quinta-feira, 1 de fevereiro de 2018

O que é Tantui? (Parte 1: Origens da Forma e de Seu Estilo)

Parte 1: Origens da Forma e de Seu Estilo

Preâmbulo:

Em 2018, no projeto de Tupaciguara, iniciaremos uma nova fase. Neste terceiro ano, fecharemos a turma para novos ingressantes e trabalharemos no sentido de formar monitores para o projeto a partir de 2019. Para isso, em diálogo com a supervisão técnica do projeto, decidimos trabalhar um quantao específico que fosse capaz de estruturar os alunos para ganhos significativos na qualidade técnica. Escolhemos, assim, uma das formas presentes no currículo do Sistema Básico de Kung Fu Kuoshu da Federação Mineira de Kung Fu Kuoshu: o Shierlu Tantui (十二路弹腿). Por isso, pretendo utilizar o espaço do Blog para falar um pouco sobre esta forma, o que será útil dentro do projeto e poderá interessar também, eventualmente, pessoas "de fora". O Tantui, em diferentes versões, está presente em incontáveis escolas de wushu, de tal modo que é um assunto de enorme interesse geral.

Representação gráfica de versão de 12 linhas da rotina Tantui.
À esquerda, está escrito: Bei Chang Quan Shu Shi Er Lu Quan Tu (Diagrama completo das doze linhas das técnicas de Punho Longo do Norte)
À direita, está escrito: Zi Xi Quan Shu Shi Er Lu Tan Tui ( Doze linhas de "pernas da família Tan" para estudo individual de técnicas de punho)

Significado de Tantui:

Primeiramente, é necessário tratar do significado da palavra Tantui (pronuncia-se algo como "tantuei"). Quanto a tui ("tuei") não há mistério. Trata-se do ideograma 腿, que significa "perna" e, no contexto marcial, pode indicar "golpes de pernas" ou "golpes com membros inferiores", ou seja, no popular "chutes". Sobre tan, entretanto, há muitas controvérsias, várias delas relacionadas às características do estilo do qual provem a forma e de suas origens. Tanto as características quanto as origens do estilo, entretanto, são pouco conhecidas. É importante lembrar que o termo tantui, até pelo menos o século XIX, circulou de modo oral nos círculos marciais. Por isso, não é fácil nem mesmo saber qual o ideograma relacionado à fonética de tan, por isso as diversas interpretações e variações na escrita de tantui, por exemplo:

覃腿 ou 潭腿 ou 谈腿 ou 談腿 ou 谭腿 ou 譚腿 ou 郯腿 e outras variações - "Pernas da Família Tan", sendo Tan um sobrenome familiar.
弹腿 ou 彈腿 - "Pernas elásticas", o que se relaciona com características do chute.
潭腿 - "Pernas do lago", sendo isso uma possível referência geográfica da origem do estilo (em Shandong há uma larga região de lagos). O termo também pode fazer referência ao Templo do Lago do Dragão (龍潭), em Shandong.
郯腿 - "Pernas de Tan", sendo Tan o nome de uma antiga cidade (hoje, distrito de Tancheng, na cidade de Linyi) na província de Shandong (山东), nordeste da China.

Origens Étnicas:

Apesar de hoje em dia praticamente só conhecermos o Tantui como formas isoladas de treinamento, presente em vários estilos e sistemas de artes marciais chinesas, no passado, ele provavelmente se referia a um estilo completo. Este estilo teria origem na província de Shandong, sendo parte de uma grande gênero de artes marciais chinesas, conhecido como 教门長拳 (Jiaomen Changquan).

教门, Jiaomen é uma palavra interessante, trata-se de uma combinação de dois ideogramas, o primeiro, jiao, significa "religião" ou "doutrina", enquanto "men", significa "portal", "portão" ou "porta". No contexto das artes marciais chinesas, Jiaomen refere-se a um grupo étnico específico, um dos mais de 50 grupos étnicos reconhecidos ou dos mais de 100 presentes na China atual: os chineses hui (), de origem muçulmana.

Fotografia de um senhor de etnia Hui na China contemporânea.

É difícil precisar quando os povos Hui estabeleceram-se na China. Apesar disso, é provável que o processo tenha sido iniciado após a conquista do Caganato Turco, também conhecido como Caganato Onoq ou, em chinês, 西突厥 (Xi Tujue), pelo imperador Tang Taizong, no início do século VII da nossa era cristã. Esta região é compreendida por territórios hoje pertencentes a países como o Cazaquistão, o Turcomenistão e a Rússia, por exemplo, e eram habitados por povos de origem persa, mongol, turcomana e outras.

Representação espacial contendo região de fronteira entre os Turcos (Eastern Turks) e a China da Era Tang.

Naquela época, o Islamismo estava nascendo e começando a avançar pela Península Arábica e, ao longo dos séculos VII e VIII, chegaria próximo à fronteira com o Império Tang, principalmente durante a expansão do Califado Omíada. A dinastia Tang é considerada uma época de grande importância cultural na História da China. Foi durante ela que o Budismo (de origem indiana) se espalhou fortemente na região. Neste período, havia um clima de abertura para a absorção de culturas e povos estrangeiros. Com isso, os muçulmanos também puderam encontrar o seu espaço. Assim, trouxeram para a China sua religião, sua língua, seus costumes, suas práticas alimentares, sua cultura material e, junto a isso, ajudaram a constituir correntes de troca cultural e comercial entre a Ásia central e a oriental, além de alianças militares entre a China e impérios vizinhos, como o Caganato Uyghur, em chinês:  回纥 (Hui he), nome do qual se derivou a nomenclatura da etnia Hui. 回教 (Hui jiao) é a palavra chinesa para Islamismo.

As relações entre os povos Hui com a chamada maioria Han e outros grupos étnicos chineses, contudo, nem sempre foram das mais fraternas. Várias rebeliões marcaram a história dos Hui ao longo das dinastias imperiais chinesas, seguidas de fortes repressões, perseguições e represálias. Isto foi muito dramático durante o período de consolidação da Dinastia Qing, no século XVII da nossa era, quando lideranças Hui juntaram-se à resistência leal aos Ming contra os Manchus. Durante a Dinastia Qing, os Hui sofreram muita discriminação e humilhações coletivas e, em contrapartida, envolveram-se em diversas rebeliões contra o Império. Com o advento da República, os Hui foram reconhecidos, pelo partido Nacionalista, como descendentes do Imperador Amarelo (黃帝, Huang Di), fundador místico da nação chinesa.

O Jiaomen, o Tantui e as Artes Marciais Chinesas:

南京到北京。彈腿出在敎門中。
(Entre Nanquim e Pequim, o Tantui vem dos Muçulmanos)

Por volta do final da Dinastia Ming pode ter surgido o 教门弹腿, Jiaomen Tantui. Segundo um ditado nascido naquela época (cuja variação utilizamos acima a partir de um manual de 1922), "de Nanquim a Pequim, os melhores exercícios de pernas provêm dos Hui" (Obs.: a província de Shandong fica no meio do caminho entre Pequim e a antiga co-capital, Nanquim). Naquele tempo, teria sido expandido o wushu da família Hui de sobrenome Cha, ou seja, o Chaquan (查拳), punho da "família Cha". Isto foi quando estas artes "populares" de combate sem armas misturaram-se a antigas práticas ginásticas de origem Taoista, como o genericamente denominado Daoyin (导引). Por meio de processos de sincretismos religiosos, esta simbiose deu origem a várias artes marciais praticadas em mosteiros budistas e taoistas no norte da China, em províncias como Henan, Shanxi, Hebei, Shandong e outras.

Associado ao mosteiro de Shaolin, o que chamamos hoje de Shaolinquan é uma derivação de Changquan, "punho longo", conceito que vem se modificando desde o final da Dinastia Ming e que tomou conotações específicas no contexto do Wushu Moderno, mais recentemente. A antiguidade do Kung Fu Shaolin, supostamente associada a Bodhidharma e ao Kalaripayattu indiano, não passa de um mito. A base histórica dos estilos associados a Shaolin é o "Punho Longo", o que ironicamente desloca a suposta origem indiana/budista do Kung Fu e a aproxima de escolas ligadas, direta ou indiretamente, a etnias turcomenas/muçulmanas, mas esta é uma outra história...

Nesta difusão do Jiaomen entre o final da Dinastia Ming e início da Dinastia Qing, foram sendo constituídos métodos de treinamento marcial que fundiam diferentes estilos em famílias mais genéricas. O Jiaomen Changquan  de Guanxian, em Shandong, por exemplo, incluía dez rotinas de Chaquan, sendo o treinamento iniciado pelo Tantui. A estas alturas, o Tantui havia sido incorporado ao Chaquan como uma forma inicial, o que teria começado, segundo a tradição oral do Chaquan, pela iniciativa de um mestre de origem Hui, Cha Shangyi, no final da Era Ming. Teria nascido ali o Shilu Tantui (十路弹腿), rotina de dez seguimentos de Tantui. Hoje, muitas versões de Tantui trazem dez seguimentos, enquanto outras trazem números diferentes, principalmente doze, como é o caso da nossa versão. Há evidências, entretanto, de antigas rotinas de Tantui com até vinte e oito linhas.

O General Qi Jiquan, durante a Dinastia Ming, referiu-se a um homem de etnia Hui e conhecedor de diversos estilos de Jiaomen Changquan chamado Li Pantien, que era visto como proficiente em técnicas conhecidas como Tantui.

Desde então, o Tantui foi deixando de ser praticado como um estilo completo (hoje, como estilo, ele, na sua versão "original", já não existe mais), passando a ser integrado, como rotina introdutória, ao Chaquan, ao Jiaomen Changquan e, posteriormente, às suas muitas e muitas derivações. O Shilu Tantui, o Shierlu Tantui e outras variações passaram, desde então, a ser tomadas como rotinas capazes de promover uma introdução aos movimentos dos estilos "norte" de artes marciais chinesas, fama que ainda mantêm até hoje em escolas tradicionais e modernas de wushu e de kuoshu.

Um passo marcante no estabelecimento do Tantui como forma introdutória às artes marciais chinesas de "punho longo" (Changquan) foi a inclusão de Shierlu Tantui como rotina inicial de aprendizado do currículo básico da Associação Jingwu, de Xangai, no início do século XX. O currículo básico trazia também a forma Jie Tantui (接潭腿), praticada em dupla, como luta combinada. A Associação teve um papel importante na disseminação ou "popularização" das artes marciais chinesas de modo mais aberto nas zonas urbanas da China "moderna". Isso ajudou enormemente na divulgação da rotina de doze linhas de Tantui pelo mundo das artes marciais chinesas.

Huo Yuanjia, um dos fundadores e símbolo da Associação Jingwu, era mestre de Mizongquan (outro estilo de Jiaomen Changquan) e introduziu diversas formas de Tantui no currículo da Associação.

Considerações finais:

A disseminação do Tantui como forma introdutória de estilos norte de Kung Fu ou do Kung Fu de forma geral tem ligação com um velho ditado nas artes marciais chinesas: "se o seu Tantui é bom, seu Kung Fu também será bom". Este é um ditado exagerado, mas significativo da ideia que se faz da rotina como um excelente exercício preparatório e promotor dos fundamentos básicos da arte. Por um lado, esta ideia potencializa bastante o seu uso didático, por outro, traz como efeito colateral, muitas vezes, a "redução" da rotina a algo voltado para principiantes (apenas). Pensar dessa forma é um grande desperdício. A rotina do Tantui é bastante rica não somente como meio de introdução ao Kung Fu, mas também traz aspectos que favorecem o treinamento de praticantes intermediários e avançados. Ela compreende, ainda que fragmentariamente e hoje misturados a outras culturas marciais, princípios de um estilo completo, capazes de dar origem a muitas técnicas, movimentos e aplicações. É, além de um ótimo exercício físico, um meio de praticar o controle do Qi () e de desenvolver habilidades marciais desde o início do aprendizado até as suas etapas mais avançadas. Além disso, o Tantui pode funcionar como uma "janela" para diferentes estilos e escolas de artes marciais chinesas. A rotina, bem praticada e de modo consciente, permite-nos sondar corporal e energeticamente um pouco da história das origens e desenvolvimento disso que nós chamamos genericamente de Wushu, contemplando pelo menos quatro séculos de transformações e continuidades que a fizeram chegar até nós. Em futuras publicações, exploraremos um pouco mais do universo de Tantui. Aguardem os "próximos capítulos"...

Acesse aqui a PARTE 2...

Bibliografia:

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FAIRBANK, J. K.; GOLDMAN, M. China: uma nova história, Porto Alegre: L&PM, 2008.
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