quinta-feira, 21 de dezembro de 2017

Ética e Espiritualidade nas Artes Marciais. Frescura?

Motivado por situações recentes que agitaram o pequeno universo das artes marcais chinesas no Brasil, comecei a pensar sobre o tema da ética marcial. Para isso, resolvi revisitar um texto muito importante da minha juventude, a autobiografia do Sensei Gichin Funakoshi, que li pela primeira vez em meados da década de 90, quando praticava Karatê Shotokan em Campinas, com meu então professor, o sensei Durval Dornellas Junior (diga-se: um dos melhores professores que já tive e de um caráter gigante). Larguei o Karatê há muito tempo e hoje me dedico às artes marciais chinesas. Porém, o carinho pelo Karatê e o que aprendi nele eu guardo sempre, se não nas suas técnicas, no meu coração e na minha alma.

Gostaria de destacar um trechinho bem no final do livro, quando o autor reflete sobre a sexta de um conjunto de seis pontos a serem observados pelo praticante de Karatê-do:

"Eu gostaria de pensar que estou errado, mas temo não estar, por conta do que eu tanto venho escutando ultimamente de jovens praticantes de Karatê, que usam expressões tais como: jitsuryoku-gata ('um homem de verdadeira habilidade'), ou sento-gata ('um homem de batalha'), ou jissen-gata ('um homem de combate real'). Esses termos são absurdamente infantis e carregam uma profunda ignorância do sentido do Karatê-do.
Uma vez que o Karatê-do objetiva a perfeição da mente assim como do corpo, expressões que exibem apenas proeza física nunca deveriam ser utilizadas em conexão com ele. Como um sábio budista, Nichiren, afirmou com tanta aptidão, qualquer um que estude us Sutras deve lê-los não somente com os olhos que estão em sua cabeça, mas também com aqueles da sua alma. Essa é a principal admoestação para um praticante de Karatê-do manter em mente." (GICHIN, FUNAKOSHI, Karate-do. My way of life, Nova Iorque: Kodansha, 2012. p. 110. Tradução minha do inglês para o português.)

O trecho acima está relacionado à importância que Funakoshi credita à prática da ética em público e no privado, no Dojo ou no cotidiano, por parte de praticantes de Karate-do. Por isso, ele se irrita com termos que associam a excelência do praticante apenas ao domínio da técnica e da luta, sem referência com o mais importante de tudo: uma leitura espiritual das técnicas, na medida em que são aprendidas e dominadas pelo físico. Tornar-se um bom lutador ou alguém capaz de vencer batalhas é apenas um subproduto do Karatê-do de Funakoshi. Acima de tudo, o Karate-do, como se diz no título do livro, deve ser um "meio de vida", um "caminho", "uma forma de ser e estar no mundo".

Certo, alguém poderia dizer: "mas isso aí é no Karatê, não vale para todas as artes marciais". É verdade, não vale para todas as artes marciais. Aliás, não vale nem mesmo para o Karatê, de modo universal. Na época de Funakoshi mesmo havia outros caratecas em Okinawa que eram muito mais habilidosos do que ele e para os quais o elemento ético não vinha em primeiro plano. Pode-se dizer, inclusive, que a forma mais comum de prática de artes marciais (karatê ou qualquer outra) é aquela que prima pelas proezas físicas, busca forjar um guerreiro ou lutador eficiente, lapidar o soldado, no sentido mais beligerante do termo. É o que muitas vezes se expressa em nosso meio como "arte marcial sem frescura", "formar homem de verdade", "preparar para a luta real", "praticar sem romantismo"; é aquilo que se proclama como puro "chute no saco e dedo no olho"...

Para quem quer aprender este tipo de arte marcial, o mercado está cheio de opções, algumas mais caras, outras mais baratas; algumas vira-latas, outras com pedigree; algumas voltadas para a rua, outras para o ringue... Bater, bater, bater... Esta é a obsessão dos que procuram este tipo de prática marcial. Bate-se para ensinar, bate-se para aprender, bate-se para não apanhar, apanha-se para aprender a bater e não apanhar... Tudo se resolve naquela que é a grande meta final das artes marciais (segundo eles): a luta. E haja testosterona!

É fácil criar fantasias espirituais para o bater e o apanhar, para o "chute no saco e dedo no olho", para o "formar homens de verdade"... Sensei, Sifu, Shifu, Mestre, Lao Shi ou sei lá mais que título ou forma de tratamento: tudo isso pode dar uma roupagem de tradição ou filosofia oriental para a mais rasa e tosca "pedagogia da porrada". Isso não tem nada de chinês, de japonês, de zen, de confucionista... A pedagogia da porrada é militarista, patriarcal, vitoriana, é uma instituição para lá de conhecida e praticada na história do "ocidente". É a velha "disciplina" usada em si mesmo pelo penitente. É a mesma "pedagogia" que utilizavam os senhores para "educar" os seus escravos insubmissos no Brasil escravista! O "pai" que bate e tem autoridade para bater é o pater familia, dos Romanos, que tem ascendência não só sobre os seus filhos, como sobre a sua mulher e os seus servos.

A "arte marcial sem frescuras" travestida de "tradições orientais", no Brasil, não é outra coisa além de um subproduto cultural do autoritarismo latino-americano. É o aspecto (anti)ético do finjitsu! Ela está longe de ter algum papel transformador da sociedade, no sentido de torná-la espiritualmente melhor e eticamente ordenada. Ela é pura expressão do desejo de uniformização de tudo conforme o ego inflado de alguém que se julga mestre, professor, guia, guru... Ego que, uma vez contrariado, parte para a porrada, colocando em prática aquilo para que serve a sua "arte".

Alguns podem até se fantasiar com símbolos religiosos e utilizar um discurso exotérico; podem até realizar proezas mágicas e ilusionismos, mas não é nessas coisas que se encontra o espiritual nas artes marciais. O espiritual, nas artes marciais, voltando ao Karatê-do de Funakoshi, encontra-se no praticante colocar o coração e a alma na prática e no aprendizado, tornando-se, com o passar dos anos e treinamento sério, uma pessoa plena, em corpo, em mente, em espírito, pronta para o agir no mundo tendo como referência a perfeição.

quarta-feira, 1 de novembro de 2017

Treinamento de artes marciais. Diálogo em torno de elementos ginásticos.

Esta publicação tem uma natureza pouco convencional. O que fazemos aqui é a reprodução (organizada) de uma conversa que eu (Guilherme Amaral Luz) e Jerônimo Marana fizemos em redes sociais (por Messenger e Facebook). Decidimos que era uma conversa que deveria ser registrada, pois pode ser útil para mais gente (e para nós mesmos no futuro).

Tudo começou depois que li uma publicação do blog do Jerônimo e fiz uma pergunta para ele em um grupo do Facebook, o grupo Kung Fu Brasil. Originalmente, a publicação dizia respeito às dimensões técnicas e físicas do treinamento de artes marciais, questionando o que deveria, numa sessão de treino, ser trabalhado primeiro.

Pois bem, vamos à conversa:

Guilherme Amaral Luz:
Para variar, uma publicação muito boa e muito útil, Jerônimo Marana. Como uma colaboração, gostaria de acrescentar um ponto correlato e aproveitar para conhecer o seu ponto de vista a respeito. Lendo a ótima dissertação do Marcio Antonio Tralci Filho, deparei-me com um trecho do Mestre Imamura que questiona o caráter supostamente "tradicional" da repetição de técnicas ritmadas em conjunto, o que ele mostra ser uma adaptação japonesa do modelo sueco de educação física na Era Meiji, depois "exportado" para a China. Esta repetição padronizada e mecânica, segundo o Mestre Imamura, seria o oposto do que ele entende como mais próprio da prática tradicional, que seria mais pessoal e individual, menos "uniformizada". É engraçado e até irônico que o Wushu tenha incorporado isso quase como marca registrada e muita gente associe este padrão a antigas formas de treinamento militar (o que faz até algum sentido). Nas academias, repetimos muito este tipo de treinamento, cujo ritmo, muitas vezes, não permite prestarmos atenção nas técnicas e cujo desgaste físico me parece comprometer a própria qualidade na execução delas. O que você acha deste tipo de treinamento? Até que ponto ele pode ser útil, até que ponto danoso? Há vantagem em treinar assim em algum momento? Com que frequência?

Eis o trecho da entrevista do mestre Leo Imamura, conforme transcrita na dissertação de Tralci Filho: "Muita gente pergunta pra mim, né: "porque o kung fu, cada um faz diferente?", eu não entendo essa pergunta, então por isso que eu respondo com outra pergunta: "mas por que que você achou que teria que ser igual?" (...) Então, entender tradição é um dos grandes problemas nossos hoje, porque tudo em nome da tradição o cara fala: "Oh, é tradicional, todo mundo soca igual, faz não sei o que, fica lá..." [simula uma repetição de socos], karatê  tradicional, todo mundo andando pra frente e pra trás, já fez Karatê, já viu aula de Karatê?
(...)
É, vem da Suécia, por que? Porque no Período Meiji (...) o Japão se abriu para o conhecimento europeu e o karatê foi desenvolvido dentro das Universidades, principalmente na escola de Educação Física, então ele se baseou naquele processo de aula unida, fazer tudo igual, que é totalmente estranho à tradição oriental isso. Sabe essa questão de fazer igualzinho, aquela coisa toda? Mas foi incorporado, isso foi incorporado no começo do século passado e o pessoal considera tradicional, parece que vem de várias gerações. Nada disso: antigamente, nem uniforme tinha. Antigamente, cada um fazia a sua parte, sabe? Hoje, você vê lá todo mundo, você pega lá, pega o movimento e faz: "Ta, ta, ta", né? Pessoal chama de Kati, né? Essa palavra nem existe, mas tudo bem, vamos chamar de Kati, faz lá: Ta, ta, ta, ta, ta", tudo igual, já reparou? "Um, dois, três!". Cada um tem o seu tempo para fazer o movimento, não pode fazer todo mundo igual. "Ah, mas isso é tradicional". Não que eu saiba... então isso é muito importante, de onde que vem cada um desses elementos que nós estamos considerando tradicional?" (TRALCI FILHO, Marcio Antonio. Artes marciais chinesas: histórias de vida de mestres brasileiros e as tensões entre a tradição e o modelo esportivo. Dissertação de Mestrado (Educação Física). São Paulo: Universidade de São Paulo, 2014. pp. 224-225.)

Calistenia, ginástica sueca. Fonte: Jesson, Tom. Upright and uptight: the invention of posture.

Jerônimo Marana:
Guilherme, pra responder a sua pergunta vou fazer um levantamento histórico e tentar escrever de um jeito fácil pra tentar ao mesmo tempo satisfazer a sua curiosidade natural de historiador e o público em geral pra que todo mundo possa acompanhar essa discussão. Vou dividir a resposta em vários comentários para deixar a leitura mais fácil para todo mundo.
Então pra entender a questão a gente precisa entender o processo de sistematização da educação física. Esse processo aconteceu na Europa, começou nas últimas décadas do século 18 e foi mais forte no 19. Então é preciso observar o momento pelo qual a Europa estava passando pra entender o contexto em que se deu essa sistematização.
Na segunda metade do século 18 estavam acontecendo as revoluções liberais, impulsionadas pela Revolução Francesa de um lado. De outro lado tínhamos a Revolução Industrial a partir de 1760. Vou voltar a falar da Inglaterra mais tarde, por enquanto vou me concentrar na Europa continental.
O século 18 foi o século do desenvolvimento da educação pública estatal. Já o 19 foi o século da formação dos Estados Nacionais e movimentos nacionalistas. Nessa época estavam ocorrendo as guerras contra a expansão do império de Napoleão. A educação física foi responsável por firmar o sentimento nacionalista na população na escola. Isso aconteceu por meio dos movimentos ginásticos, que iniciaram na Alemanha. Vou falar aqui dos movimentos ginásticos alemão, dinamarquês, sueco e francês.

Assista, aqui, ao vídeo de Jerônimo Marana sobre o conteúdo desta publicação.

O movimento ginástico alemão iniciou com um cara de sobrenome Basedow, que fundou uma escola em 1774, chamada Philantropum. Ele era influenciado pelas ideias educacionais de Rousseau, que dava muita importância pra saúde e educação física. A ginástica praticada era naturalista, envolvia vários tipos de exercícios praticados na natureza.
Aí veio um cara chamado GutsMuths, que fundou um instituto educacional semelhante. É importante guardar o nome dele pra entender o processo. Ele elaborou um sistema que ficou conhecido como ginástica natural. Ele teve influência sobre o sentimento nacionalista alemão a partir de 1806 após a invasão da França. Ele acreditava que a ginástica tinha um alto valor patriótico e pediu que o Estado assumisse a organização e divulgação da ginástica.
O auge da relação entre educação física e nacionalismo na Alemanha vieram com um cara de sobrenome Jahn. Para ele a salvação da nacionalidade da Alemanha estava na educação. Ele criou um movimento chamado Turnen, em que a educação física tinha papel importante.  O objetivo imediato dele era o fortalecimento físico e moral da juventude para libertar a Alemanha. Na guerra de libertação em 1813 ele e vários turneres se juntaram ao exército. Aí com a expulsão dos franceses o movimento ganhou força.
Em 1868 foi formada uma federação de todas as sociedades ginásticas alemãs. Durante a guerra franco-prussiana em 1870-71, que levou à unificação da Alemanha, 15 mil membros da federação se apresentaram para o serviço militar. Mas o sistema ginástico implantado nas escolas alemãs foi o de um cara chamado Spiess. Ele dava ênfase na disciplina e buscava o desenvolvimento eficiente e completo de todas as partes do corpo. Esses objetivos eram alcançados por meio da SUBMISSÃO, treino da memória e RESPOSTAS rápidas e precisas ao COMANDO.
É importante dizer aqui que o Movimento Jovem Hitleriano era um sistema extracurricular de educação física.
O movimento ginástico dinamarquês começou depois da perda de território para o império napoleônico e de uma crise econômica que durou de 1814 a 1820. A partir daí emergiu um sentimento nacional. Nesse período, um cara chamado Nachtegall liderou o movimento de consolidação da educação física dinamarquesa. Ele foi influenciado pelo GutsMuths, o sistema ginástico dele fez muito sucesso e atingiu o meio militar.
Em 1804 foi fundado Instituto Militar de Ginástica, tendo Nachtegall como diretor. O instituto acabou se tornando uma escola preparatória de professores de ginástica para a escola e passou a admitir civis também. Então a educação física entrava na escola sob influência militar. A Dinamarca foi o primeiro país a introduzir a educação física como matéria escolar. A ginástica se tornou obrigatória em todas as escolas elementares da Dinamarca. Como em muitos países europeus, um dos objetivos da educação física dinamarquesa era o desenvolvimento do patriotismo e da competência militar.
Agora a gente chega na ginástica sueca, que é o ponto da sua questão. A conquista da Finlândia pela Rússia no século 19, fazendo o império Sueco perder território, desencadeou um sentimento nacionalista na Suécia. Nessa época, um cara chamado Per Henrik Ling estava começando seu próprio movimento ginástico. Ele usou a ginástica e literatura para instigar coragem força e coragem no povo.
Como era influenciado por Nachtegall, ele propôs ao governo a fundação de uma escola nacional semelhante ao Instituto Militar de Ginástica da Dinamarca. Então em 1813 foi fundado o Real Instituto Central de Ginástica e Ling foi seu diretor por 25 anos. Em 1838 ele escreveu um manual militar de ginástica e esgrima. Esse manual foi adotado oficialmente não só pelo exército sueco, mas também de outros países.
Ling dividiu a educação física em quatro frentes: médica, militar, pedagógica e estética. Porém, ele mesmo se dedicava mais à médica e à militar. A militar tinha o propósito de elevar a condição física dos soldados. Para isso, ele enfatizava o vigor na ação e a capacidade de suportar esforços. O sistema criado por Ling se difundiu para vários países dentro e fora da Europa. Então aqui se justifica a influência sobre o Japão e posteriormente a China. Os sistemas ginásticos desses países se espalharam por todo o mundo, principalmente os de Jahn, Nachtegall e Ling.
Na França a ginástica só foi introduzida a partir da derrota de Napoleão, entre 1815 e 1848, começando no exército. Em 1852 foi fundada a Escola Militar Normal de Ginástica de Joinville-le-Pont. Ela foi responsável por suprir de professores não só o exército, mas também as escolas. A título de curiosidade, essa escola exerceu influência importante no Brasil.
A derrota na guerra franco-prussiana foi atribuída à degeneração física e moral. Então a ginástica se tornou obrigatória no currículo escolar. Graduados na Escola de Joiville-le-Pont e militares eram enviados como professores. Eles receberam instrução expressa para aumentar as potencialidades militares dos jovens.
Então muito da postura pedagógica autoritária em diversas práticas de educação física que existem até hoje tem influência nos movimentos ginásticos do século 19. Como característica elas tem o ensino frontal (todo mundo de frente para o professor) e o exercício coletivo dirigido pela voz de comando e pelo apito. A racionalização e a mecanização dos séculos 19 e 20 contribuíram para transformar a ginástica escolar em movimento uniforme e automatizado de massa. Isso já responde parte da sua pergunta. Mas vamos em frente, que agora vou voltar à Inglaterra.
Por causa da posição geográfica e do poder da marinha Inglesa, a Inglaterra não passava pelos mesmos conflitos que a Europa continental. E ali estava nascendo o capitalismo. Então enquanto aconteciam os movimentos ginásticos na Europa continental, na Inglaterra acontecia o movimento esportivo.
A Inglaterra demorou mais para estabelecer seu sistema público educacional. O esporte, que antes era prática da aristocracia, passou a permear outras camadas sociais até chegar na escola. O modelo de educação física de toda a Europa era ginástico, com exceção da Inglaterra, que era esportivo. O esporte, suas regras e organização correspondia às demandas da economia capitalista e da organização social que emergiam por conta da Revolução Industrial. Então enquanto a ginástica desenvolvia a obediência e submissão, o esporte ensinava a socialização, autodisciplina, iniciativa e liderança. Essas eram qualidades necessárias para a administração do império britânico e de suas atividades econômicas.
Somente em 1870 que o governo apoiou um sistema de educação física mantido pelo governo. Na ocasião do Ato de Educação de 1870, os sargentos passaram a ensinar educação física nas escolas. Só que o modelo adotado foi o modelo ginástico Sueco de Ling, que foi introduzido na Inglaterra entre 1840 e 1850.
Em 1904 o sistema sueco foi adotado oficialmente nas escolas, gerando uma dualidade na educação física nas escolas inglesas. Nas escolas públicas eram ensinados os esportes, objetivando formar bons chefes de empreendimento e bons oficiais. Nas escolas primárias se trabalhava a ginástica, com o objetivo de formar bons operários e soldados.
Acho que este último parágrafo responde a sua pergunta sobre até que ponto este tipo de treinamento pode ser útil ou danoso, se tem vantagem em se treinar assim em algum momento e com qual frequência. Como o Léo Imamura citou, a padronização suprime a individualidade. Cada aluno tem o seu ritmo, que precisa ser desrespeitado em prol da coletividade. E geralmente são os alunos de ritmo mais lento e menor capacidade física que precisam ignorar a sua individualidade para acompanhar os alunos fisicamente mais aptos.
Então agora eu devolvo para você as mesmas perguntas que você fez para mim. O que você acha deste tipo de treinamento? Até que ponto ele pode ser útil, até que ponto danoso? Há vantagem em treinar assim em algum momento? Com que frequência?

Guilherme Amaral Luz:
Complicado responder de forma muito simples. Mas o fato que talvez já responda é como eu lido com isso na prática, como aluno e como professor. Como aluno, eu faço; como professor, não uso esta metodologia. Como aluno, aproveito para uma coisa que, de algum modo, é bastante útil: gastar calorias. Como professor, não tenho gasto calórico como objetivo, por isso, não utilizo. Sei que, mesmo para gastar calorias há métodos mais eficazes e menos alienantes, mas, como professor/instrutor, nem me preocupo com isso, pois o que eu ensino (ou procuro ensinar) é o oposto deste trabalho alienante: autoconhecimento, reflexão e conexão integral entre o físico, o mental (inclusive o cognitivo), o psíquico (inclusive o emocional), o ético, o espiritual e o cultural. Meu instrumento mediador dessas conexões é o corpo, porém mais na sua dimensão técnica ou artística do que atlética (muito menos na sua variação ginástica ou militar).
Nesse sentido, compreender a técnica e colocar esforço no seu entendimento "correto" é mais importante para mim do que desenvolver resistência ao esforço, por exemplo. Também neste sentido, compreender o próprio ritmo, os próprios limites e potencias é central, o que contradiz à ideia de trabalho uniforme. Em suma, sendo bem claro, eu não gosto nem um pouco do método e me submeto a ele apenas por uma questão de hierarquia na academia. Aproveito para conseguir os benefícios possíveis, mas, quando tenho as rédeas do processo, faço de outro modo. Acho um método, em geral, danoso, tanto do ponto de vista ético, quanto técnico e, talvez, à saúde.
Uma última coisa que eu gostaria de comentar é sobre a sua presença nas artes marciais chinesas. Ele foi sendo construído miticamente como algo milenar, sendo vendido como expressão daquela ideia de kung fu como "esforço". Os treinamentos "desumanos" que aparecem em filmes desde a década de 1970 ou os supostos treinamentos extenuantes de "monges" Shaolin são alguns investimentos neste mito. Isso é muito ruim por divulgar estereótipos ligados ao kung fu, aproximando-o de algo extraordinário ou que poucas pessoas aguentam praticar. Isso pega muito quando eu encontro pessoas da minha geração ou mais velhas que praticaram kung fu na juventude e não cogitam voltar. Muitas dizem que não têm mais físico para isso ou alguma lesão que as impediriam de realizar "aquele" ritmo de treinamento. Como se fazer kung fu significasse necessariamente a prática de uma ginástica deste tipo, não houvesse outros meios, nem possibilidades de adaptação.

Jerônimo Marana:
Exatamente. Vale ressaltar que no início do século passado as artes marciais incorporaram exercícios da educação física, a corrida é um exemplo. Isso aconteceu, por exemplo, na Jingwu e na Academia Central de Guoshu. Aqui dá pra estabelecer alguma relação com o Zhong Wudao, não é?

Treinamento típico da Associação Jingwu de Xangai no início do século XX. Fonte: JUDKINS, Ben. Reevaluating Jingwu: would Bruce Lee have existed without it?

Guilherme Amaral Luz:
Acho que dá sim, pensando no Zhong Wudao como herdeiro tanto da Jingwu quanto da Academia Central de Guoshu. Sem falar no passado militar do Mestre Lin Zhong Yuan, que foi combatente na guerra civil, lutando no lado do Guomingtang. Mas o Fabrício poderia falar mais disso. De todo modo, pelo que ele andou pesquisando, o projeto do Zhong Wudao desdobrou-se, posteriormente, na proposta do Shang Wumen, que, em comparação com a ideia do Zhong Wudao, tem um caráter mais "interno" e envolve muito trabalho de meditação. Suponho que este caráter ginástico não deve ter persistido na proposta do Mestre Lin. O problema é que é difícil saber, pois ninguém aqui do Brasil, dentre os alunos do Mestre Sheng (ou qualquer outro), foi para Taiwan estudar diretamente com o Mestre Lin. E o Mestre Sheng veio para o Brasil muito cedo. Quando o Mestre Lin publicou o artigo sobre o Zhong Wudao, o próprio Mestre Sheng só o conhecia em manuscrito e já estava vivendo aqui no Brasil. Todo este desenvolvimento posterior do Shang Wumen ficou perdido para nós (praticantes brasileiros) e mesmo o Zhong Wudao que recebemos, provavelmente, é bem modificado pelo Mestre Sheng. O Zhong Wudao do Mestre Sheng tem muito destas características atléticas que você comentou. É um modelo que funcionou muito bem por aqui no início, até porque os primeiros alunos do Mestre Sheng tinham um perfil de muita força física. O pessoal mais antigo comenta a respeito do treino como algo muito puxado e também muito disciplinar, neste sentido de algo meio "militarista". Ainda temos muito desta herança por aqui.

Estudo para antigo logo da Wushukwan, academia do Mestre Huang Yu Sheng, nas décadas de 1990-2000, em Uberlândia.
Percebe-se uma apropriação do nome da Associação Jingwu, grafada como Chin Woo (outro modo bem usual no Ocidente), juntamente com o símbolo do Zhong Wudao do Mestre Lin Zhong Yuan. A academia, contudo, não tinha nenhum vínculo formal com a Associação Jingwu. Acervo pessoal de Guilherme Amaral Luz de documentos digitalizados a partir de originais da antiga academia.

quarta-feira, 11 de outubro de 2017

A Natureza das Artes Marciais - Por Sifu Robson Macedo

Mais uma vez, com muita honra e alegria, recebemos, para este blog, um texto do Sifu Robson Macedo. Agora, ele nos enviou um artigo originariamente escrito há mais de 20 anos, porém com atualidade total. Nele, Sifu Robson expressa a sua compreensão a respeito dos sentidos da prática das artes marciais, dos seus objetivos e aspectos éticos.

Texto original extraído da Revista Fatal Artes (1996) pp. 26-27.

Muito obrigado, Sifu, por mais esta bela contribuição!


Artigo em sua versão e publicação original.

A Natureza das Artes Marciais

Por Sifu Robson Macedo

Seguindo por princípios advindos de uma compreensão profunda das forças do universo em que do microcósmico ao macrocósmico, vê-se a eterna dança da contração e expansão, do atrair e repulsar, da rigidez e da suavidade, facetas de uma energia primordial única que em tudo se apresenta, os grandes sábios orientais, sintetizaram movimentos físicos que alicerçados nestes princípios permitiram a harmonização do ser com o universo em sua dinâmica, conscientizando-o desta energia em seu eterno fluir. Ao longo dos tempos foram transmitidos por castas selecionadas, e levados a outros povos do oriente, e desenvolvidos de outras formas, sendo aplicados das mais diversas finalidades, como por exemplo, na preparação do monge budista para suportar as extensas horas de meditação.
 As necessidades de uma época direcionaram moldagem e adaptação destes princípios para a autodefesa, pois um indivíduo através da atitude consciente de aplicação da força conseguiria facilmente dominar qualquer ofensor, permitindo, por exemplo, aos monges se defenderem dos assaltantes em suas longas peregrinações. Assim, foram despertando a atenção e curiosidade dos homens agressivos que se viram atraídos pelo poder que poderiam ter com esta capacidade.
O paradoxo estava lançado, o que outrora fora desenvolvido para prazer, harmonia e paz, via-se aplicável para a guerra. Mas graças à essência de sua natureza, todo aquele que se dedica a essas práticas, imperceptivelmente, na medida em que se desenvolve, torna-se cada vez mais sereno e pacífico, transformando o homem agressivo e rude em tranquilo e autocontrolado.
Muitos Mestres, hábeis nestas práticas e conscientes destes princípios, refinaram suas técnicas com grande eficiência para o combate corpo a corpo, permitindo aqueles que a elas se dedicaram, tornarem-se grandes lutadores pela justiça, paz, amor e harmonia.

Também surgiram alguns alunos que se julgaram “mestres”, devido a sua grande habilidade em luta, pararam no caminho, deturparam antigos ensinamentos, e criaram estilos próprios tolhidos dos princípios maiores, limitados por natureza à força física e agressiva, “desenvolvendo-se” como verdadeiros animais estúpidos e vazios. Atualmente, em parte, o mundo ocidental valoriza muito mais esta agressividade; devido talvez à selva em que vivemos, onde vinga o conceito que: só os “fortes” sobrevivem.

Violência gera violência, e cada vez mais o adepto deste conceito ficará perdido e iludido que está no caminho certo, preocupado com o mais forte, e temeroso de ser vencido, totalmente instável emocionalmente, arrogante, insensível e doente. “A capacidade de luta é apenas a migalha que cai da mesa, um método para atingir o princípio maior”. Cabe ao postulante avaliar bem o que deseja para si, e não se iludir com propostas de resultados inatingíveis, e com sonhos infantis de super-heróis.

Considerações Finais:

A força como tudo na vida é um conceito relativo, físico; a força do homem está sim na sua sabedoria e sensibilidade, características de um ser tranquilo e saudável, que se alia a força da natureza, que é infinitamente poderosa. Logo, a verdadeira arte marcial é aquela que orienta o homem neste sentido e que conserva em si um legado. A joia dos antigos princípios, ou seja, a pedra filosofal dos augustos ensinamentos, preservados para as futuras gerações.

Nossos agradecimentos a todos os Mestres por ter trazido esta arte marcial para nosso convívio. Em particular, agradeço ao meu Sifu, Mestre Li Hon Ki (RIP), pelos seus ensinamentos, por sua dedicação e amor a esta Arte.
Muito obrigado a todos

terça-feira, 10 de outubro de 2017

Todos amamos o UFC? Falácias e bravatas da era digital.

Hoje, por sugestão de um amigo, assisti a um vídeo no Youtube que se dispunha a elencar seis motivos pelos quais o Kung Fu não prospera no UFC. A sugestão veio acompanhada de contrapontos bastante enfáticos a todos estes supostos seis motivos. No final, não achei o vídeo ruim, apenas limitado, pois, restrito àqueles que procuram no MMA um modelo de vivência das artes marciais, ele é bastante pertinente e coerente. Porém há uma grande falácia, uma enorme bravata no vídeo que precisa ser escancarada e repensada. Segundo o rapaz, não há nada além de covardia e medo que justifique a ausência de praticantes de Kung Fu no MMA ou no UFC, pois, segundo ele, todo mundo que busca a prática de uma arte marcial, no fundo no fundo, adora os espetáculos promovidos por esta indústria.

Eu gostaria de crer que as opiniões do jovem youtuber fossem apenas resultado de imaturidade e irreflexão, crise de testosterona ou empolgação pueril. Porém, não é. As falácias e bravatas são típicos instrumentos de autopromoção na internet brasileira. Por meio de polêmicas e sensacionalismo, criam-se as legiões de fãs e, junto com eles, as multidões de inimigos. Por bem ou por mal, ganham-se visualizações, likes e publicidade gratuita, numa cadeia formidável de compartilhamentos em redes sociais. Neste caso, chamar praticantes de kung fu que resistem ou não gostam de MMA de covardes, ultrapassados e hipócritas é sinal menos de mediocridade do que da mais profunda má fé sensacionalista.

Uma das características próprias das artes marciais asiáticas é a multiplicidade de formas por meio das quais elas se ocidentalizaram. Algumas, como o Sumô e o Kendo japoneses, mesmo tendo assumido um caráter esportivo, mantiveram profunda relação com as suas origens étnicas, culturais e filosóficas. Outras, como o Aikido, persistem ainda hoje alheias à esportivização. O Karatê, hoje olímpico, precisou esperar a morte de Funakoshi para estabelecer as suas primeiras competições. Jigoro Kano, o homem que levou as Olimpíadas para o Japão, era um crítico ferrenho da prática do Judo como esporte competitivo. As diversas disciplinas do Budo sempre pensaram no esporte, no mínimo, como secundário na vivência marcial. Não se propunham como modalidades esportivas de luta, mas como caminho marcial de educação e auto cultivo. Isso não impede que praticantes dessas artes se tornem lutadores e competidores, mas é absolutamente falso dizer que quem as procura, no fundo, gosta é de ver sangue no octógono e só não admite por "medinho", por "desculpinha"...

No universo das artes marciais chinesas (tradicionais), é semelhante. O objetivo primordial da prática nunca foi a competição. Não estou afirmando que as competições não existam, não existiram nem que não devam existir. Afirmo tão somente que elas não estão nem nunca estiveram no centro da prática. Quando as artes marciais chinesas começaram a se massificar, entre o final do século XIX e o início do XX, o que se buscava era sobretudo um modelo nacional de educação física, entendendo-o como instrumento para a edificação do povo chinês, recuperando a saúde, a dignidade e a auto-estima nacionais. Várias das escolas que conhecemos e praticamos hoje são herdeiras desta perspectiva das artes marciais chinesas como formativas do caráter (pessoal e social) do praticante. É atrás disso que muita gente vai.

Nem todo mundo que entra para o Kung Fu vai atrás de se tornar uma estrela do UFC. Uma grande parte não entra nem interessada em competir. Várias são, inclusive, crianças levadas pelos seus pais, que procuram uma atividade, ao mesmo tempo, boa para a saúde do corpo e construtiva como complemento ao processo de educação. Nada impede, de fato, que, com adaptações, o Kung Fu (e mesmo o Tai Chi, como já vimos em outros textos deste blog) participe de um diálogo com o MMA; porém, reduzi-lo ao destino inexorável de promover este diálogo, é falácia e bravata.

Há espaço nas artes marciais (chinesas) para diversos públicos, com as suas diversas motivações e vários interesses. Há espaço, inclusive, para os lutadores, os esportistas e os competidores. Não deveria haver espaço para bravateiros, que desrespeitam seus colegas, denigrem a arte e caçoam de seus professores apenas para conquistar likes e visualizações, moeda contemporânea para quem almeja um lugarzinho ao sol neste império de mediocridade das celebridades virtuais. Quem quiser ir para o MMA que vá. Boa sorte, mas respeito e gratidão não são coisas que se ensinam por lá, como se pode perceber pelo comportamento de alguns de seus fãs.

segunda-feira, 25 de setembro de 2017

Treinamento: inventividade e o prazer dos desafios.



Hoje, abrimos espaço neste blog para uma publicação diferente. Temos mais um importante convidado, o Professor Roberto Cardia. Ele nos autorizou a reproduzir textos e imagens publicados em seu perfil no Facebook no nosso blog. Dentre quatro publicações que ele nos sugeriu, escolhi duas delas para mostrar aqui. No caso, duas publicações que relatam a inventividade do treinamento, combinando grandes desafios físicos e técnicos com a integração do homem ao ambiente que o circunda e com a sua história. Treinos ao ar livre são excelentes meios de compreender melhor os movimentos e os seus efeitos em distintas condições. Mais ainda quando exploram a bela paisagem e a rica natureza da cidade do Rio de Janeiro, inseparável também de histórias e tradições. O leitor deste blog terá a possibilidade de conferir um relato de experiência de treinamentos de Taekwondo em plena Mata da Tijuca, em escadarias originalmente esculpidas por escravos no século XIX e em pontes estreitas presentes na trilha.
Roberto Cardia, é professor de Taekwondo no Rio de Janeiro e um dos pioneiros no ensino desta arte marcial para portadores de deficiência visual. É autor dos livros "Taekwondo Arte Marcial e Cultura Coreana", volumes I e II, e um importante estudioso da cultura das artes marciais em nosso país. É uma grande alegria recebê-lo neste espaço. Obrigado, professor Roberto Cardia, pelo seu depoimento de memória.

Nas Escadarias do Pico da Tijuca

Por Roberto Cardia



Em toda minha jornada de praticante sempre quis os treinamentos mais duros possíveis porque acreditava que a repetição e o esforço físico me levariam em ao menos um degrau acima do que já estava. Desenvolvi várias formas de treinamentos as quais me deram resultados positivos. Entretanto, uma parte de mim, queria manter a dificuldade com bons resultados, mas com modificações nos treinos ao ar livre que já estavam repetitivos. No ano 2000 os esportes radicais estavam com tudo e neste enredo já estava pensando em algo radical também, procurando por lugares/espaços diferentes para minhas novas atividades. Uma das ideias que tive e gostei muito de praticar foi a subida de 118 degraus de rocha no Pico da Tijuca (vale a pena pesquisar pela história da construção destes degraus). Algumas partes são bastante íngremes e outras expostas ao risco de queda e rolamento. A caminhada era notória assim como algum treinamento que faria com o Felipe, um dedicado aluno que sempre me acompanhava. Ao chegar no pé da escadaria, onde dá acesso ao cume com uma visão maravilhosa, pedi para ele segurar a raquete enquanto subia. Ele foi subindo de costas segurando a raquete enquanto eu chutava ogul bandal chagui (chute circular na altura da cabeça). Não foi muito fácil porque o ambiente não é plano e simétrico assim como havia vento, sol e o cuidado de não cair ou me lesionar de alguma forma. As correntes ao lado, bastante grossas por sinal, eu recusava em amparar-me para que pudesse treinar o equilíbrio. Muito difícil! Isto ocorreu em março de 2001 e confesso a vontade de refazer o treinamento, mas se voltar o registro fotográfico deverá acontecer. A foto acima é de 2013 quando levei meus filhos lá, as restantes eu copiei na internet. Talvez tenha sido o primeiro a chutar subindo as escadarias esculpidas inicialmente por escravos no século XIX e depois reformados no século XX. Vale a pena unir história com treinamento de Taekwondo.


Antes do treinamento de subida das escadarias dos 118 degraus do Pico da Tijuca, estava em uma de minhas caminhadas na Floresta da Tijuca com finas de treinamentos técnicos de Taekwondo (1999). Resolvi treinar chutes em uma ponte ligeiramente estreita com intenção de realizar um ogul mondolio chagi (chute por trás desferido geralmente com o calcanhar, mas na altura da cabeça) e também com um ogul bandal chagi (chute semi circular na altura da cabeça, geralmente com o peito do pé). A ponte balançava muito, parecia que iria ruir e mesmo assim eu não queria me respaldar com as mãos na corda, pois precisava da dificuldade para vencer o novo obstáculo que me propus a realizar. A maior dificuldade foi executar o primeiro chute mencionado anteriormente porque precisava girar com a perna dobrada, elevar/esticar/puxar com a intenção de desferir o golpe em um ângulo muito menor do que o convencional, onde a altura das cordas não ajudava: era um pouco alta para execução da técnica apontada. O treinamento foi rápido, mas muito importante para refletir o quanto podemos chegar no alvo mais rápido e com técnicas que têm um trajeto diferente ao tradicional. As fotos apresentadas foram coletadas na internet e me parece que a ponte foi restaurada. Como sempre o meu grande amigo de treino foi o Carlo Felipe e o nome da ponte é “Ponte Pênsil”, localizada no Rio de Janeiro, na Floresta da Tijuca. Também não bati foto do treino desta vez, ficando apenas na memória de dois praticantes.

sábado, 16 de setembro de 2017

Chi Kung: dissipando mitos e equívocos - Sifu Robson Macedo


Mais uma vez, o blog Caminhos Marciais e Humanidades recebe a colaboração de um convidado. Temos a honra e a alegria de receber um texto do mestre Robson Macedo, uma das grandes referências das Artes Marciais Chinesas no Brasil.

Sifu Robson Macedo pratica Kung fu Hung Gar a mais de 35 anos. Formado em Educação física. Foi discípulo do renomado mestre  chinês Li Hon ki, tendo aprendido do seu mentor: Kung Fu Hung Gar, Tai chi Wu Dan e TCM. Foi fundador da Primeira Federação de kung Fu do estado do RJ (FKFERJ), bem como fez parte do Conselho de Mestres do Brasil, que por hora criou a Primeira Confederação de Kung Fu do Brasil (CBKW).

Neste texto, escrito originalmente há pouco mais de um ano, Robson Macedo nos apresenta a sua concepção de Chi Kung (ou Qigong, a depender do sistema de romanização) e indica algumas das suas potencialidades como prática voltada à educação integral. Trata-se de temática fundamental. O Chi Kung está presente na essência das artes marciais e também da Medicina Tradicional Chinesa. O conceito de Qi (Chi) ou Ki (no japonês) é indispensável para a compreensão plena das artes marciais como "caminho", tendo destaque central na proposição de todos os grandes mestres do Budo e das escolas tradicionais de "Kung Fu".

Muito obrigado, Sifu Robson Macedo, pela generosidade e pelos ensinamentos contidos neste texto. Xie xie!


Chi Kung: dissipando mitos e equívocos

Por Robson Macedo

Dê-me uma alavanca e um ponto de apoio, e eu moverei o mundo”.
Arquimedes


Desde quando comecei a treinar “Chi Kung” com o meu Mestre, sempre ouvi e li a respeito das coisas extraordinárias que eram possíveis de se realizar ao dominarmos estas práticas. Tais relatos versavam de exímios praticantes que tinham despertado vários poderes: quebravam vários tijolos com a cabeça e com socos, andavam sobre cacos de vidro e pregos, passavam através de paredes, curavam à distância e até desenvolviam o dom da levitação e invisibilidade. Por ser o “Chi Kung” uma disciplina regular do Tai Chi Chan e do Kung Fu Hung Gar no “curriculum” da escola do meu mentor marcial, fui introduzido nesta prática muito cedo.
“Chi kung, Qi Gong ou Kikō (em chinês simplificado: 气功; chinês tradicional: 氣功; pinyin: Qìgōng; Wade-Giles: ch'i4 kung1; em japonês: kikō (気功); em tailandês: ชี่กง) é um termo de origem chinesa que se refere ao trabalho ou exercício de cultivo da energia. Estes exercícios têm a finalidade de estimular e promover uma melhor circulação de energia Chi (energia vital) no corpo, ou seja, treino e desenvolvimento da energia (do corpo humano).” Fonte: https://pt.wikipedia.org/wiki/Chi_kung
Dos mais conhecidos, podemos citar as técnicas ou Postura da Árvore (Zhan Zhuang Chi Kung), a postura ou técnica do Chi Kung da Tartaruga Dourada, Chi kung da Camisa de Ferro, Chi Kung da Palma de Ferro e tantos outros. Com o tempo, inquiria-me ansiosamente e silenciosamente quando que Sifu Li Hon Ki iria me ensinar a “atravessar as paredes... (???)”


Nos mais de 35 anos de prática e ensino, percebo que estes mitos ainda são vigentes. Encontram-se bastante arraigados na cultura ocidental, presos talvez a nossa ancestralidade e que ao lado da vertente “filosófica”, muitas superstições associadas a algum panteão, continuam vivos até hoje, ao menos dentro do universo marcial que estou inserido. Pensamos sempre na via mais fácil, com atalhos, e que esse caminho tem uma relação com fatores externos ao nosso ser.

Desde que me conheço como indivíduo e faço parte do campo das artes marcais comumente me deparo com espetáculos em que os executantes fazem coisas extraordinárias, totalmente fora da nossa realidade. Monges de Shaolin viajam o mundo fazendo demonstrações fantásticas com números que transcendem nossa lógica e compreensão, sem falar é claro, dos filmes de Kung Fu que também retratam e enfatizam estes feitos marciais sobre-humanos.

Um ancião que estava à margem de um rio encontrou Buda e lhe disse: Passei toda a minha vida treinando e agora consigo caminhar sobre as águas do rio. Então Buda respondeu. “É mesmo, mas eu prefiro atravessar o rio de barco.”
Sabemos que, no passado, certos artistas marciais na China se concentravam e criavam ilusões “denotando um domínio excepcional de poderes mágicos”. Pessoas que podiam realizar proezas, como elevar pesos que contrariavam as leis de gravidade e a capacidade humana, pessoas capazes de voar e de se teletransportarem e outras que tinham o poder da telecinesia, ultrapassando os limites da física clássica e da biomecânica. No entanto, estes números eram apenas de ilusionismo.

Do mesmo modo, o ocidente também tem seus mágicos, como os conhecidos Mister M e o David Coperfield. Este último já voou o Gran Canyon (próximo a Las Vegas nos EUA), fez desaparecer a Estátua da Liberdade, sumiu com um avião e atravessou a exuberante e imponente Grande Muralha da China. Porém, torno a afirmar a redundante assertiva de que tudo não passa de mágica, que são truques, ou melhor, números de ilusionismo.
“No cinema, “aceitar” essas liberdades não é diferente, vemos um homem que nasce velho e cresce até virar bebê. Em outro cenário cinematográfico, um mundo habitado por trolls, elfos, Orcs, homens de 200 anos e magos poderosos. Em outra história, vemos um grupo de pessoas que vive em uma realidade imaginária e que, despertados, luta contra as máquinas, que dominaram o mundo e induzem toda a humanidade a um sono hipnótico.” Fonte: http://www.upf.br/pontodecinema/?p=447
Ao assistirmos a um show de ilusionismo em que uma moça seja serrada ao meio, temos a lucidez de saber que não foi mágica (algo real) e sim que se tratava apenas de técnicas de ilusionismo, mas que para que tivéssemos “o barato do show”, eliminamos o ceticismo e nos divertimos com “os poderes sobrenaturais dos artistas”. E então a razão nos faz a seguinte pergunta: "como podemos aceitar tamanhos absurdos sem contestar em nenhum momento o que estamos vendo à nossa frente?"

Do ponto de vista sócio histórico, o lúdico é um fenômeno cultural e não biológico, Huizinga (2008). A “mágica ou a ilusão” está carregada de valores afetivos e relacionais que envolvem o encantador e o encantado, o sedutor e o seduzido, ou seja, repleto de "ludicidade". Por isto somos capazes de assistir um filme ou um show e ficarmos extasiados, e tudo isto graças a um determinado “estado mental permitido”. Esta ideia denominou-se como “suspensão voluntária da descrença”, termo tradicionalmente aplicado no cinema, na literatura, no teatro e até em jogos dos games.

Por outro lado, se sairmos do show ou cinema e alguém quiser nos vender um carro voador, mesmo que o vendedor possa demonstrar algo que tente nos convencer de que de fato o carro voa, precisamos exercer o nosso ceticismo para não sermos enganados. Como se diz no popular: “levar gato por lebre”. De alguma forma em outros filmes, o simples fato de um homem pular de um telhado, cair rolando no chão e sair correndo nos faz exclamar que “ele deveria ter quebrado a perna ali, não poderia seguir correndo?” Não aceitamos a cena, discordamos da fantasia, isto porque neste instante estamos exercendo o ceticismo, o nosso raciocínio crítico. A “suspensão voluntária da descrença” permite que aceitemos certos absurdos e a ausência deste estado também nos faz que não perdoemos coisas bem mais simples...

O cultivo do “chi ou da energia” no ser humano é de fato um compromisso que assumimos com nós mesmos e com o nosso desenvolvimento e isto se traduz em treino e muito treino, sem firulas, ilusões, truques, sem devaneios e sem fórmulas mágicas. Leva muito tempo, sendo fundamental a paciência, muita prática e os resultados refletem nas atividades simples da vida diária (AVD) que são as nossas atividades ordinárias (estas mesmas do cotidiano), nada do outro mundo que contrarie leis e princípios universais. Os exercícios não são fórmulas transcendestes de saúde eterna e longevidade, mas processos que nos ajudam a “estarmos no aqui e agora”, vivendo o presente e aprendendo a lidar da melhor forma possível com as demandas da vida, com as impermanências e intempéries da existência, sempre em conformidade com as nossas reais potencialidades e limitações.

“Entre a força e a técnica, vence a técnica. Se a força e a técnica forem iguais, vence o Espírito.” (Miyamoto Musashi)
A filosofia chinesa ou pensamento chinês tem seus primórdios, suas raízes em priscas eras, com tratados e prolegômenos sobre política e ética:

"A filosofia chinesa corresponde ao pensamento filosófico que foi desenvolvido na China ao longo de milhares de anos. Se caracteriza pelo aspecto prático, procurando orientar o ser humano sobre como se portar com harmonia em sua vida cotidiana, em oposição à especulação teórica pura típica da filosofia grega. O conceito de união com a natureza e o conceito de forças opostas Yin Yang do taoismo também são elementos capitais na filosofia chinesa, bem como a ênfase na benevolência, justiça, retidão e respeito à autoridade. Como uma de suas obras fundamentais, cita-se o "Livro das Mutações", ou I Ching". Fonte: https://pt.wikipedia.org/wiki/Filosofia_chinesa

O “Chi Kung”, em sua gênese, é uma arte de “recarregar as nossas baterias”, de reorganizar a estrutura corporal, otimizando o seu potencial energético. De uma forma harmoniosa, busca fundir relaxamento, movimento, serenidade, concentração e disciplina - aspectos que são inerentes a essas “práticas energéticas”. O treino consiste de posturas que são alternadas com exercícios dinâmicos, onde se enfatiza o aquecimento e trabalha exercícios que auxiliam uma maior compreensão do método, sendo este apenas uma ferramenta meio.

“Chi Kung” é “filosofia oriental” com ciência ou vice-versa, pois:

“A ciência do Qigong é baseada no axioma de que a mente tem a capacidade de dirigir o chi. Você pode praticar qigong e começar a sentir os nervos, e esta capacidade aumenta com o tempo. Você pode literalmente aprender a ir dentro do seu corpo com a mente, sentir o que está lá, e direcionar o seu chi, onde ele precisa ir. Este não é um processo misterioso, mas natural, que pode ser adquirido com o tempo e esforço.” Fonte: http://www.praticasalternativas.com/qigong.php


Considerações Finais:

Nos conceitos da Medicina Tradicional Chinesa, o trato com o corpo e a psique humana estão diretamente associados com a qualidade e quantidade da “energia chi”.  As artes orientais como práticas expressivas, psicossomáticas e integrativas buscam a harmonia e autoconsciência utilizando-se da experiência corporal. “Pela linguagem do corpo, você diz muitas coisas aos outros e o corpo antes de tudo é um centro de informações, sendo essa uma linguagem que não se mente, comunicação não verbal”, (WEIL, 1986). O lugar do corpo no paradigma do ser integral se apresenta tanto como o lócus da integralidade do ser dentro de uma visão teórica, mas também como um espaço por onde se é possível ensaiar e conhecer essa integralidade. O trabalho educativo destas práticas baseia-se na concepção de “corpo multidimensional” e na práxis que se objetiva em perceber estas dimensões, de modo que esse conhecimento não seja um falar sobre, mas sim um entrar em contato com, na busca do autoconhecimento. O “Chi Kung”, em linhas gerais é um método ou uma técnica de cultivar a nossa relação com a força da vida.


Meus Respeitos aos Ancestrais e a todos os Mestres das AMC !!!

Muito Obrigado a todos!


sábado, 9 de setembro de 2017

Ciências, artes marciais e modernidade. Modernizando a ciência pelas artes marciais...



Introdução

Em nossos projetos, a prática da arte marcial está sempre à serviço da educação integral e, neste sentido, são frequentes os diálogos com as disciplinas da educação escolar. Nosso foco principal são as disciplinas de humanidades (História, Geografia, Filosofia, Sociologia), entretanto, sob ótica interdisciplinar e privilegiando eixos temáticos transversais.

Ao trabalhar com estudantes do ensino médio, notadamente no projeto na Escola Estadual Sebastião Dias Ferraz, em Tupaciguara, várias vezes senti-me aguçado a arriscar interpretações dos movimentos do kung fu a partir de conceitos básicos de Física e de Matemática. Elas são perfeitamente possíveis, mesmo para alguém tão pouco treinado nestas disciplinas quanto eu. Nunca levei isso muito adiante, pois precisaria de ajuda específica. Teria arriscado caso eu tivesse alguém da área no grupo que pudesse me auxiliar na explicação. Os professores participantes do projeto são coincidentemente todos da área de humanidades.

Não é nenhuma novidade a incorporação de conceitos científicos ("ocidentais" ou "modernos") nas artes marciais. Desde o século XIX que isso vem sendo promovido, tanto no Japão, se pensarmos no próprio Judo, quanto na China, se pensarmos no desenvolvimento do que os chineses chamavam de Tiyu (体育). O desenvolvimento do "intelecto" (zhi, 智) é um dos objetivos mais centrais das artes marciais como sistemas de educação integral. No Zhong Wudao (中武道) do Mestre Lin Zhong Yuan, no qual nos inspiramos em nossas propostas, ela se realiza na fusão entre o que o mestre chama de wen (文) e wu (武). Esta "cultura" (wen, 文) aparece de modo especial em um dos cinco aspectos do seu treinamento: o wuxue (武學 ou 武学), "estudo" ou "ciência marcial". Neste estudo, de acordo com o Mestre Lin, tudo o que ajuda a compreender as artes marciais e o seu universo amplo deve ser estudado, o que inclui a ciência e a educação física ocidentais.


O mito da ciência universal

No sentido exposto, trata-se de um pré-conceito difundido no senso comum afirmar que as artes marciais tradicionais são anti ou pseudo-científicas, que os mestres mais antigos rechaçam qualquer aproximação com a ciência e que as teorias em que as artes marciais se fundamentam são fantasias místicas, fórmulas mágicas ou derivações do pensamento religioso. Assim, há muita gente que se acha "tradicional" ao se colocar contrária a dar entendimento às artes marciais com base na ciência ocidental moderna. Inversamente, há aqueles que militam pelo abandono do que julgam "supersticioso" nas artes marciais, reduzindo-as a fenômenos a serem compreendidos no âmbito exclusivo das ciências modernas.

Eu pretendo abordar (e refutar) mais o pensamento do segundo grupo: daquelas pessoas que apostam na Ciência (com "C" maiúsculo) como a redentora das "fantasias marciais". Há alguns pressupostos na base do que elas defendem. Vamos a eles:

1. "A ciência é universal". Há uma confusão neste raciocínio. Sim: de fato, parece-me razoável supor que os objetos analisados pelas "ciências da natureza" sejam "fenômenos universais". Isso quer dizer, por exemplo, que a força gravitacional da terra independe de como cada civilização compreenda ou perceba os seus efeitos. Porém, o objeto ser universal não é o mesmo que afirmar que só seja possível compreendê-lo por meio de uma única e imutável teoria. Esta é uma crença cientificista já bastante questionada no meio acadêmico. A pá de cal neste tipo de ingenuidade foi dada em meados do século XX. Autores como Thomas Kuhn (faça download de sua obra mais conhecida aqui) demonstraram que as ciências possuem historicidade, que seus paradigmas, por mais que eficazes por algum período, transformam-se. A ciência não é um efeito direto dos objetos que estuda, mas envolve mediações. As ciências desenvolvem-se em sociedades, com suas instituições, linguagens e culturas próprias. Por mais que o seu auditório seja pretensamente toda criatura racional, sua verossimilhança depende de acordos de sentido, definidos pela comunidade (científica);

2. "Sendo a ciência universal, não há ciência dos chineses, dos japoneses ou dos 'ocidentais', mas apenas 'ciência'." Este raciocínio, decorrente do primeiro, é o efeito etnocêntrico da racionalidade moderna. Por meio dele, fora dos paradigmas aceitos pelo estado momentâneo da comunidade científica, só o que pode existir é superstição, pensamento mágico, pseudo-ciência, "empiria" e por aí vai... Não há, assim, "ciência do outro". Teorias formuladas em outras culturas, sociedades e civilizações são sempre imperfeitas ou falsas. Somente são tomadas como válidas quando encontram similaridades com a ciência moderna, quando são, de algum modo, familiares. Fora isso, são incompletas, falhas, contaminadas pelo pensamento pré-racional...

3. "A ciência traz evolução e progresso". Este é o terceiro e último passo que queremos abordar do preconceito científico: o seu caráter "expansionista". Ao entender que não existe "ciência do outro", mas "ciência universal", vigora, no senso comum, uma tese, formulada por volta do século XVIII, segundo a qual levar ciência para onde ela "não existe" é o mesmo que "civilizar". Em miúdos, para não entrar muito nos meandros da conversa, foi esta ideologia que fundamentou em grande medida os imperialismos inglês e francês (e outros) na África e na Ásia ao longo do século XIX. Taxados como "atrasados", africanos, americanos, asiáticos e povos nativos da Oceania foram infantilizados e ridicularizados. Suas "visões de mundo" foram tidas como ultrapassadas e inferiores. Era "fardo do homem branco" levar luzes para aquela "gente ignorante e bárbara". O movimento romântico, ao construir o seu orientalismo, resgatou a positividade de formas do pensamento asiático; porém, naquele momento, já assumido como irracional, místico, mágico...

Atualmente, quando muitas das artes marciais tornaram-se esportes de alto rendimento, envolvendo competições entre países em escala global, a ciência (moderna ocidental) tornou-se língua franca. Como tirar maior rendimento dos atletas? Como aumentar a força, a flexibilidade, a resistência, a efetividade das técnicas? Como compreender a mecânica dos movimentos no corpo humano e potencializá-la? Como elevar aquele salto, como tornar aquele chute mais rápido, aquele soco mais forte, aquela chave de braço mais eficaz? Para todas essas perguntas e muitas outras é possível investigar conforme métodos científicos e dar respostas muito eficientes, a serem testadas nas competições. Não há nada de mal nisso. O problema é quando isto se torna imperativo e universal. Quando esta passa a ser a "ciência do esporte" e todo o resto das artes marciais é jogado no porão das frivolidades.

Experiência de caso: a "ciência chinesa" retorna

No ano passado (2016), durante várias ocupações de escolas que aconteceram como resposta de movimentos estudantis contra a Reforma do Ensino Médio, desenvolvi uma atividade pensada em função das questões levantadas acima. Eu tinha acabado de voltar de um seminário sobre Leibniz e o pensamento chinês, realizado na Unicamp, durante o qual eu havia comprado o livro "Escritos de Leibniz sobre a China", organizado pelo professor Antônio Florentino Neto. Dentre os escritos selecionados para o livro, chamava-me a atenção uma troca de correspondências entre Leibniz e o missionário jesuíta Pe. Joachim Bouvet por volta dos primeiros anos do século XVIII.

Na primeira destas cartas, buscando a boa vontade do padre, de modo a conseguir as informações que precisava, Leibniz explicou a teoria matemática que ele estava a desenvolver: uma teoria que, segundo ele, poderia ser extremamente útil à missão, inclusive para provar a existência de um único Deus, criador de todas as coisas! Tratava-se da teoria da Progressão Binária ou da Progressão Geométrica Dupla.

Os missionários jesuítas na China eram, majoritariamente, homens de ciência, com sólida formação matemática e Leibniz sabia disso. Na corte imperial da Dinastia Qing, os jesuítas gozavam da reputação de sábios, colaborando em assuntos astronômicos, cartográficos e de infraestrutura, por exemplo. Com os sábios chineses, estes jesuítas aprenderam sobre os clássicos da sua tradição filosófica, científica e literária.

A resposta do Pe. Bouvet a Leibniz foi muito interessante. Dizendo-se muito impressionado pela descoberta matemática do filósofo, ele partiu para demonstrar que aquela teoria já era conhecida pelos chineses desde os temos de "Fohi" (Fuxi, 伏羲), sendo uma teoria milenar, conforme acreditava. Tratava-se da teoria dos gua (), ou "coua" (conforme grafado na carta). Pe. Bouvet demonstrou, partindo do que ele havia aprendido do seu contato com o Neoconfucionismo, que os gua do "Clássico das Mutações", o I Ching ou Yijing (易經), podem ser vistos como uma progressão geométrica dupla, que decorreria da análise do movimento circular a partir das polaridades yin e yang, que poderiam ser traduzidas, numericamente, por 0 e 1...

Assim, tive a ideia de explorar, em uma oficina para alunos do ensino médio, a leitura geométrica em transições de mabu para gongbu presentes no quantao xibuquan, do Sistema Básico de Kung Fu Kuoshu da FMKK. Desenvolvi a oficina na Escola Estadual René Giannetti, em Uberlândia, aproveitando a troca de correspondências entre Leibniz e o Pe. Bouvet, informações sobre o clássico Taiji Tushuo (太極圖說), escrito na Era Song pelo sábio Zhou Dunyi, e a matemática envolvida na formação dos gua do Yijing. Mostrei como a teoria poderia ajudar a compreender a movimentação básica do kung fu e como o vocabulário do yin/yang poderia ser compatível com noções matemáticas da racionalidade moderna (presente em Leibniz, por exemplo).

Foi uma oficina de Kung Fu (assim as pessoas recordam-se dela), mas o que exploramos naquela manhã foi além da arte marcial em si, envolvendo estudo da história, da filosofia e da matemática em perspectiva intercultural. Tal perspectiva busca romper com a visão arrogante e simplista de que tudo se torna ouro (apenas) pelo toque de midas da ciência moderna. Há sim a ciência dos outros. O I Ching, muitas vezes visto como um "livro mágico", encantado pelo imaginário new age, é um exemplo de que a "magia", a "religião" e a "ciência" foram separadas por fronteiras artificiais, nem sempre intransponíveis, nem sempre necessárias. O desafio não é modernizar as artes marciais por meio de ciência, mas utilizar as artes marciais para olharmos a ciência de um modo mais atual, mais moderno, mais intercultural.

domingo, 13 de agosto de 2017

Ambivalência das Tradições. Memória, Poder e Legitimação em Artes Marciais.

Imagem do curta metragem paranaense: "Chinês é Tudo Igual", que problematiza os estereótipos
associados a este grupo. Fonte: http://www.emcartaz.net/cinema/chines-e-tudo-igual/
Assista ao trailer aqui

"A força e a adaptabilidade das tradições genuínas não devem ser confundidas com
a 'invenção de tradições'. Não é necessário recuperar nem inventar tradições quando os
velhos usos ainda se conservam. Ainda assim, pode ser que muitas vezes se
inventem tradições não porque os velhos costumes não estejam mais
disponíveis nem sejam viáveis, mas porque eles deliberadamente não são
usados, nem adaptados".
(Eric Hobsbawm, A Invenção das Tradições)

Nesta semana, li uma postagem muito interessante no Blog do professor Herman Silvani da AFWK (Associação Fluir Wing Tjun Kung Fu). O professor Herman é um autor de tom polêmico e politizado, seus textos demonstram densidade cultural e domínio de linguagem. Por isso mesmo, suas opiniões (expressas no Blog ou nas redes sociais) despertam as mais opostas reações. Estou entre aqueles que o admiram e que tendem a concordar com, pelo menos, uma boa parte das suas concepções e, particularmente, espero que ele possa escrever para nós, neste espaço, alguma contribuição sua.
Dito isso, gostaria de tratar de tema correlato ao que ele tratou na sua postagem, que, no caso, foi sobre as "linhagens" no universo das artes marciais chinesas. Seu artigo abordou dois lados da questão: o da linhagem como meio de preservação da herança cultural e o da linhagem como forma de controle político, de perpetuação de hierarquias e exclusões no mundo das artes marciais. O aspecto talvez mais polêmico do texto é que o peso da tinta ficou maior sobre este segundo lado da moeda: o político. É possível que muitos praticantes de artes tradicionais tenham se sentido incomodados com esta abordagem e, em alguma medida, desrespeitados, ainda que não me pareça ter sido essa a intenção do autor.
Não quero ficar preso ao tema das linhagens. Embora seja central, ela me parece ser um dos aspectos de um quadro mais amplo, que, sem medo do conceito, emprestado do finado historiador Eric Hobsbawm, eu chamaria de "invenção das tradições" (leia a introdução do livro, baixando-a aqui). Não sou o primeiro a utilizar o termo para falar das artes marciais e das suas práticas de memória. Este é o mesmíssimo enfoque teórico de uma excelente coletânea sobre artes marciais na contemporaneidade. Refiro-me a Martial Arts in the Modern World, organizada pelos pesquisadores Thomas A. Green e Joseph R. Svinth, e publicada na Inglaterra há 14 anos.
Bom, em primeiro lugar, o que são "tradições inventadas"? Para Hobsbawm, elas são práticas marcadas por simbolismos e ritualismos, normatizadas por regras explícitas ou tácitas, que, por meio de comportamentos repetitivos, visam instituir normas de conduta e valores que clamam por continuidade com o passado. Ele distingue "tradições intentadas" dos costumes ou os "velhos usos", como aparece na epígrafe deste texto. A "tradição inventada" faz sentido propriamente quando a vida dos velhos costumes está perdida ou ameaçada diante das transformações históricas. Nesse sentido, as "tradições inventadas" são NOVIDADES, que podem ou não buscar no passado referências para a sua construção. Diz o autor: "espera-se que ela [a 'tradição inventada'] ocorra com mais freqüência: quando uma transformação rápida da sociedade debilita ou destrói os padrões sociais para os quais as 'velhas' tradições foram feitas, produzindo novos padrões com os quais essas tradições são incompatíveis; quando as velhas tradições, juntamente com seus promotores e divulgadores institucionais, dão mostras de haver perdido grande parte da capacidade de adaptação e da flexibilidade; ou quando são eliminadas de outras formas."
No senso comum entre os artistas marciais, reconhece-se facilmente como "tradição inventada" os sistemas elaborados por "não-chineses" ou por "pretensos mestres" que, não sendo de linhagem pura, sintetizam o que se supõe por fragmentos ou rudimentos de algo "legítimo" com vistas a ter um "aspecto" (enganoso) de verdadeiro. Por outro lado, toma-se como natural que um conjunto de escolas sejam "legítimas" em virtude de suas purezas de linhagem, o que supostamente as preservariam de transformações ou perdas no tempo. Assumem-se como naturais a sua antiguidade, imutabilidade e autenticidade (geográfica, étnica, cultural). São aceitas como positividades históricas e não construções vivas de experiências e memórias. Não se percebe que, pelo contrário, é a mania de fixação e de inadaptação que constitui o limite entre uma tradição viva e uma tradição inventada. Pior, não se percebe que este culto à uma tradição inventada, a inconsciência de sua artificialidade e o apego aos seus ritualismos são, na verdade, epitáfios do destino trágico desta tradição.
É preciso ter clareza: querer reviver as artes marciais praticadas no passado (seja ele mais remoto ou mais próximo) é impossível. Mesmo que houvesse perfeita preservação técnica (o que é impossível, diga-se), haveria sempre a mudança nos sentidos desta arte, pois ela estaria inserida em outro contexto (cultural, social, político, militar, filosófico, educacional etc.). Assumindo que as artes chinesas de punho tenham uma história capaz de ser traçada da Dinastia Ming aos dias atuais (seguindo, aqui, as hipóteses de Meir Shahar); assumindo também que os registros históricos mais encorpados surgem sobretudo a partir do final da Dinastia Qing; finalmente, assumindo que a maior parte das escolas conhecidas e atuantes na contemporaneidade, quando sistematizadas, não foram antes das décadas de 30 ou 40 do século XX; levando isso tudo em conta e, ainda, o intenso processo de transformações políticas, econômicas, sociais e culturais da China e dos chineses espalhados em diversas partes do mundo desde meados do século passado até hoje, atingindo, inclusive o universo do wushu, não se pode tratar das "velhas tradições chinesas" com excesso de romantismo ou de idealidade ingênua.
É muito frequente, no Brasil, a idealização da China por meio de estereótipos e marcas de exotismo. A China habita muito mais a nossa fantasia do que o nosso repertório concreto de referências de mundo. Nos casos mais graves, tamanha ingenuidade (quando não ignorância) produz o fenômeno do "pastiche cultural", aquilo que mais comumente se reconhece como "invenções" em artes marciais chinesas: por exemplo, estilos supostamente chineses com nomes japoneses ou que misturam japonês, mandarim e cantonês tudo junto... Em nível "intermediário", produz as visões mais petrificadas de convenções, tais como a naturalização de que existem estilos propriamente "norte" e outros propriamente "sul" (como se fosse algo preto no branco...), ou, para além da técnica e indo para a dimensão cultural, a confusão ou associação muito direta entre valores confucionistas e a moralidade patriarcal cristã. Porém, em um nível mais sutil, a China imaginária também faz crer que, em algum lugar escondido, encontra-se uma substância chinesa puramente preservada, cujo acesso é para pouquíssimos eleitos e, menos ainda, no caso de ocidentais. É disso que gostaria de falar.
A promessa de acesso ao tesouro escondido de uma China primordial é o maior valor simbólico agregado à marca de uma "escola legítima". No mercado do exotismo, é um capital cobiçado. Para ter acesso a ele, pagam-se altos preços. E não me refiro apenas às altas mensalidades, anuidades ou tarifas. Refiro-me a cotidianos de humilhações, de adulações (sobre este tema, recomendo este texto do Blog de Eduardo Lara), de sujeição e de silenciamento, fantasiados por eufemismos ou máscaras transculturais, tais como fidelidade, filialidade, disciplina, mérito marcial e por aí vai... Não estou dizendo que é sempre assim ou tenha que ser assim. Nem que toda escola tradicional é um simulacro de relações cruas de poder. Se assim fosse, eu nem mesmo estaria escrevendo este texto, muito menos apostaria nas artes marciais como caminho de formação integral do ser humano. O que eu digo é que há um risco muito grande, ao se assumir uma postura acrítica diante do que se propõe como "tradição definitiva" ou "linhagem pura" de artes marciais: o risco de transformarmos a (suposta) autenticidade em um fetiche e de nos alienarmos diante dele. O risco de cairmos tragicamente numa "tradição inventada" enquanto buscamos fugir das "invenções". O risco de arruinar a vitalidade de uma tradição em movimento em nome da segurança prometida por hierarquias invioláveis. O risco de confundir instituições culturais com pessoas físicas ou jurídicas, tratando-as como propriedades de empresas. O risco de assumir como um axioma que tudo o que é "legítimo", por definição, presta e nada que esteja fora disso tenha qualquer validade.
Para concluir, gostaria de moderar o meu próprio discurso e fazer uma homenagem a todos os praticantes e mestres de escolas tradicionais. Especialmente aquelas escolas que surgiram como fruto da generosidade de mestres chineses. Desde os anos 1960 e 1970, elas vêm formando gerações de professores brasileiros compromissados com a manutenção de uma cultura viva e dinâmica. Não dirijo a minha crítica a estas escolas. Pelo contrário, elas merecem meu digno respeito, minha admiração e total agradecimento. Como tradições vivas, elas se adaptaram e vêm se adaptando à realidade nova e, ao mesmo tempo, têm compartilhado conosco uma rica herança cultural, com valor de uso enorme no presente. Minha crítica é aos "fundamentalistas", aos praticantes e professores arrogantes e preconceituosos que se julgam capazes de apontar o dedo para cada expressão marcial que não caiba em suas idéias pré-concebidas e, por outro lado, não são capazes de se colocar diante do espelho com alguma honestidade. Minha crítica é à mentalidade de franchising, que vem substituindo ou se mesclando à de "linhagem", numa lógica que transforma o outro em "ameaça" ou em "concorrência". Também é uma crítica à "eugenia marcial", a busca por uma raça ou sangue puros em artes marciais. Até porque a riqueza cultural, diria um Lévi-Strauss, está no contato e não no isolamento entre os povos.