quarta-feira, 26 de setembro de 2018

Feminicídio e artes marciais


No dia 20 de setembro de 2018, há aproximadamente uma semana, foi divulgado pela mídia um laudo do IML, confirmando que Tatiane Spizner foi morta por estrangulamento. O réu acusado de sua morte é o próprio marido, que, segundo as notícias veiculadas, é faixa roxa de Jiu-Jitsu.

Conheça o caso:



Não adianta tampar o sol com a peneira: o uso de técnicas de artes marciais fatais, no caso, do Jiu-Jitsu, para esganar, asfixiar e, assim, matar esta mulher é um fato que necessita ser pensado, questionado e denunciado! Evidentemente, não se trata de demonizar o Jiu-Jitsu ou qualquer outra arte marcial. Toda arte marcial é perigosa. O que precisamos entender é o que pode estar favorecendo o uso de artes marciais para finalidades como esta. Eu gostaria de levantar pelo menos três fatores que potencializam isso na história recente da difusão e da prática das artes marciais no mundo.


1. Negligência ou má compreensão quanto à ética marcial


Há uma história nas artes marciais chinesas (em parte lendária, em parte real) de que, antes de ensinar algo realmente importante para os alunos, os mestres ou professores devem testá-los por ao menos dois anos. Este "teste de índole" ou de "caráter" teria como objetivo evitar que alunos violentos ou de atitudes inadequadas pudessem agir de modo a envergonhar o seu mestre e a sua arte. Durante um tempo, antes do ensino de técnicas de luta, o professor cuidaria principalmente da formação civil do caráter do aluno, ensinando-o sobre valores compartilhados na sua cultura. Vários mestres importantes enfatizaram isso, sobretudo, a partir de concepções confucionistas. Dois exemplos que eu posso citar de cabeça são o Mestre Yang Banhou (recentemente analisado pelo professor Roque Severino em seu Tai Chi Chuan - A arte de meditação no movimento) e o Sensei Gichin Funakoshi.

Este valor ou primazia do civil sobre o marcial, enfatizado em escolas tradicionais de artes marciais asiáticas, é mal compreendido e até mesmo negado por praticantes contemporâneos de artes marciais (inclusive de artes marciais tradicionais). Muitos deles argumentam que as funções básicas das artes marciais são relacionadas à defesa e ao ataque, inclusive ao ferir e ao matar. A dimensão ética ou filosófica (civil) seria somente um subproduto, uma função secundária, introduzida em momentos posteriores da história das suas evoluções. Além de um erro histórico, esta concepção é uma armadilha ética, pois dá autonomia à marcialidade como um fim em si próprio e não como meio de autoconhecimento, auto-uso e auto-realização.

Por outro lado, há aqueles que entendem a ética marcial de maneira culturalmente deslocada e associam wu ao militarismo. Sobre este equívoco, já escrevemos um outro artigo ao qual me remeto aqui para não ficar repetitivo. Sob esta perspectiva, a ética acaba sendo resumida há um rol relativamente restrito de preceitos relacionados à hierarquia, à obediência, à lealdade e aos rituais formais de um Dojo, Dao Chang ou academia. As conexões necessárias entre o wu (武) e wen (文), características da wude (武德) das artes marciais chinesas, ficam perdidas e os referenciais éticos do praticante, embaçados por preconceitos advindos da sua cultura, muitas vezes, patriarcal, militarista e mesmo totalitária.

No ambiente comercial das academias de artes marciais contemporâneas, há negligência enorme quanto ao estudo criterioso e qualitativo das culturas relativas ao universo das artes marciais. Junto com isso, a ética marcial decai e a violência, muitas vezes, aflora. Muitos praticantes, inclusive professores e mestres, chegam a menosprezar o estudo e a leitura das tradições filosóficas relacionadas as suas artes, considerando algo menor ou mesmo "frescura". E desta ignorância nasce a sementinha da barbárie.

2. O machismo nas artes marciais


Também já abordamos o tema do gênero na prática das artes marciais e me remeto ao artigo para não ficarmos repetitivos: aqui. Não tenho dados estatísticos confiáveis a respeito, mas é visível, quando se frequenta espaços relacionados às artes marciais asiáticas (no Brasil), que a enorme maioria de praticantes é do sexo masculino. Isso talvez só seja exceção no Taijiquan - socialmente associada (equivocadamente) a uma arte "suave", que "só" mereceria ser praticada por finalidades "terapêuticas" - e no Muay Thai - que ganhou a fama de ser uma atividade fitness. Quando se fala em artes marciais para competição ou para "defesa pessoal", a maior parte dos interessados é sempre homem. Mulheres neste meio, inclusive, são vítimas de muito preconceito e discriminação.

Este ambiente é altamente atrativo a públicos machistas, cujos hábitos mentais e de comportamento, algumas vezes, denotam sérios problemas de relacionamento com o sexo oposto e/ou com a sua própria sexualidade. Sem querer fazer aqui qualquer tipo de análise que reforce estereótipos, mas apenas mencionando alguns tipos que recorrentemente aparecem para aprender artes marciais, há entre eles muitos meninos que buscam estas atividades para vencer a timidez, enfrentar o bullying ou para dar vazão ou melhor controle à sua agressividade. Por trás disso, também sem querer fazer psicologia barata, há muitos traumas que o acompanham desde o ambiente familiar. Em suma: tem muitos homens e meninos nas artes marciais na busca de resolver problemas relacionados à sua masculinidade.

Este público masculino mais problemático que frequenta o universo das artes marciais não é um problema em si. O problema é propriamente quando os seus professores e mestres (muitos dos quais sofredores dos mesmos problemas) ignoram ou fecham os olhos para ele, não conseguindo, portanto, ajudar os seus alunos a superá-lo. O problema é quanto o comportamento deste público contamina o ambiente e passa atrair somente ou majoritariamente este tipo de perfil para dentro de uma academia ou de uma arte, tornando-a hostil, por exemplo, a mulheres, homossexuais, idosos etc. Esta "arte marcial testosterona" é mais comum do que se pode imaginar e bastante traiçoeira, pois muitos dos seus sujeitos não conseguem se reconhecer nela.


3. A esportivização do "Vale Tudo" e a massificação das Artes Marciais Mistas (MMA)


Na história contemporânea, uma das condições de preservação e expansão da prática das artes marciais asiáticas foi a sua esportivização. Assim como outras práticas potencialmente violentas do ocidente, no século XIX e início do século XX, a transformação de artes marciais em esporte fez parte de um processo que, na Sociologia, recebe o nome de "civilizador". É interessante lembrar que, como afirmei acima, nas artes marciais, o civil, de certo modo, acompanha e precede o marcial. Quando estas artes se tornam esporte, o aspecto "civil" acentua-se, embora com outros significados éticos ligados a valores de "competição saudável", tais como o fair play, o respeito ao adversário e a importância da preparação/treinamento. A esportivização das artes marciais significa também o abrandamento do seu potencial violento. Ela limitou o uso da força e das técnicas mais lesivas ou letais em competições de modo que a luta esportiva tornou-se "artificial".

A artificialidade das lutas esportivas em determinado momento da história (a partir de por volta dos anos 1980 e 1990) levou a questionamentos sobre a "eficácia" destas artes em situações "reais" de defesa e de combate. Foi, neste contexto, que surgiram as competições de "vale tudo" (em países como o Brasil e os EUA). Estas competições, muitas vezes clandestinas, primavam pela ausência de regras e de restrições a golpes perigosos. Entre os desafiantes, não raro, havia aqueles que buscavam a demonstrar o quanto a sua arte era "superior" às demais em contextos similares ao da "realidade". Foi assim, inclusive, que o Jiu-Jitsu brasileiro ganhou fama. Sua difusão mundial esteve (como de certo modo ainda está) muito relacionada à eficácia de suas técnicas neste tipo de competição.

Com o tempo e a necessidade de se institucionalizar e garantir um mercado, o "Vale Tudo" evoluiu para o MMA, as Artes Marciais Mistas. Neste processo, o minimalismo de regras foi alterado. As lutas de MMA, por exemplo, envolvem categorias por peso, um controle anti-doping e possuem preocupações com a integridade física dos competidores. Os competidores dos grandes eventos de MMA são atletas profissionais bem preparados e devotados ao seu esporte. Este esporte é mundialmente ascendente em popularidade e, no Brasil, possui legiões de fans.

O MMA não é um problema em si. Trata-se de um esporte (sem dúvidas arriscado e violento) com muitos adeptos e tão legítimo quanto qualquer outro. Seus competidores são adultos, sabem o que estão fazendo e se preparam para o que fazem. O problema é que, como um esporte de massa, possui fãs de todos os tipos, inclusive aqueles que, com pouco ou nenhum tipo de preparo ou conhecimento de artes marciais, fantasiam-se capazes das mesmas façanhas de seus heróis. É um público que procura academias e, frequentemente, também está associado aos dois fatores que citei anteriormente: o machismo e a ignorância. Tais fantasias relacionam-se a conceitos de dominação, submissão e opressão do outro. Inclusive do outro sexo.


Considerações Finais


Em conclusão, eu gostaria de fazer algumas considerações. Primeiro, não é o caso de condenarmos as artes marciais (o Jiu-Jitsu ou qualquer outra em particular). O que precisamos condenar é o modo que tais artes vêm sendo ensinadas e passadas para pessoas sem atenção ao mínimo de estrutura emocional, cultural e ética dos praticantes. Neste sentido, causa-me arrepios, por exemplo, a ideia de ensino de artes marciais nas escolas sem um cuidado muito grande com o seu modo de transmissão e o contexto do seu aprendizado.

Em segundo lugar, é preciso recuperar a dimensão civil das artes marciais e enfatizar os seus aspectos de autoconhecimento, de controle das emoções e de fruição cultural. Enquanto isso for secundário frente a demandas de auto-defesa e de técnicas de combate, mais suscetíveis estaremos à violência por meio destas artes.

Terceiro, embora o MMA seja legítimo como prática esportiva, é preciso criar meios de controle da violência em potencial de parte de seu público, seja por meio de uma política mais restritiva de classificação etária, seja por meio de campanhas e práticas efetivas organizadas pelas empresas que comandam este negócio.

Em quarto e último lugar, talvez mais importante neste caso específico, a sociedade brasileira em geral e as comunidades marciais, de modo mais específico, devem ser intransigentes com o feminicídio, as práticas misóginas e os pensamento e comportamento machistas. Está na hora, no caso das comunidades marciais, de dar bons exemplos, inclusive por meio de banimentos e perda de graduação para aqueles praticantes que se envolvam em casos de violência de modo geral, mas especialmente nos recorrentes casos de violência de gênero. É necessário que as associações, federações e academias desenvolvam estratégias positivas de acolhimento de mulheres e do público LGBT. Esta é uma dívida histórica das artes marciais que não pode mais tardar e que tem feito muitas vítimas, desonrando e envergonhando os nossos mestres, nossos ancestrais e a nossa história.