de estudos teóricos e práticos. Seria bastante salutar que praticantes de diversas escolas opinassem a respeito destas hipóteses e nos ajudassem a construir um entendimento mais adequado disso tudo. Vamos as tais "operações".

Primeira Operação - Memória:

É bastante recente, nas artes marciais asiáticas, a preocupação de realizar registros mais regulares na forma de textos ou imagens a respeito das técnicas e das rotinas. Existem manuais mais antigos, porém, até o final do século XIX, eles eram muito menos numerosos e circulavam em meios muito mais restritos do que se tornaram a partir da modernização/ocidentalização da China. Hoje, anotações em cadernos, vídeos e fotografias são alguns dos meios de registro muito usuais no cotidiano de aprendizagem de artes marciais. Porém, no passado mais distante (há 100, 150 anos), os suportes da memória das técnicas eram muito mais dependentes da oralidade e da corporeidade.

Em uma antiga postagem neste blog, já falamos sobre o 对联 (duilian). Trata-se de uma forma poética em que linhas de 5 ou 7 caracteres (ideogramas) são dispostas em pares opostos (conforme a dialética do yin e do yang), seguindo certos padrões tonais e semânticos.  Note a "coincidência": as rotinas ou exercícios por "linhas", lu, via de regra, compreendem seguimentos em número par: 6, 10, 12, 14... Será coincidência mesmo? Penso em outra hipótese: na tentativa de criar modelos facilmente memorizáveis, semelhantes àqueles da poesia oral. Isto se confirma quando percebemos que os "versos regulares" (forma poética desenvolvida desde a Dinastia Tang) são utilizados frequentemente para a composição de súmulas das rotinas de arte marcial. Dou um exemplo retirado de um manual de Shilu Tantui:

崑崙大山世界傳。名曰彈腿奧無邊。
頭路。衝掃似扁擔。
二路。十字人拉鑽。
三路。盖捶雙披打。
四路。轉磨生奇關。
五路。裁捶登來益。
六路。堪管封畢然。
七路。雙稱十字腿。
八路。庒跥如轉環。
九路。碰鎖重閃門。
十路。裁花如箭彈。
世人莫看式法單。多踢多練係根源。

Alguém que pratica exercícios de "linhas", lu, e conhece o nome de cada um dos seguimentos deve ter notado que a tradução nem sempre consegue ser literal daquela movimentação. Às vezes, chega a ser obscura, metafórica ou relacionada a apenas alguns dos movimentos presentes na sequência. Isso se dá porque aqueles nomes, muitas vezes, são versos. Aquelas palavras, muitas vezes, foram escolhidas pela sua sonoridade ou pela relação (fonética ou semântica) com algum outro "par" da "linha" ou "verso" anterior ou posterior. Para que serve isso? Serve como método mnemônico.

Também por este motivo, é possível perceber algumas regularidades em rotinas formadas por "estradas", lu. No Shier Tantui do Sistema Básico da Federação Mineira de Kung Fu Kuoshu, por exemplo, há um esquema nas primeiras linhas que é bem regular (mas se perde um pouco nas linhas finais). Este esquema é um padrão de iniciação dos movimentos entre as linhas ímpares (1, 3, 5...) e pares (2, 4, 6...) que também sugere ênfases ora em movimentos amplos típicos de "punho longo" (changquan, 長拳) ora em movimentos mais rápidos e contidos, típicos de duanda (短打).

Segunda Operação - Classificação e Análise:

Análise é um procedimento típico da racionalidade moderna. Em certo sentido, ela é estranha às práticas tradicionais de ensino-aprendizagem da China ou do Japão antes do processo de ocidentalização. Jigoro Kano conta uma história interessante em que ele pedia para o seu mestre de Ju Jutsu exlicar uma técnica de arremesso em diagonal (sumi-gaeshi). A explicação do seu professor resumia-se a aplicar repetidamente aquela técnica sobre ele. Depois de receber a técnica de novo e de novo, Jigoro Kano é mais explícito na interpelação: "pedi a ele que explicasse em detalhes, como puxar os braços, como posicionar as pernas, como abaixar o quadril, sem usar o waza em mim". Hoje em dia, isso que Jigoro Kano, com a sua cabeça já bastante ocidentalizada e intelectualizada, solicitava ao seu mestre é algo comum. O que ele pedia era para que aquela técnica fosse dividida e explicada pedacinho por pedacinho, descrita em cada detalhe para que, juntando-os, o estudante a pudesse compreender e executar. Isso é o que se chama de análise.

Nas ciências modernas, o microscópio é um dos principais
instrumentos idealizados para efetuar análises, pois permite
a observação detalhada das partes que compõem um organismo.

Quando, na China, as artes marciais começavam a se difundir publicamente, nas primeiras décadas do século XX, lá também se passava por um processo de modernização ou de ocidentalização das práticas educacionais. A racionalidade técnica e científica e os seus procedimentos, como os de análise, estavam em voga. O próprio Budo serviu de inspiração para modelos de "educação física nacional" na China, que dialogavam fortemente com as ginásticas ocidentais, como foi trabalhado em outras publicações deste blog. Ora, segundo uma racionalidade de tipo analítica, tomar um todo e dividi-lo em seguimentos é uma metodologia que faz total sentido. Por isso, as "linhas", lu, tornaram-se tão adequadas aos novos métodos de ensino de artes marciais.

Ao tomarmos cada linha isoladamente para praticar e observar os mínimos detalhes, o que procedemos é uma operação de análise. As linhas fornecem uma classificação de todos os elementos da forma em subconjuntos. Por meio dela, prestamos atenção nos detalhes das posturas estáticas e em movimento: angulações, transições, torções, contrações musculares, extensões, relaxamentos, respiração, sincronias, diacronias... Podemos subdividir os movimentos dentro de uma mesma linha e analisá-los minuciosamente, tanto quanto pudermos e conseguirmos. Trata-se de um modo sem dúvida formidável de operar correções finas na técnica e atenção localizada em aspectos a serem lapidados, aprimorados, treinados. A consciência de cada fragmento do todo torna-se altamente potencializada.

Terceira Operação - Síntese:

Síntese é a contraparte necessária da análise. Se a análise parte de uma fragmentação do todo para o estudo minucioso de cada detalhe, a síntese é a operação que re-coleciona estes pedaços e busca, no seu conjunto, fórmulas mais gerais de entendimento. Na síntese, revelam-se os princípios que subjazem na essência de cada "linha" e, nela, de cada técnica ou movimento em isolado.

No mesmo manual do qual retiramos a "canção" ou o "poema" do Shilu Tantui, o autor explica um aspecto importante da relação entre a parte e o todo no Tantui:
一本書。所以用各路分開。單獨演習。使學者。專一練習不致蹈博而不專之弊。(各路練習精熟後。均可連續演習。)
Tradução de Paul Brennan – "In this book, the reason the lines are divided up into isolated drills is to induce you to have a concentrated practice rather than making the error of turning it into an unfocused dance. (Once you have become skillful with each line, you may of course connect them all into a continuous practice.)"
Traduzindo para o português: "Neste livro, a razão pela qual as linhas são divididas em treinos isolados é para induzi-lo a ter uma prática concentrada, ao invés de cometer o erro de transformá-la em uma dança sem foco. (Uma vez que você se torne hábil em cada linha, você poderá, claro, conectá-las em uma prática contínua)".

Esta recomendação do Mestre Wu Zhiqing resume o processo da síntese. Não se deve partir do todo desde o início, pois não haveria foco em cada parte e a prática viraria só uma coreografia sem sentido. O todo só poderia ser formado como conexão das partes após o domínio adequado de cada uma delas em isolado. A síntese, o todo, é muito importante, mas como uma dialética entre as diferentes partes e não como um bloco homogêneo. Este método das linhas sugere este tipo de atenção. Por isso a admoestação final do poema, após detalhar cada linha: 世人莫看式法單。多踢多練係根源 ("as pessoas comuns não notam as posturas individuais, apenas reparando naquilo o que parece: mais chutes, mais práticas"). Ou seja, no final, olhando de fora, tudo parece uma coisa só, mas, na verdade, é um conjunto harmônico de individualidades.

Considerações Finais:

As operações não param por aqui. Há outras que exploraremos em textos posteriores, como a experimentação e a aplicação. Contudo, elas são mais específicas e podem ter desdobramentos que tornariam esta publicação longa demais. Por hora, como desfecho, é importante recapitular que o Tantui, como sequência (não como estilo completo), é um conjunto organizado de linhas de técnicas marciais (quan fa tao lu). Sua forma de organização - regular e facilmente memorizável - sugere um percurso progressivo, parte a parte (análise), minuciosamente perseguido rumo a compreensão geral (síntese).

Leia a Parte 3: Experimentação e Aplicação

Bibliografia:

BRENNAN TRANSLATION. Baji Boxing (1936). Disponível em: https://brennantranslation.wordpress.com/2015/12/30/baji-boxing/. Acesso em 07/02/2018.
BRENNAN TRANSLATION. Ten-line Tantui. Illustrated Handbook for the Muslim Art of Tantui (1922). Disponível em: https://brennantranslation.wordpress.com/2017/07/31/ten-line-tantui/. Acesso em 04/02/2018.
FEDERAÇÃO MINEIRA DE KUNG FU KUOSHU. Sistema Básico de Kung Fu Kuoshu, Uberlândia: FMKK, 2016.
GREEN, T. A. Martial arts of the World: an Encyclopedia, Santa Barbara: ABC-CLIO, 2001.
GREEN, T. A.; SVINTH, J. R. (ed.) Martial Arts in the modern world, Westport & Londres: PRAEGER, 2003.
JOERN, A. T. The repositioning of traditional martial arts in Republican China. Dissertação de Mestrado (Artes). Montreal: McGill University, 2012.
KANO, J. Energia mental e física, São Paulo: Pensamento, 2008.
KENNEDY, B.; GUO, E. Jingwu: the school that transformed kung fu. Berkeley: Blue Snake, 2010.
LORGE, P. Chinese Martial Arts, Cambridge: Cambridge University Press, 2012.
MA, M. Reconstructing China’s indigenous physical culture. In: Journal of Chinese Martial Studies, n. 01: 8-28, 2009.
MORRIS, A. The marrow of the nation: a history of sport and physical culture in Republican China, Los Angeles: University of California Press, 2004.
MROZ, D. Taolu. Credibility and decipherability in the practice of Chinese martial movement, In: Martial Arts Studies, n. 03: 38-50, 2017.

quinta-feira, 1 de fevereiro de 2018

O que é Tantui? (Parte 1: Origens da Forma e de Seu Estilo)

Parte 1: Origens da Forma e de Seu Estilo

Preâmbulo:

Em 2018, no projeto de Tupaciguara, iniciaremos uma nova fase. Neste terceiro ano, fecharemos a turma para novos ingressantes e trabalharemos no sentido de formar monitores para o projeto a partir de 2019. Para isso, em diálogo com a supervisão técnica do projeto, decidimos trabalhar um quantao específico que fosse capaz de estruturar os alunos para ganhos significativos na qualidade técnica. Escolhemos, assim, uma das formas presentes no currículo do Sistema Básico de Kung Fu Kuoshu da Federação Mineira de Kung Fu Kuoshu: o Shierlu Tantui (十二路弹腿). Por isso, pretendo utilizar o espaço do Blog para falar um pouco sobre esta forma, o que será útil dentro do projeto e poderá interessar também, eventualmente, pessoas "de fora". O Tantui, em diferentes versões, está presente em incontáveis escolas de wushu, de tal modo que é um assunto de enorme interesse geral.

Representação gráfica de versão de 12 linhas da rotina Tantui.
À esquerda, está escrito: Bei Chang Quan Shu Shi Er Lu Quan Tu (Diagrama completo das doze linhas das técnicas de Punho Longo do Norte)
À direita, está escrito: Zi Xi Quan Shu Shi Er Lu Tan Tui ( Doze linhas de "pernas da família Tan" para estudo individual de técnicas de punho)

Significado de Tantui:

Primeiramente, é necessário tratar do significado da palavra Tantui (pronuncia-se algo como "tantuei"). Quanto a tui ("tuei") não há mistério. Trata-se do ideograma 腿, que significa "perna" e, no contexto marcial, pode indicar "golpes de pernas" ou "golpes com membros inferiores", ou seja, no popular "chutes". Sobre tan, entretanto, há muitas controvérsias, várias delas relacionadas às características do estilo do qual provem a forma e de suas origens. Tanto as características quanto as origens do estilo, entretanto, são pouco conhecidas. É importante lembrar que o termo tantui, até pelo menos o século XIX, circulou de modo oral nos círculos marciais. Por isso, não é fácil nem mesmo saber qual o ideograma relacionado à fonética de tan, por isso as diversas interpretações e variações na escrita de tantui, por exemplo:

覃腿 ou 潭腿 ou 谈腿 ou 談腿 ou 谭腿 ou 譚腿 ou 郯腿 e outras variações - "Pernas da Família Tan", sendo Tan um sobrenome familiar.
弹腿 ou 彈腿 - "Pernas elásticas", o que se relaciona com características do chute.
潭腿 - "Pernas do lago", sendo isso uma possível referência geográfica da origem do estilo (em Shandong há uma larga região de lagos). O termo também pode fazer referência ao Templo do Lago do Dragão (龍潭), em Shandong.
郯腿 - "Pernas de Tan", sendo Tan o nome de uma antiga cidade (hoje, distrito de Tancheng, na cidade de Linyi) na província de Shandong (山东), nordeste da China.

Origens Étnicas:

Apesar de hoje em dia praticamente só conhecermos o Tantui como formas isoladas de treinamento, presente em vários estilos e sistemas de artes marciais chinesas, no passado, ele provavelmente se referia a um estilo completo. Este estilo teria origem na província de Shandong, sendo parte de uma grande gênero de artes marciais chinesas, conhecido como 教门長拳 (Jiaomen Changquan).

教门, Jiaomen é uma palavra interessante, trata-se de uma combinação de dois ideogramas, o primeiro, jiao, significa "religião" ou "doutrina", enquanto "men", significa "portal", "portão" ou "porta". No contexto das artes marciais chinesas, Jiaomen refere-se a um grupo étnico específico, um dos mais de 50 grupos étnicos reconhecidos ou dos mais de 100 presentes na China atual: os chineses hui (), de origem muçulmana.

Fotografia de um senhor de etnia Hui na China contemporânea.

É difícil precisar quando os povos Hui estabeleceram-se na China. Apesar disso, é provável que o processo tenha sido iniciado após a conquista do Caganato Turco, também conhecido como Caganato Onoq ou, em chinês, 西突厥 (Xi Tujue), pelo imperador Tang Taizong, no início do século VII da nossa era cristã. Esta região é compreendida por territórios hoje pertencentes a países como o Cazaquistão, o Turcomenistão e a Rússia, por exemplo, e eram habitados por povos de origem persa, mongol, turcomana e outras.

Representação espacial contendo região de fronteira entre os Turcos (Eastern Turks) e a China da Era Tang.

Naquela época, o Islamismo estava nascendo e começando a avançar pela Península Arábica e, ao longo dos séculos VII e VIII, chegaria próximo à fronteira com o Império Tang, principalmente durante a expansão do Califado Omíada. A dinastia Tang é considerada uma época de grande importância cultural na História da China. Foi durante ela que o Budismo (de origem indiana) se espalhou fortemente na região. Neste período, havia um clima de abertura para a absorção de culturas e povos estrangeiros. Com isso, os muçulmanos também puderam encontrar o seu espaço. Assim, trouxeram para a China sua religião, sua língua, seus costumes, suas práticas alimentares, sua cultura material e, junto a isso, ajudaram a constituir correntes de troca cultural e comercial entre a Ásia central e a oriental, além de alianças militares entre a China e impérios vizinhos, como o Caganato Uyghur, em chinês:  回纥 (Hui he), nome do qual se derivou a nomenclatura da etnia Hui. 回教 (Hui jiao) é a palavra chinesa para Islamismo.

As relações entre os povos Hui com a chamada maioria Han e outros grupos étnicos chineses, contudo, nem sempre foram das mais fraternas. Várias rebeliões marcaram a história dos Hui ao longo das dinastias imperiais chinesas, seguidas de fortes repressões, perseguições e represálias. Isto foi muito dramático durante o período de consolidação da Dinastia Qing, no século XVII da nossa era, quando lideranças Hui juntaram-se à resistência leal aos Ming contra os Manchus. Durante a Dinastia Qing, os Hui sofreram muita discriminação e humilhações coletivas e, em contrapartida, envolveram-se em diversas rebeliões contra o Império. Com o advento da República, os Hui foram reconhecidos, pelo partido Nacionalista, como descendentes do Imperador Amarelo (黃帝, Huang Di), fundador místico da nação chinesa.

O Jiaomen, o Tantui e as Artes Marciais Chinesas:

南京到北京。彈腿出在敎門中。
(Entre Nanquim e Pequim, o Tantui vem dos Muçulmanos)

Por volta do final da Dinastia Ming pode ter surgido o 教门弹腿, Jiaomen Tantui. Segundo um ditado nascido naquela época (cuja variação utilizamos acima a partir de um manual de 1922), "de Nanquim a Pequim, os melhores exercícios de pernas provêm dos Hui" (Obs.: a província de Shandong fica no meio do caminho entre Pequim e a antiga co-capital, Nanquim). Naquele tempo, teria sido expandido o wushu da família Hui de sobrenome Cha, ou seja, o Chaquan (查拳), punho da "família Cha". Isto foi quando estas artes "populares" de combate sem armas misturaram-se a antigas práticas ginásticas de origem Taoista, como o genericamente denominado Daoyin (导引). Por meio de processos de sincretismos religiosos, esta simbiose deu origem a várias artes marciais praticadas em mosteiros budistas e taoistas no norte da China, em províncias como Henan, Shanxi, Hebei, Shandong e outras.

Associado ao mosteiro de Shaolin, o que chamamos hoje de Shaolinquan é uma derivação de Changquan, "punho longo", conceito que vem se modificando desde o final da Dinastia Ming e que tomou conotações específicas no contexto do Wushu Moderno, mais recentemente. A antiguidade do Kung Fu Shaolin, supostamente associada a Bodhidharma e ao Kalaripayattu indiano, não passa de um mito. A base histórica dos estilos associados a Shaolin é o "Punho Longo", o que ironicamente desloca a suposta origem indiana/budista do Kung Fu e a aproxima de escolas ligadas, direta ou indiretamente, a etnias turcomenas/muçulmanas, mas esta é uma outra história...

Nesta difusão do Jiaomen entre o final da Dinastia Ming e início da Dinastia Qing, foram sendo constituídos métodos de treinamento marcial que fundiam diferentes estilos em famílias mais genéricas. O Jiaomen Changquan  de Guanxian, em Shandong, por exemplo, incluía dez rotinas de Chaquan, sendo o treinamento iniciado pelo Tantui. A estas alturas, o Tantui havia sido incorporado ao Chaquan como uma forma inicial, o que teria começado, segundo a tradição oral do Chaquan, pela iniciativa de um mestre de origem Hui, Cha Shangyi, no final da Era Ming. Teria nascido ali o Shilu Tantui (十路弹腿), rotina de dez seguimentos de Tantui. Hoje, muitas versões de Tantui trazem dez seguimentos, enquanto outras trazem números diferentes, principalmente doze, como é o caso da nossa versão. Há evidências, entretanto, de antigas rotinas de Tantui com até vinte e oito linhas.

O General Qi Jiquan, durante a Dinastia Ming, referiu-se a um homem de etnia Hui e conhecedor de diversos estilos de Jiaomen Changquan chamado Li Pantien, que era visto como proficiente em técnicas conhecidas como Tantui.

Desde então, o Tantui foi deixando de ser praticado como um estilo completo (hoje, como estilo, ele, na sua versão "original", já não existe mais), passando a ser integrado, como rotina introdutória, ao Chaquan, ao Jiaomen Changquan e, posteriormente, às suas muitas e muitas derivações. O Shilu Tantui, o Shierlu Tantui e outras variações passaram, desde então, a ser tomadas como rotinas capazes de promover uma introdução aos movimentos dos estilos "norte" de artes marciais chinesas, fama que ainda mantêm até hoje em escolas tradicionais e modernas de wushu e de kuoshu.

Um passo marcante no estabelecimento do Tantui como forma introdutória às artes marciais chinesas de "punho longo" (Changquan) foi a inclusão de Shierlu Tantui como rotina inicial de aprendizado do currículo básico da Associação Jingwu, de Xangai, no início do século XX. O currículo básico trazia também a forma Jie Tantui (接潭腿), praticada em dupla, como luta combinada. A Associação teve um papel importante na disseminação ou "popularização" das artes marciais chinesas de modo mais aberto nas zonas urbanas da China "moderna". Isso ajudou enormemente na divulgação da rotina de doze linhas de Tantui pelo mundo das artes marciais chinesas.

Huo Yuanjia, um dos fundadores e símbolo da Associação Jingwu, era mestre de Mizongquan (outro estilo de Jiaomen Changquan) e introduziu diversas formas de Tantui no currículo da Associação.

Considerações finais:

A disseminação do Tantui como forma introdutória de estilos norte de Kung Fu ou do Kung Fu de forma geral tem ligação com um velho ditado nas artes marciais chinesas: "se o seu Tantui é bom, seu Kung Fu também será bom". Este é um ditado exagerado, mas significativo da ideia que se faz da rotina como um excelente exercício preparatório e promotor dos fundamentos básicos da arte. Por um lado, esta ideia potencializa bastante o seu uso didático, por outro, traz como efeito colateral, muitas vezes, a "redução" da rotina a algo voltado para principiantes (apenas). Pensar dessa forma é um grande desperdício. A rotina do Tantui é bastante rica não somente como meio de introdução ao Kung Fu, mas também traz aspectos que favorecem o treinamento de praticantes intermediários e avançados. Ela compreende, ainda que fragmentariamente e hoje misturados a outras culturas marciais, princípios de um estilo completo, capazes de dar origem a muitas técnicas, movimentos e aplicações. É, além de um ótimo exercício físico, um meio de praticar o controle do Qi () e de desenvolver habilidades marciais desde o início do aprendizado até as suas etapas mais avançadas. Além disso, o Tantui pode funcionar como uma "janela" para diferentes estilos e escolas de artes marciais chinesas. A rotina, bem praticada e de modo consciente, permite-nos sondar corporal e energeticamente um pouco da história das origens e desenvolvimento disso que nós chamamos genericamente de Wushu, contemplando pelo menos quatro séculos de transformações e continuidades que a fizeram chegar até nós. Em futuras publicações, exploraremos um pouco mais do universo de Tantui. Aguardem os "próximos capítulos"...

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