terça-feira, 10 de outubro de 2017

Todos amamos o UFC? Falácias e bravatas da era digital.

Hoje, por sugestão de um amigo, assisti a um vídeo no Youtube que se dispunha a elencar seis motivos pelos quais o Kung Fu não prospera no UFC. A sugestão veio acompanhada de contrapontos bastante enfáticos a todos estes supostos seis motivos. No final, não achei o vídeo ruim, apenas limitado, pois, restrito àqueles que procuram no MMA um modelo de vivência das artes marciais, ele é bastante pertinente e coerente. Porém há uma grande falácia, uma enorme bravata no vídeo que precisa ser escancarada e repensada. Segundo o rapaz, não há nada além de covardia e medo que justifique a ausência de praticantes de Kung Fu no MMA ou no UFC, pois, segundo ele, todo mundo que busca a prática de uma arte marcial, no fundo no fundo, adora os espetáculos promovidos por esta indústria.

Eu gostaria de crer que as opiniões do jovem youtuber fossem apenas resultado de imaturidade e irreflexão, crise de testosterona ou empolgação pueril. Porém, não é. As falácias e bravatas são típicos instrumentos de autopromoção na internet brasileira. Por meio de polêmicas e sensacionalismo, criam-se as legiões de fãs e, junto com eles, as multidões de inimigos. Por bem ou por mal, ganham-se visualizações, likes e publicidade gratuita, numa cadeia formidável de compartilhamentos em redes sociais. Neste caso, chamar praticantes de kung fu que resistem ou não gostam de MMA de covardes, ultrapassados e hipócritas é sinal menos de mediocridade do que da mais profunda má fé sensacionalista.

Uma das características próprias das artes marciais asiáticas é a multiplicidade de formas por meio das quais elas se ocidentalizaram. Algumas, como o Sumô e o Kendo japoneses, mesmo tendo assumido um caráter esportivo, mantiveram profunda relação com as suas origens étnicas, culturais e filosóficas. Outras, como o Aikido, persistem ainda hoje alheias à esportivização. O Karatê, hoje olímpico, precisou esperar a morte de Funakoshi para estabelecer as suas primeiras competições. Jigoro Kano, o homem que levou as Olimpíadas para o Japão, era um crítico ferrenho da prática do Judo como esporte competitivo. As diversas disciplinas do Budo sempre pensaram no esporte, no mínimo, como secundário na vivência marcial. Não se propunham como modalidades esportivas de luta, mas como caminho marcial de educação e auto cultivo. Isso não impede que praticantes dessas artes se tornem lutadores e competidores, mas é absolutamente falso dizer que quem as procura, no fundo, gosta é de ver sangue no octógono e só não admite por "medinho", por "desculpinha"...

No universo das artes marciais chinesas (tradicionais), é semelhante. O objetivo primordial da prática nunca foi a competição. Não estou afirmando que as competições não existam, não existiram nem que não devam existir. Afirmo tão somente que elas não estão nem nunca estiveram no centro da prática. Quando as artes marciais chinesas começaram a se massificar, entre o final do século XIX e o início do XX, o que se buscava era sobretudo um modelo nacional de educação física, entendendo-o como instrumento para a edificação do povo chinês, recuperando a saúde, a dignidade e a auto-estima nacionais. Várias das escolas que conhecemos e praticamos hoje são herdeiras desta perspectiva das artes marciais chinesas como formativas do caráter (pessoal e social) do praticante. É atrás disso que muita gente vai.

Nem todo mundo que entra para o Kung Fu vai atrás de se tornar uma estrela do UFC. Uma grande parte não entra nem interessada em competir. Várias são, inclusive, crianças levadas pelos seus pais, que procuram uma atividade, ao mesmo tempo, boa para a saúde do corpo e construtiva como complemento ao processo de educação. Nada impede, de fato, que, com adaptações, o Kung Fu (e mesmo o Tai Chi, como já vimos em outros textos deste blog) participe de um diálogo com o MMA; porém, reduzi-lo ao destino inexorável de promover este diálogo, é falácia e bravata.

Há espaço nas artes marciais (chinesas) para diversos públicos, com as suas diversas motivações e vários interesses. Há espaço, inclusive, para os lutadores, os esportistas e os competidores. Não deveria haver espaço para bravateiros, que desrespeitam seus colegas, denigrem a arte e caçoam de seus professores apenas para conquistar likes e visualizações, moeda contemporânea para quem almeja um lugarzinho ao sol neste império de mediocridade das celebridades virtuais. Quem quiser ir para o MMA que vá. Boa sorte, mas respeito e gratidão não são coisas que se ensinam por lá, como se pode perceber pelo comportamento de alguns de seus fãs.

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