segunda-feira, 29 de outubro de 2018

Autodefesa e a comunidade LGBT: abordagem preliminar do problema


Hoje, dia 29 de outubro de 2018, o Brasil acordou com um novo presidente eleito. Ao longo desta última campanha eleitoral, talvez uma das mais polarizadas e violentas da história da nossa frágil e jovem democracia, velhos ódios e intolerâncias foram inflamados e até mesmo instrumentalizados. O discurso conservador, defendido enfaticamente pelo grupo mais vitorioso no pleito (grupo que elegeu, além do presidente da República, governadores de vários estados e uma numerosa bancada no Congresso Nacional), foi utilizado pelos mais exaltados, que deram vazão a arroubos de violência. Não somente ocorreram diversos casos de agressão física como um número ainda maior de casos de ameaças e de constrangimento simbólico. Os diversos grupos LGBTI+, principalmente os transsexuais, são dos mais vulneráveis neste processo. Toda esta situação tem levado ao medo e até mesmo ao pânico muitas pessoas que se veem nesta condição.

Foi percebendo este contexto, ainda ao longo do processo eleitoral, que tive a ideia de criar, para 2019-2020, um projeto de extensão voltado especialmente para lidar com o problema. Várias pessoas da comunidade LGBTI+ já estão procurando artes marciais e aulas de defesa pessoal para se protegerem. Entretanto, eu penso que esta busca é insuficiente se não vier acompanhada de outros instrumentos importantes e outras atitudes/atividades auto-protetivas e de auto-conhecimento. Cabe assinalar, também, que o fenômeno, infelizmente, não se resume ao Brasil e ao nosso processo político-eleitoral. Ele é crescente mundialmente, acompanhando ondas de conservadorismo também em países da Europa onde, em tese, haveria maior tolerância, como é o caso da França. Por isso, é importante também compreender o fenômeno como um todo, nas suas articulações locais, nacionais e globais.

Primeiramente, ainda não existe, no Brasil, uma cultura bem estabelecida de oferta de aulas de artes marciais para o público LGBTI+. Em outra publicação, tratamos um pouco deste tema: O problema dos gêneros e a prática de artes marciais. Há uma forte cultura masculina e mesmo machista em ambientes de artes marciais, ainda que nem sempre se reconheça isso. Também tratamos do assunto no texto Feminicídio e artes marciais. Em outros países, como na Inglaterra, encontram-se academias de artes marciais mais atentas à inclusão de mulheres e do público LGBTI+. Conheça uma destas iniciativas no vídeo abaixo (em inglês):



Aqui no Brasil, este é um seguimento ainda pouco explorado do mercado de artes marciais e que deve crescer e promete bons rendimentos para os que se aventurarem no negócio. Mas ainda não basta. Um trabalho muito mais amplo precisa ser feito de investigação, de estabelecimento de redes e de multiplicação de condutas e orientações práticas. Em boa medida, é o que pretenderemos desenvolver com muita seriedade em nosso projeto a partir do ano que vem.

Uma atitude que me preocupa e deriva de um certo pânico do momento é a busca por informações parciais e materiais supostamente autodidáticos, com uma certa dose de voluntarismo. É preciso ter muito cuidado. Artes marciais são atividades potencialmente perigosas, em múltiplos sentidos, quando não envolvem estudo, prática e treino muito bem orientado. Não é impossível aprender muita coisa sozinho, mas é muito melhor aprender com quem sabe o que está fazendo e tem experiência com as melhores formas de ensinar. Cuidado também com os aproveitadores e charlatões oportunistas que vejam neste momento de medo uma chance de encherem os próprios bolsos.

Além disso, arte marcial para auto-defesa não se limita ao domínio de técnicas. Muito mais do que isso, é uma arte completa de autodomínio, envolvendo perfeita harmonia de corpo, mente e emoções. Na maior parte das situações, o mais protetivo é não entrar em provocações, o que se consegue facilmente quando se tem uma autoestima fortalecida. Muito do trabalho marcial é sobre o fortalecimento da autoestima e isso não se consegue lendo manuais sozinho, enquanto a cabeça se encontra no labirinto do pânico.

Se você for gay, lésbica, transexual, intersexo, queer ou se identificar com qualquer outro espectro desta comunidade e quiser começar a praticar artes marciais para se defender, apresento algumas dicas e sugestões:

1) Não se aprende artes marciais do dia para a noite, muito menos a ponto de se tornar capaz de utilizá-la para autodefesa. Por isso, tenha em vista que um curso de curta duração não adiantará muito. Quando começar, tenha consciência de que precisará de alguns meses ou anos para se tornar hábil a ponto de se defender contra agressores minimamente perigosos em situações de riscos medianos;

2) Não parta do princípio que você é incapaz de se defender. Não pense assim: "eu não tenho força"... Arte marcial não tem nada a ver com força. E, quando ela precisar de alguma força, ela lhe dará meios também para desenvolvê-la. O mais importante, de novo, é ter bons professores e ter determinação para treinar (tanto a parte técnica quanto à física, quando elas já não estiverem integradas no mesmo exercício);

3) Compreenda que as artes marciais são caminhos de vida e que pretendem alterar a sua relação com todo o mundo à sua volta. Bem praticadas, elas afetam as suas emoções, as suas sensações, as suas visões de mundo, a sua vida de modo geral. Assim, não parta de uma visão puramente instrumental da técnica. Ela é apenas a parte mais fácil e menos útil de um conjunto maior e melhor de autoconhecimento e de cuidado de si;

4) Comprometa-se com a sua comunidade. Lembre-se: você tem como motivação defender-se contra agressões de quem não aceita quem e como você é. Portanto, seja solidário ou solidária com outras pessoas que estão na mesma situação que você. Seja um multiplicador de tudo o que aprender. Inclusive, uma vez que se tornar proficiente em técnicas, ensine outras pessoas. Tenha isso no seu horizonte;

5) Comprometa-se com aqueles que estão ajudando: seus colegas de treino (LGBTI+ ou não) e seus professores (LGBTI+ ou nçao). O pior vício de praticantes de artes marciais modernos é acharem que aquilo que desenvolvem é individual. Quando um professor passa uma técnica, ele está transmitindo um conhecimento que, até chegar a você, percorreu um longo caminho no tempo e no espaço. Respeite este legado. Tenha reverência aos mestres e ao local de treinamento. Comprometa-se com a arte;

6) Procure um lugar em que você se sinta à vontade para treinar, sendo quem você é, sem se esconder. Se você passará anos da sua vida naquele lugar, ele tem que ser confortável. Não se esconda. Se sentir que não há clima para você ser quem você é, não será possível durar muito tempo ali. Melhor sair logo e procurar outro lugar, outra arte, outro professor ou professora etc;

7) Forme, se possível, um grupo que tenha interesse de treinar junto. Além de ser muito útil para desenvolvimento técnico, isso pode facilitar na socialização;

8) Nunca se envolva em brigas. Sempre as evite. Aprenda a se defender e lembre-se: quem não briga não se machuca, logo, pratica a melhor das auto-defesas. Não aceitar provocações e tomar medidas preventivas, desde o início, devem ser o seu "mantra". De maneira alguma seja quem começa o conflito;

9) Compreenda que o agressor é fraco! Ele pode estar armado, ter força física e até ter técnica, mas um agressor que violenta as pessoas por serem diferentes é alguém ética e emocionalmente frágil! Fortaleça-se ética e emocionalmente. É neste campo que você conseguirá se proteger melhor;

10) Não deposite confiança em armas. Mesmo que você utilize armas para se defender (de fogo ou não), o que realmente protege é mente ativa e tranquila. Armas nas mãos de alguém com mente agitada e confusa apenas se torna um perigo a mais.

Espero ter sido útil. Qualquer coisa, entre em contato. Ficarei feliz se puder ajudar. Qualquer pergunta ou dúvida, faça. Se eu não souber responder, ajudarei a procurar respostas.

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