quarta-feira, 15 de agosto de 2018

Fronteiras das artes marciais e limites de compreensão

Chinesas? Japonesas? Coreanas? Malaias? Tailandesas? Brasileiras?
Serão mesmo as artes marciais restritas à geografia das nações modernas?

Há tempos não atualizo este Blog. Tomado pelos afazeres (nem sempre prazerosos) do trabalho e do cotidiano, tive que interromper o ritmo das publicações. Retorno para abordar uma temática polêmica. Hoje, naturalizamos certos conceitos que são frutos de acidentes históricos. Enxergamos com os olhos do presente o resultado parcial e momentâneo de séculos de rupturas e continuidades. Atribuímos identidade muitas vezes petrificadas a culturas vivas e pulsantes. É o caso das artes marciais (todas elas!).

Tomemos, por exemplo, uma das artes mais associadas ao Japão: o Karatê. Sabemos que, originário das ilhas Ryu Kyu, modernamente nomeadas como Okinawa, antes de se tornar as "mãos vazias", pela interpretação de Gichin Funakoshi, era uma arte marcial conhecida pelo nome de "mãos chinesas", em provável alusão ou atribuição às suas origens em artes presentes na Província de Fujian (ou Fukien). A japonização das "mãos chinesas" está ligada a um processo de natureza geopolítica e militar pelo qual passava o leste asiático no século XIX.

O caso do Karatê é muito conhecido, pois esta arte foi das primeiras a se popularizarem fora da ásia, atraindo interesses de americanos e europeus. Mas a sua história não é tão distinta à de muitas outras artes que só foram se tornando conhecidas e praticadas em tempos mais recentes na Europa e nos EUA, como é o caso das artes malaias, filipinas e da Indonésia, por exemplo. Entre os séculos XVI e XVIII, ocorreram muitas transformações históricas importantes no mundo todo e, em particular, no leste asiático. É um contexto histórico também muito decisivo para as artes marciais e talvez seja oportuno falar sobre isso.

Neste período, podemos destacar pelo menos três vetores importantes que alteraram as feições do leste asiático. Desde o início do século XVI, tem-se o início do processo de expansão comercial e marítimo europeu para o extremo oriente. Portugueses, espanhóis, seguidos por holandeses, franceses e ingleses iriam se estabelecer militar e comercialmente em várias partes da costa asiática no Pacífico, tais como em Macau, Filipinas, Formosa (Taiwan), Batávia (Jacarta) etc. Outro vetor importante é a queda da Dinastia Ming e o início da Dinastia Qing, da China, quando há um dos mais intensos processos de expansão dos domínios territoriais chineses e uma profunda reestruturação das relações interétnicas no seu interior. Por último, no início do século XVII, tem início, no Japão, a Era Tokugawa ou o Edo Bakufu. Todas as regiões do leste asiático foram, em algum aspecto, bastante afetadas por ao menos um destes três vetores.

No caso das artes marciais, pode-se destacar dois fenômenos bastante articulados a este contexto: o desenvolvimento e o ganho de interesse pelas artes marciais de punho (quan, 拳) na transição entre as eras Ming e Qing, na China; a mudança do estatuto social dos samurais na Era Edo.

No caso Chinês, as artes marciais de punho associavam-se, muitas vezes de modo ambíguo ou sutil e outras de modo mais explícito, à resistência étnica Han à nova dinastia. Um exemplo é a própria associação (por mais que fantasiosa) do Mosteiro Shaolin e dos seus monges guerreiros com a formação de seitas sediciosas, como a Tiandihui (天地会), Sociedade do Céu e da Terra. Outro exemplo é o Neijiaquan (内家拳). Huang Zongxi, em 1669, atribuiu a sua arte ao meio-lendário monge taoista Zhang Sanfeng, das montanhas de Wudang (武当山), o que autores como Douglas Wile e Meir Shahar interpretam como efeito do partidarismo Ming da família Huang frente ao início do domínio Manchu e às tentativas de cooptação dos chineses Han, no reinado de Kangxi.

No caso Japonês, a partir do século XVII, o Bushido (武士道), código ético dos guerreiros samurais, ganhará um renovado sentido. A elevação social da classe dos samurais e a sua ociosidade nos cada vez mais longos momentos de paz favoreceram um processo de sofisticação cultural e de nobilitação ética por parte dos clãs. A distinção, neste caso, não estaria tanto ligada somente ao uso eficiente das armas, mas a uma aura de excelência moral e espiritual, inspirada no Confucionismo e no Budismo Zen. É quando, por exemplo, surge o livro Hagakure (葉隱), de Yamamoto Tsunetomo, no qual se encontra, por exemplo, uma apologia ao suicídio ritual do Seppuku (切腹), mesmo após as suas proibições oficiais.

Tanto na China Qing, no interior das famílias Han, quanto no Japão Edo, entre os Samurais, as artes marciais foram assimiladas ao universo da alta cultura. Na China, o par Wu Wen (武文) torna-se uma constante nos círculos mais literários ligados às artes marciais de punho. No caso do Japão, é exemplar o caráter especial que passa a acompanhar a simbologia da katana. Símbolo máximo da honra do Samurai, sua espada era forjada por meio de técnicas que não eram só de natureza metalúrgica, mas também ritual.

Porém, as artes marciais não se restringiam aos círculos da alta cultura das famílias de chineses Han, tampouco dos samurais japoneses. Para além (ou aquém) dos elevados valores éticos confucionistas e das ligações que eram feitas entre as técnicas marciais e os universos simbólicos e filosóficos do taoismo, do budismo e do xintoísmo, por exemplo, as artes marciais também continuavam a servir outros fins, dentre os quais, a defesa, a sobrevivência, a diversão popular e até mesmo as práticas ilícitas. Na China, hoje sabemos o quanto foi importante o contexto dos "rios e lagos" (jianghu, 江湖) para o desenvolvimento das artes marciais. As populações itinerantes da China entre o final da Dinastia Ming e início da Dinastia Qing reuniam artistas marciais, atores de teatro popular, contadores de histórias, adivinhos e muitos outros sujeitos sociais errantes, que se encontravam pelos caminhos e, não raro, eram acolhidos em mosteiros taoistas e budistas pelo interior da China. Neste ambiente, as artes marciais estiveram sujeitas a um franco processo de circularidade cultural. Nele, a elite letrada interessada nas artes de punho encontrava-se com monges itinerantes, artistas populares e até mesmo bandidos, trocando técnicas, entendimentos, experiências e anedotas sobre os seus estilos.

Outro contexto importante no surgimento, desenvolvimento e difusão de artes marciais nos séculos XVI, XVII e XVIII, na China, eram as vilas, sobretudo aquelas localizadas nas Províncias com menor presença e controle por parte de Beijing. Sujeitas a ações de grupos marginais de bandidos e de rebeldes, estas vilas precisavam desenvolver as suas milícias. Sua população era treinada militarmente por professores locais ou mestres contratados de fora. Por segurança, suas técnicas e táticas de combate ficavam em segredo e eram passadas somente para os conterrâneos. Em momentos de guerra, como nas crises que marcaram o fim da Era Ming e início da Era Qing, muitas destas populações eram arregimentadas e treinadas por generais do Império. Isso pode ter sido um fator importante de popularização de técnicas e conhecimentos marciais junto ao "povo comum".

Duas regiões insulares nas fronteiras entre a China e o Japão do século XVII são importantes para a compreensão deste momento histórico: Taiwan e Okinawa. No final da Era Ming, na China, as duas regiões foram parcialmente relacionadas ao Império Chinês. Okinawa, então do Reino de Ryukyu, tornou-se tributária do Império Chinês no final do século XVI, mas, no início do século XVII, em meio à crise dinástica da China e o advento do Xogunato Tokugawa, foi submetida ao Japão. As relações entre as ilhas Ryu Kyu com a China eram intensas e eram intermediadas pela província de Fujian (Fukien). De lá, pode ter chegado a influência principal das artes marciais de Okinawa.

Também Taiwan estava articulada a província de Fujian. Aproximadamente entre as décadas de 1640 e 1680, Taiwan foi território em disputa entre holandeses, colonos chineses ligados ao comércio no Pacífico e o Império Qing. Os colonos chineses eram liderados pela família Zheng, ligada à pirataria e à navegação, constituindo uma rede comercial que se estendia entre Macau e Nagazaki, passando por Fujian, Taiwan e Okinawa. O mais famoso líder da família foi Zheng Chenggong, conhecido como Coxinga. Ele possuía uma fortaleza em Amoy (Xiamen) na costa sul de Fujian, que dava acesso portuário ao sul de Taiwan. De lá ele conseguiu expulsar os holandeses da colônia da Zeelândia, obrigando-os a refugiarem-se para a Batávia (Jacarta), na ilha de Java, Indonésia. Coxinga era um típico sujeito de fronteiras. Sua mãe era japonesa e seu pai chinês e, conforme o historiador Jonathan Spence, sua fortaleza em Amoy abrigava uma capela com imagens budistas e cristãs; em sua guarda de segurança, havia inclusive africanos fugidos da tutela de portugueses em Macau.

Na década de 1680, após consolidar-se no continente ao conter a guerra dos Três Feudatários, no sul da China, o Império Qing pode concentrar-se na conquista de Taiwan. Apesar da vitória contra o clã dos Zheng, Beijing tornou-se omissa na administração da Ilha. Assim, ela se tornou, por muito tempo, aberta a aventureiros e pessoas ambiciosas, principalmente, ligadas ao comércio e com ligações nas províncias sulistas da China (como Fujian e Cantão). A Dinastia Qing era bastante arredia ao grande comércio e evitava a presença de estrangeiros na maior parte de seu território. Mas nas franjas do Império, em lugares como Taiwan, isto se deu intensamente, tornando a região estratégica para a participação europeia no mercado asiático.

Hoje em dia, muitas artes marciais chinesas são praticadas em Taiwan. Entretanto, a maior parte das escolas foram criadas por lá na segunda metade do século XX, por mestres vindos da China Continental, no contexto da Guerra Civil, que destituiu os Nacionalistas do poder e instituiu a República Popular da China, sob o governo do Partido Comunista. Antes disso, porém, é muito possível que sistemas autóctones tenham sido desenvolvidos na ilha e fossem muito parecidos com os ancestrais de artes marciais de Okinawa, das Filipinas ou da Indonésia. Da mesma forma, é possível que tenha havido muita troca de saberes e técnicas marciais entre os sujeitos que circulavam pelas redes comerciais do Pacífico (em outra publicação, já falamos um pouco sobre isso: http://wudao-liberales.blogspot.com/2017/06/afinal-qual-graca-do-nunchaku.html).

Recentemente, um amigo compartilhou um vídeo nas redes sociais de um grupo de praticantes de Pencak Silat, de Jacarta, que me chamou muita atenção por conta de eu ter sentido muitas semelhanças com o universo das artes marciais chinesas. Segue o vídeo:


Eu fiz o seguinte comentário: "só eu vi alguma semelhança com o Louva Deus?" E ele me respondeu: "sentia familiaridade enquanto assistia mas não tinha associado com o tang lang, reassistindo realmente parece, muitas movimentação de braço com pernas mais estáticas, eixo mais curto e central na movimentação dos braços, o recurso didático ou estética de bater contra os próprios braços e emitir sons, os tipos de envolvimento dos braços e ganchos com as pernas, etc." Claro isto não quer dizer nem muito menos prova nenhuma relação efetiva entre o Tanglangquan e o Pencak Silat. Aliás, é bem provável que esta impressão puramente "achista" nossa seja equivocada. São realmente impressões vagas e sem qualquer tipo de critério mais rigoroso de avaliação. Pode ser que as semelhanças sejam acidentais ou, mesmo que não, relacionem-se a um contexto de intercâmbio mais recente.

Para efeito de alguma comparação (levando em conta que, mesmo sendo um vídeo de Taiwan, provavelmente, isto não tem relação com as artes marciais da Ilha nos séculos XVII e XVIII), ver este exemplo mais moderno de Tanglangquan:


Não pude, ainda assim, evitar de pensar que Jacarta, nos séculos XVII e XVIII, foi o refúgio dos Holandeses expulsos de Taiwan por Coxinga, base de atividades da Companhia das Índias Orientais, que cultivavam lá cana-de-açúcar com mão-de-obra de imigrantes chineses. Também não pude deixar de me lembrar que, neste contexto, javaneses e chineses chegaram a se juntar em rebeliões contra os holandeses e que, talvez, com alguma plausibilidade, eles tenham trocado conhecimentos sobre técnicas de combate.

Fui, então, consultar a importante enciclopédia  de artes marciais mundiais do professor Thomas Green a fim de conferir as possíveis conexões entre o Pencak Silat e as artes marciais chinesas. Encontrei duas referências importantes. Uma no verbete Political Conflict and the Martial Arts e outra no próprio verbete Silat. Nos dois casos, enfatiza-se a crença de antigos praticantes de Pencak Silat em técnicas esotéricas (o tenaga dalam) capazes de tornar o corpo invulnerável (inclusive a armas de fogo). O autor compara estes métodos "mágicos" àqueles presente na Guerra dos Boxers, como o Jinzhong Zhao (金钟罩). Contudo, enquanto a teorização chinesa destes métodos apela a um vocabulário e a uma semântica taoista da circulação do Qi (气), o tenaga dalam é explicado em termos sufistas, próprios do misticismo islâmico difundido em Java. Interessantemente, assim como os Boxers recuperaram métodos desta natureza para combater europeus na China no século XIX, o Pencak Silat foi recuperado e, de certo modo, redescoberto, no contexto das lutas anti-coloniais da Indonésia, contra holandeses, na época da II Guerra Mundial. Atualmente, as escolas modernas de Silat negam as práticas de tenaga dalam como parte de seus sistemas. De modo análogo, as artes marciais chinesas modernas buscam se dissociar daqueles métodos "mágicos" ou "xamânicos", tomados como "supersticiosos".

É claro que Karatê é Karatê, Silat é Silat e Tanglangquan é Tanlangquan! Não estamos dizendo que todas as artes sejam simplesmente a mesma coisa. Há enormes diferenças técnicas, teóricas e de entendimento entre elas. Em cada cultura em que se fizeram e se fazem presente, adquirem seus novos significados e articulam-se aos seus atributos próprios, seja no âmbito da literatura, da língua, da ética, da filosofia, da religião ou da estética, por exemplo. O que queremos dizer é que elas estão conectadas historicamente e não podem ser reduzidas a substâncias coincidentes com o espírito de um único povo, nação ou etnia. Suas fronteiras são porosas há muitos séculos. Elas relacionam-se entre si desde muito tempo, não só a partir do momento de sua ocidentalização. Além disso, queremos dizer que fora de ambientes aristocráticos das famílias chinesas Han e dos clãs de samurais japoneses, há muita história das artes marciais. Histórias marginais, que nem sempre encontraram disposição de registro entre viajantes japoneses, generais da Dinastia Ming ou letrados Han da Dinastia Qing. Conhecer a fundo as suas histórias talvez seja muito difícil, por conta da escassez de fontes. Isso não é motivo, entretanto, para as negar.

Referências Bibliográficas:


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Links de referência:


https://en.wikipedia.org/wiki/History_of_the_Ryukyu_Islands

https://en.wikipedia.org/wiki/Jakarta

http://www.niten.org.br/penaespada/penaartigos/hagakure.html