sexta-feira, 23 de junho de 2017

Afinal, qual a graça do Nunchaku?


Quando apresentei o nunchaku à minha turma de crianças em Cruzeiro dos Peixotos, a primeira referência deles foi a personagem Michelangelo (acima, fig. 01), da série Tartarugas Ninjas. Nenhum deles nunca ouvira falar de Bruce Lee... Na minha infância/adolescência, outra personagem de desenhos famosa pelo uso do nunchaku foi o Panther, da série Thundercats (abaixo, fig. 02).


Hoje, eu gostaria de abordar um tema bastante específico: o treinamento com armas tradicionais como método de desenvolvimento de determinadas habilidades e de consciência corporal. Em Cruzeiro dos Peixotos, no projeto no centro comunitário Culturarte, com crianças de 6 a 10 anos, utilizamos técnicas de bastão (gun, 棍) como meio de desenvolver rudimentos mais gerais de movimentações e posturas corporais marciais (fig. 03). Porém, não falarei disso. Tratarei de uma outra arma, cheia de incompreensões e mal entendidos, muito famosa (graças ao cinema e à mídia), porém pouco conhecida, seja em sua história ou em relação às suas técnicas: o "nunchaku", como é mais notória, na sua nomenclatura "japonesa".

Fig. 03: aula do projeto de Cruzeiro dos Peixotos.
Trabalho específico  voltado ao ensino da base gongbu e da técnica de kaigun.

Devo começar explicando que meu contato com o "nunchaku" é muito pouco "formal". Ao contrário de outras armas, como o bastão (gun, 棍), o sabre (dao, 刀), a espada reta (jian, 剑) e a lança (qiang, 枪), não há nenhuma técnica nem tampouco rotinas de "nunchaku" no sistema de "kung fu" que eu venho estudando. Muito menos, há qualquer vestígio de "nunchaku" (nem poderia...) no Tai Chi da Família Yang, que também pratico. Na minha adolescência, embora um dos estilos de karatê que cheguei a praticar ser bem ligado às tradições de Okinawa, o Kenyu Ryu, ao menos nas etapas mais básicas e intermediárias de treinamento, só havia mesmo técnicas de punho livre. Em suma: eu nunca realizei sequer um único curso de técnicas desta arma, nem mesmo tive uma única aula mais específica sobre ela.

Nestas alturas, o leitor deve estar se perguntando por que raios escrevo sobre uma arma que "não conheço"... Pois bem, arriscando ser polêmico, escrevo sobre uma arma que ninguém conhece... Uma arma cuja exploração técnica é muito recente, cujos registros na história são raríssimos, cujas "técnicas" são muito mais fruto de explorações intuitivas de artistas marciais contemporâneos do que da transmissão tradicional no interior de escolas mais antigas. É claro que há artistas marciais habilidosíssimos nesta arma e, hoje, principalmente no Kobudo, no Karatê, no Kali, no Jeet Kune Do, no Wushu Moderno, no Hapkido e em muitos outros sistemas, já existe um grande acúmulo de experiências e técnicas consolidadas para o nunchaku. O que eu quero dizer com "ninguém conhece" é outra coisa: que o caráter intuitivo, aberto e plástico desta arma ainda permite muitas "descobertas".

Fig. 04: Sensei Hirokasu Kanawaza em postura preparatória: Jodan Ichimonji Kamae, em base kokutsudachi.
Sensei Kanawaza é um exemplo relativamente recente de estudioso do nunchaku. No seu caso, ele combina conhecimentos sobre a arma advindos do Kobudo e os integra a princípios do Karatê Shotokan.

Fig. 05: Imagem do filme Game of Death (1978), em que Bruce Lee encena um combate com nunchaku contra personagem interpretado pelo artista marcial filipino Dan Inosanto. A postura de Bruce Lee, nesta imagem, é bem similar à da imagem anterior, executada pelo Sensei Kanawaza.

Um dos sinais de que a arma é "nova" no meio das artes marciais chinesas é a quantidade de nomes por meio dos quais ela é referida. Embora uma (ou algumas...) das versões sobre a origem dela apontem a China como sua terra natal (especialmente durante a Dinastia Song), os nomes pelos quais ela é conhecida na China são variados e muito "literais", quase "descritivos". Há um caráter mitológico evidente na atribuição de origem do Nunchaku durante a Era Song. Segundo a lenda, o imperador teria observado agricultores utilizando um instrumento para a colheita de grãos e concluiu que aquele objeto poderia se transformar em uma poderosa arma na luta contra os mongóis. Assim, ele teria levado alguns daqueles instrumentos para estudo e treinou o seu exército para manejá-los. Com isso, teria conseguido vitórias importantes contra os guerreiros do Khan. Ahaaaam...

Há uma interpretação de que o termo "japonês", nunchaku, seria derivado da pronúncia de 兩節棍 em dialeto falado em Fujian (Sudeste da China): "nnd-chat-kun". Em Mandarim, a romanização da palavra seria "liang jie gun", literalmente, "dois bastões conectados". Com base na figura do ideograma liang (兩), cuja ideia de par deriva de duas representações de zhu (竹), bambu, chegou-se a supor que as primeiras versões da arma seriam fabricadas deste material (sendo as cordas de fio de seda ou de crina de cavalo, conforme diferentes versões). Também se costuma supor que a arma seria uma simplificação de outra (esta sim mais tradicional nas artes marciais chinesas), o san jie gun (三節棍). Importa, neste caso, dizer que o "nunchaku", nas artes marciais chinesas, pode ser entendido como um bastão articulado (節棍) de duas partes. Algumas vezes, esta noção de dois aparecerá como liang (兩), outras como shuang (双), outras como er (二), sem muita preocupação em padronizar.


Vídeo 01: No Wushu Moderno, as formas de liang jie gun privilegiam os movimentos mais acrobáticos, combinados a uma leitura mais "artística" ou "espetacular" das técnicas marciais. Neste vídeo, percebe-se uma clara releitura do nunchaku como arma elegante e associada à religião budista. Nem elegância nem relação com a religião budista encontram qualquer verossimilhança na história do surgimento e do desenvolvimento do nunchaku, mas... arte é arte... E, convenhamos: que espetáculo bonito temos neste vídeo!

No "kung fu", há pouco destaque para o nunchaku como arma tradicional, figurando apenas como uma entre um incontável catálogo de artefatos. Isso só muda um pouco a partir da década de 1960, quando foi apresentada, por Bruce Lee (fig. 05), em seus filmes. Adotada com mais destaque, a partir de então, pelos praticantes de Jeet Kune Do, ela passou a ser muito associada com as artes marciais chinesas. No entanto, mesmo no Jeet Kune Do, as técnicas de "nunchaku" são provavelmente mais inspiradas nos estudos de Bruce Lee e Dan Inosanto sobre Arnis (Kali ou escrima), arte originária das Filipinas. Entre os filipinos, o "nunchaku" é conhecido como tabak-toyok. Os movimentos mais performáticos de giros velozes, muito presentes nos filmes de Bruce Lee, são bem característicos de técnicas filipinas de tabak-toyok, como se pode perceber com uma rápida pesquisa no Youtube, procurando por praticantes de artes filipinas executando técnicas e formas com a arma (vídeo 02).

Vídeo 2: é interessante neste vídeo a combinação de técnicas de arnis e de tabak-tayok (nunchaku) no Kali filipino. 

Mas, também no Kali, o tabak-toyok é uma arma de importância menor em comparação com os famosos rattan e outros tipos de yantok (bastão). Ele é muito associado às lutas de rua, por ser considerado relativamente fácil de esconder. Nas artes malaias e filipinas há muitas armas de pequeno porte, disfarçáveis e também improvisadas (como partes do próprio vestuário). Elas abrangem armas de corte, como facas, e também armas flexíveis, como chicotes. Tratam-se de armas muito mais relacionadas ao uso cotidiano de pessoas comuns (e de classes mais baixas) do que de uso militar por pessoas de uma elite aristocrática "feudal", como Samurais japoneses ou generais chineses educados no Confucionismo, por exemplo (ah, sim, e monges budistas, como sugere o vídeo 1... Se ainda fosse o sai...).

É difícil saber ao certo, mas a origem do tabak-toyok é muitas vezes associada ao contato filipino como o Ryukyu kobujutsu ou o que seria mais tarde reinventado como o Kobudô, de Okinawa. Historicamente, isto faz muito sentido. No século XVI, os espanhóis estabeleceram-se em Manila, lugar a partir do qual buscaram expandir comercialmente para outras partes do leste asiático. Entre o final do século XVI e início do XVII, os espanhóis conseguiram estabelecer missões religiosas no Japão e fomentaram o comércio entre as duas regiões. Quando houve a perseguição aos cristãos pelo xogunato Tokugawa, uma grande quantidade de japoneses convertidos ao cristianismo emigrou para as Filipinas. As relações comerciais entre Manila e o Japão persistiram com muita força até o século XVIII, quando o xogunato estabeleceu a política isolacionista conhecida como sakoku. Assim, ao longo de um período de mais de 100 anos, Filipinas e Japão estiveram em intenso contato de troca material, cultural  e de fluxo de pessoas.

Fig. 06: mapa holandês, da década de 1650, localizando as Ilhas Filipinas, antes nomeadas Manila. O nome "Filipinas" associa-se à monarquia hispânica da dinastia dos Habsburgos, cujo ápice foi vivido pelos Reis Filipe II, Filipe III e Filipe IV. Note-se a proximidade das ilhas com Macau e Formosa (hoje Taiwan), que, na época, eram, respectivamente, entrepostos comerciais importantes de portugueses e holandeses. Estas áreas funcionaram como aquecidos centros comerciais da Ásia no período, alimentados pelas demandas de produtos orientais na Europa e pelo ouro e a prata que chegavam das Américas.

Naquela época (século XVI e início do XVII), Okinawa, conhecida como Ryukyu, era um reino independente do Japão. Tratava-se de um entreposto comercial, fortemente conectado à China e a outras áreas do Sudeste Asiático. A Dinastia Sho, então dominante em Ryukyu, a fim de refrear o poder se senhores locais, preservando-se de sedições, proibiu o porte e a posse de armas  pela população, o que, a partir da intervenção japonesa no início do século XVII, foi reforçado. Com isso, foram desenvolvidos modos de lutar na região que primavam pelo combate de mãos vazias e também pelo uso de armas improvisadas, como utensílios e ferramentas utilizados no dia-a-dia. Daí, muitas das armas do Kobujutsu (fig. 07), como o sai e a tonfa, por exemplo, foram inventadas a partir de instrumentos de trabalho. O nunchaku não foge à "regra". O instrumento utilizado, no caso, era o muge, uma espécie de arreio para cavalos. Ainda hoje, há uma variação da arma que carrega o nome de "muge nunchaku" e guarda similaridades formais com o artefato original (figs. 08, 09 e 10).

Fig. 07: Exemplos de armas que foram introduzidas no Kobudo como fruto de experiências com instrumentos do dia-a-dia nas Ilhas Ryukyu (Okinawa).

Fig. 08: muge, muge-nunchaku e nunchaku moderno, colocados lado a lado.
Fig. 09: cavalos arreados ao modo tradicional asiático, com o muge.
Fig. 10: nunchaku no formato "original" de muge.

As primeiras sistematizações de técnicas de nunchaku no interior do Kobudo (vídeo 3), diferentemente de técnicas de outras armas da região, como o bo, a tonfa e o sai, que possuem formas datáveis desde o século XVII, deram-se, no entanto, somente em meados do século XX, nas formas criadas pelos mestres Taira Shinken e seu sucessor Akamine Eisuke, no contexto da Ryukyu Kobudo Hozon Shinko Kai. Também no Kobudo, pode-se dizer que as técnicas de nunchaku são "invenções" ou "reinvenções" relativamente "modernas".


Vídeo 3: Neste vídeo, o Sensei Nakamoto Masahiro executa o kata Maezato No Nunchaku, forma tradicional presente no Kobudo, idealizada pelo Sensei Taira Shinken (Shinken Maezato, 1897-1970). Em comparação com os vídeos 1 e 2, é interessante notar a ênfase em movimentos com pegadas de duas mãos, o que indica uso de aplicações de torção e de controle do oponente.

Fig. 11: Famosa imagem de Sensei Taira Shinken com várias armas de Kobudo ao fundo.
Não se vê, entre elas, nenhum nunchaku.

Arma de improviso, utilizada por setores sociais subalternos; técnicas sem longa tradição de sistematização, abertas ao experimentalismo e à intuição do praticante... É assim que eu vejo o nunchaku e a sua graça. Aí parece residir um potencial muito interessante para o treinamento e a experiência pessoal em arte marcial. O nunchaku, caso não nos limitemos a mimetizar movimentos fetichizados, extraídos de filmes de Bruce Lee, pode nos permitir experimentar possibilidades de migração de princípios de técnicas de punho e também de outras armas para as suas características particulares. Em outros termos, ele favorece a aplicação criativa de princípios cinéticos e energéticos estudados por outros meios. Isso permite explorar novas interpretações, inclusive, para técnicas de punhos e também de outras armas.

quinta-feira, 1 de junho de 2017

Princípios de Caminhos Marciais para a Educação Contemporânea


Como podem os caminhos marciais fornecer princípios gerais para a orientação de um sujeito livre, ético e responsável no planeta? Orientados conforme uma perspectiva antropológica, os caminhos marciais podem ser aliados formidáveis de uma educação humanista na atualidade.

No dia 27/05/2017, tive a oportunidade de apresentar algumas de minhas ideias sobre caminhos marciais e educação integral na Casa Plural de Tupaciguara-MG, uma de nossas instituições parceiras mais queridas de projetos. Na ocasião, defini o paradigma das propostas que faço de articular metas da educação escolar com estudo e prática de caminhos marciais: promover a abertura antropológica do homem livre e ético para o mundo.

Talvez se trate de um paradigma urgente no contexto contemporâneo. A virada do milênio, em certa medida, frustrou os sonhos e utopias de dissolução de fronteiras entre os povos. O avanço dramático dos conflitos geopolíticos em diversas partes do globo; o fenômeno do terrorismo; a circulação maciça de imigrantes e refugiados no centro do mundo capitalista; o crescimento dos discursos de ódio, intolerância e preconceito; a profusão de posturas etnocêntricas e fundamentalistas nos âmbitos das culturas e de diversas religiões, enfim, toda a sorte de separatismos, segregacionismos e exclusivismos da verdade vêm marcando as nossas experiências no presente. Vivemos um momento crítico de impaciência com o "outro", de empobrecimento antropológico, de afirmação de identidades e de tratamento da alteridade como ameaça.

Como os caminhos marciais podem servir para ajudar a reverter ou a amenizar esta tendência contemporânea para os monólogos e ventriloquismos culturais? Como eles podem colaborar com objetivos semelhantes àqueles das humanidades na educação escolar básica no Brasil, conforme expressos na segunda versão da minuta da BNCC: "cultivar a formação de estudantes capacitados a articular categorias de pensamento histórico, geográfico, filosófico e sociológico, intelectualmente autônomos em face de seu próprio tempo, e capacitados a perceber e refletir sobre as experiências humanas, em tempos, espaços e culturas distintos e sob diversas lógicas de pensamento"?

O contato com caminhos marciais, conforme seja trabalhado, traz consigo o aprendizado de categorias formuladas em outros tempos, espaços e culturas, conforme lógicas de pensamento distintas da nossa. Isso não impede, contudo, que as experienciemos de modo próprio, atribuindo novos significados e novas aplicações a elas. Isto, por si só, é um tremendo exercício gerador de abertura para o horizonte do outro e de consequente enriquecimento antropológico. Tal enriquecimento representa um ganho na medida que fomenta o florescimento cultural, o aprendizado mútuo em perspectiva cosmopolita.

Gostaria, agora, de comentar a respeito de algumas dessas categorias, enfatizando as suas potencialidades de entendimento e aplicação em face a desafios do mundo atual. Tais categorias derivam de exemplos de princípios focalizados em determinadas tradições marciais e que são verbalizados/textualizados em escritos de alguns de seus mais prestigiados mestres.


Roda de Conversa - Tupaciguara-MG, 2016.

(1) Harmonização dos opostos (polaridades) com vistas à resolução dos conflitos e promoção da paz.

Como aparece, por exemplo, nos escritos de Morihei Ueshiba, compilados e editados pelos seus discípulos, a meta do Aikido (合気), em um combate, não é destruir fisicamente o oponente. Antes, é vencê-lo espiritualmente, de tal modo a convencer o agressor a largar de bom grado a sua conduta ofensiva. Seu método não é o confronto de forças, visando o aniquilamento de uma delas. O método é a harmonização entre as forças: assumir uma postura capaz de compreender o movimento do outro e entrar nele, misturar-se com ele e, a partir daí, conduzi-lo. Harmonização da "força" ou da "energia", o chamado "ki" (気), é o que se nomeia aiki (合気).

Há categorias semelhantes no "pensamento chinês clássico", que foram assimiladas em textos fundadores de diversas tradições marciais. É o caso da conhecida noção taoista de wuwei (无为): o "não-agir". Este conceito não é sinônimo de passividade nem de apatia diante da vida. A "não-ação" é um modo de agir específico: um modo de agir em harmonia absoluta com o movimento natural do Tao (). "Não-agir" é não provocar perturbações no curso do universo, não fazer nascer agitações, não criar artifícios. É não entrar em choque contra o inevitável. É agir de tal modo que quem aja não seja si-mesmo, mas o próprio Tao. De tal modo que não haja separação entre o si-mesmo e o Tao.

Como último exemplo, trago ainda a própria palavra wushu (武术). Certas interpretações muito difundidas nos ambientes marciais partem de uma análise do ideograma wu (). Conforme esta leitura, o ideograma seria formado da fusão entre zhi (止) e ge (戈). Conforme o dicionário de Kangxi, composto no século XVIII, durante a dinastia Qing, zhi pode significar "parar". Ge, por sua vez, definiria um tipo de arma chinesa antiga, semelhante ao que chamamos, em português, de alabarda. Nesse sentido, a fusão de zhi  e ge em wu indicaria uma ideia de "parar as armas", "parar as ofensas" ou "parar a guerra". Traduzido como "militar" ou "marcial", wu teria, portanto, uma conotação ligada ao fim do conflito e não ao conflito em si. Wushu, dessa maneira, seria uma arte de encerrar os conflitos. Esta concepção de marcialidade não é estranha à tradição literária chinesa de clássicos sobre a guerra. É famosa, inclusive entre praticantes de artes marciais, a máxima de Sun Zi, de que a vitória militar mais sublime é aquela que se conquista sem nem mesmo haver a necessidade de lutar.

Conflitos, agitações e perturbações acontecem cotidianamente na vida humana. Lidar com eles, seja no plano macro da geopolítica seja no dia-a-dia de nossas relações pessoais, familiares ou profissionais, constitui um desafio permanente. Compreender as forças que atuam em determinado momento de agitação e constituir estratégias de neutralização de tais forças é uma forma de inteligência exercitada e desenvolvida pela prática de uma disciplina marcial como caminho. Ela nos prepara, assim, para saber (não-)agir diante das situações de desequilíbrio, buscando os meios adequados para a restauração de uma ordem justa, em que os polos encontrem-se devidamente harmonizados.

(2) Uso eficiente da energia.

Imiscuir-se no movimento do outro, a partir da compreensão de suas dinâmicas e intenções, como dissemos acima, é um modo de superar conflitos e harmonizar as oposições. Se isso encontra-se na base do Aikido, também é válido no Taijiquan. Para isso servem, inclusive, alguns exercícios muito enfatizados pelos seus praticantes: o tuishou (推手). Várias outras artes marciais possuem exercícios semelhantes, tendo como um dos seus objetivos desenvolver uma "escuta" das intenções de movimento do oponente através do tato. A importância deste "sentir" está no fato de que é a partir do movimento do outro que, em um combate real, decide-se pela técnica ou movimento a se aplicar como resposta. Isso porque a eficiência da aplicação será sempre relativa àquilo contra o que nos defendemos, sempre buscando neutralizar a ofensa com o menor dano possível ao nosso corpo e com o menor gasto possível de energia.

Este princípio "econômico" presente em muitas escolas e estilos de artes marciais é o fundamento primeiro do Judo Kodokan, tal como idealizado por Jigoro Kano. Ele é nomeado, abreviadamente, como seiryoku zenyo (精力善用), "bom uso energético". A mesma expressão (com os mesmos ideogramas) fazem sentido semelhante em Mandarim, língua na qual seria pronunciada mais ou menos como jingli shan yong, ou seja, "bom uso" ou "uso proficiente" (shan yong) da "essência da força" ou da "energia" (jingli). No Taijiquan, um dos princípios que auxiliam nesta meta de economia de energia é aquele presente como o sexto princípio no cânon do Mestre Yang Chengfu: 用意不用力, yong yi bu yong li, literalmente: "usar a intenção (mente, inteligência, vontade), não empregar força".

Colocar sensibilidade e inteligência em todas as ações para ter bons resultados sem esforço excessivo, tomando cuidado para não causar danos à saúde e desequilíbrios é o que se chama de "uso eficiente da energia". Trata-se de um conceito aplicável a vários domínios da vida, inclusive coletivos, tais como os da ecologia e da administração, por exemplo. É, antes de uma fórmula de "sucesso", uma proposta ética: um chamado ao cuidado se si, do outro e do planeta. Sua finalidade é preservar a vitalidade, evitando excessos e desperdícios. Este conceito complementa o anterior. Na medida em que propõe que a resolução dos conflitos permite reserva de energia para atividades cooperativas, enquanto a própria forma de resolvê-los deve enfatizar o uso de sabedoria, não de força.

(3) Agir cooperativamente em prol da coletividade.

Em Jigoro Kano seiryoku zenyo não é um princípio que vem sozinho. Sua primeira meta é o cultivo do homem de corpo e mente saudável. Porém, ele só cumpre plenamente o seu objetivo quando desdobra-se em jita kyoei (自他共栄), literalmente, "prosperidade de si e do outro", também traduzido no "ocidente" como "benefícios mútuos". Em Mandarim, os mesmos ideogramas combinados seriam pronunciados como zita gong rong. Isto é: "glória comum" (gong rong) de "si" (zi) e dos "outros" (ta).

Com clara inspiração no Budô japonês e, portanto, nestas ideias mais centrais de Jigoro Kano, desenvolveram-se, desde o final da Era Qing e início da época republicana na China, ideologias que reforçavam o papel da "educação física" para formar o cidadão e fortalecer o país. Em parte, houve assimilações de teorias e concepções da educação física ocidental, nomeada pelos chineses de tiyu (体育). Porém, junto a ela desenvolveu-se o conceito de guoshu (国术), "artes nacionais". Atualmente, o termo praticamente está restrito às artes marciais chinesas, mas, nas primeiras décadas do século XX, seu sentido abrangia um conjunto mais amplo de atividades físicas entendidas como tipicamente nacionais, livres de influências estrangeiras.

O compromisso do artista marcial, praticante do budo ou de guoshu, tal como concebido por idealizadores destes movimentos no Japão ou na China era também um compromisso social e político com a nação. É impossível, naquele contexto histórico, não associar tal compromisso a uma questão militar. Nos referimos ao Império do Japão, entre as eras Meiji, Taisho e Showa, envolvido em conflitos com a Rússia, com a própria China, com os EUA e aliado de Hitler na II Guerra Mundial. Nos referimos à China afundada em confrontos com a França, a Inglaterra, o próprio Japão e submersa em guerras civis, no seu tumultuado processo de fim do Império e constituição da República. Porém, a questão mais geral aqui colocada não é a do compromisso de ordem militar, mas com a coletividade. É a ideia de que nada adianta o indivíduo em si se ele não se colocar também a serviço do outro, participando da (re)construção de algo maior do que ele.

Sentido público, coletivo, cidadão: sem construir este tipo de sentimento no praticante, não se consegue chegar à meta do jita kyoei. Respeito pelo bem público, preocupação com o bem-estar social, agir em prol da garantia dos direitos básicos dos concidadãos e, por que não, de toda a humanidade e demais seres viventes: é isso que, no final das contas, busca-se atingir, como meta de formação humana, a partir dos caminhos marciais.

(4) As possibilidades infinitas de novas formas a partir da essência das tradições.

O último dos conceitos que gostaria de apresentar expressa-se, em Mandarim, pela palavra tiyong (體用), literalmente "essência-função". Este é um conceito metafísico, primeiramente introduzido nos clássicos da filosofia chinesa por Wang Bi, em seus comentários ao Daodejing, especialmente sobre o zhang 22. Por esta ideia, entende-se que os usos, aplicações ou funções (yong) são manifestações provisórias de uma essência permanente (ti). No século XIX e início do século XX, intelectuais chineses utilizaram-se deste conceito para justificar a introdução saberes e tecnologias ocidentais na China, argumentando que eles seriam apropriados quando compatíveis com a essência da tradição do país. Eles não alterariam a essência da cultura chinesa. Antes, seriam possíveis funções compatíveis com os seus fundamentos.

No Taijiquan o binômio "essência-função" ganha um destaque especial na obra Taijiquan Tiyong Quanshu, de Yang Chengfu. Ou seja, "Essência-função do Punho da Extrema Polaridade". Neste contexto tiyong expressa uma ideia de que o aprendizado de uma forma (ensinada no livro) envolve estudo de princípios e das suas múltiplas possibilidades de aplicação.

Isso se faz presente em quase todas as artes marciais. Um movimento, tal como um "soco", um "chute" ou uma "puxada", antes de ser um "soco", um "chute" ou uma "puxada", é um movimento. Se compreendemos os princípios da dinâmica deste movimento, um "soco" pode se tornar, por exemplo, "uma puxada". Além disso, é possível, a partir de um único princípio, derivar, dele, muitas variações de técnicas, apenas por meio de interpretações sutis ou deslocamentos das circunstâncias.

A ideia de "essência-função" é muito diferente, portanto, de um apego fanático a modelos pré-fabricados, entendidos como tradição imutável. Tiyong permite uma reverência ao legado cultural do passado como terreno fértil para inovações históricas. Assim, é possível enfatizar o valor da preservação da memória e do patrimônio cultural herdado e, ao mesmo tempo, manter uma abertura constante para o novo.

Considerações finais

Concluindo, os caminhos marciais podem ser preciosos aliados na formação de sujeitos preparados para desafios típicos do mundo atual. Tais sujeitos podem ser pensados, paradigmaticamente, como abertos à alteridade cultural e às novidades do seu tempo histórico. Ao mesmo tempo; sujeitos socialmente referenciados, conscientes da herança das passadas gerações e participantes ativos na construção da fraternidade humana. Sujeitos que cuidam de si, dos outros e do planeta, evitando o desperdício de recursos e os desequilíbrios próprios de sociedades consumistas, adoecidas pelo estresse e reguladas pelos ritmos da produtividade capitalista. Sujeitos que cultuam e promovem a paz, buscando sempre os meios mais eficazes e suaves para a superação das crises e dos conflitos. Sujeitos solidários, generosos e altruístas; cidadãos voltados ao bem comum à prática da justiça. Para isso, não basta simplesmente começar a treinar lutas, é preciso mais. Porém, este já é um tema para outras postagens.