segunda-feira, 15 de maio de 2017

Ainda sobre "a surra". Tradição e modernidade na marcialidade (Chuan) do Tai Chi.


Ontem, publicamos, neste blog, uma ótima contribuição de Rodrigo Wolff Apolloni a respeito da "surra" aplicada por um (suposto) lutador de MMA sobre um (suposto) mestre de Tai Chi Chuan em desafio lá na China. Este fato, independentemente do que realmente prove ou demonstre, tem causado grande comoção nos meios das artes marciais chinesas em todo mundo. O lado positivo é que temos tido a chance de debater questões importantes, que são silenciadas enquanto vivemos a "normalidade" cotidiana das artes que praticamos.

Um conjunto dessas questões, trazido inclusive no texto do professor Rodrigo, é o da marcialidade (ou não) do Tai Chi. Será que o Tai Chi deixou de ser, "verdadeiramente", uma arte marcial, se é que já foi? Será que a ênfase no lado filosófico e terapêutico do Taiji (太極) se sobrepôs de tal forma ao lado marcial do quan () que já não é mais eficaz como ensino-aprendizagem e treinamento voltado ao combate, à luta e à autodefesa? Teria o Tai Chi Chuan se transformado em fantasia romântica, seita religiosa, autoajuda, medicina tradicional chinesa e perdido a sua origem "verdadeiramente" guerreira? Será mesmo possível que uma arte marcial ao se "desmarcializar" consiga manter os seus demais benefícios para a saúde e a educação do corpo-mente-espírito? Pior: será que este processo é universal dentro do Kung Fu? Será que todo o Kung Fu (ou artes marciais chinesas, wushu ou como resolvamos chamá-lo) está se tornando uma espécie de fraude ou teatro em um contexto no qual as artes marciais comprovam a sua eficácia (apenas) no ringue ou no octógono?

No calor do momento, vários professores e mestres vêm se posicionando com enorme sinceridade. Não são poucos os apelos por mudanças, nem os reconhecimentos de mea culpa. No Brasil, talvez um dos depoimentos que mais me chamaram a atenção foi a de um ótimo professor e divulgador de artes marciais pelo Youtube: Marcos Moreno Lima, do canal O Caminho do Guerreiro. Em seu vídeo sobre o tema (ver abaixo), ele reflete sobre o ocorrido, alertando a comunidade dos praticantes de artes marciais chinesas para a necessidade do que ele chama de "modernização".


Entre ontem e hoje, estive refletindo bastante sobre o significado de "modernizar" as artes marciais. Nas redes sociais, especialmente no Facebook, vários comentários vêm sendo realizados nesta mesma direção. Alguns deles articulam, curiosamente, modernização com preservação do legado histórico-cultural do kung fu. O raciocínio, que me parece (caso o consideremos em uma "justa medida") relativamente correto, é que, sem se adaptar ao mundo em que está inserido, a prática de artes marciais chinesas tende a desaparecer e, com ela, toda a preservação de um legado cultural muito rico. Por outro lado, também podemos argumentar que a massificação ou difusão muito ampla de uma arte marcial também pode ser um risco para o seu legado, colocando-a a mercê de muitas deturpações e recontextualizações, eliminando elementos importantes da sua "originalidade".

A aporia presente no drama da modernização das artes marciais e, ao mesmo tempo, da manutenção do seu legado (tradição) é um tema, para historiadores, simplesmente fantástico. É ainda mais dramático quando são levados em conta os típicos "lugares de memória" das artes marciais e a delicadeza dos seus suportes, muito ancorados em tradições orais, transmissões familiares e relações de filialidade marcial. Mais um pouco quando se leva em conta a recente "textualização" de seus canais de transmissão e o uso ainda muito ingênuo e pouco confiável de novas tecnologias de registro. Também se torna mais interessante por ser uma aporia que transcende as artes marciais e atinge a própria história mais geral da China.

No seu famoso livro Em Busca da China Moderna, Jonathan Spence demonstra o seu desconforto em tratar do conceito de modernidade para a China em todo o longo período entre o final da Dinastia Ming e o final do século XX, na República Popular da China. Diz ele:

"Entendo que uma nação 'moderna' é, ao mesmo tempo, integrada e receptiva, segura da sua própria identidade sem deixar de ser capaz de juntar-se a outras, em pé de igualdade, em busca de novos mercados, novas tecnologias e novas ideias. Usado nesse sentido amplo, não deveríamos ter dificuldades para ver o 'moderno' como um conceito que muda com o tempo, à medida que a vida humana se vai desdobrando, em vez de confinar o sentido de 'moderno' ao nosso próprio mundo contemporâneo, enquanto relegamos o passado ao 'tradicional', e o futuro ao 'pós-moderno'. Agrada-me pensar que havia países modernos - no sentido acima - em 1600 d.C., ou mesmo antes, bem como em qualquer momento dos séculos que vieram depois. No entanto, em todo esse período, nem sequer no final do século XX a China esteve entre eles de maneira convincente". (SPENCE, 1996: 12)

Se a "modernidade chinesa", para Spence, nunca foi muito convincente, e ainda assim, o autor tratou de buscá-la, para Jack Goody e S. Fennell, ela parece ser onipresente na história da Terra do Meio desde, pelo menos a Era Han. Para eles, a China teria vivido algo semelhante ao que foi, para o "Ocidente", o Renascimento, já na Era Song, sendo entendida como uma época de olhar retrospectivo e não dogmático para as suas referências do passado a fim de dar um salto científico e tecnológico, provocando, assim, um enorme "florescimento cultural". Para eles, já na aurora do século XXI, "o olhar retrospectivo para uma ideologia secular [o Confucionismo] não impediu uma 'modernização' total". (GOODY, 2011: 282)

Entre uma "modernidade pouco convincente" e uma "modernidade total", nossos melhores analistas europeus não se entendem quando o assunto é a relação entre passado e presente na história mais ou menos recente da China. Trata-se de uma duradoura ambiguidade. Confúcio, tomado como um grande tradicionalista, reconhecido pelo trecho dos Analectos em que se compara ao Velho Peng, já é uma personagem que expressa tal ambiguidade. Nos mesmos Analectos, o Mestre afirma que, diante de bons motivos, não hesitaria em alterar aspectos dos antigos ritos. Sua referência no passado não é "morta" ou uma "fidelidade cega", mas fruto de uma profunda consciência do tempo, lido por uma chave de decadentismo, mas com a firme esperança de retomada do Caminho pela educação e pela sabedoria.

Semelhante ambiguidade entre tradicional e moderno encontra-se fora da China, no âmbito das artes marciais japonesas, sobretudo, na época de edificação do Budo. Há um trechinho dos escritos de Jigoro Kano, sobre a sua escolha pelo termo Judo como nomenclatura para a sua nova metodologia de prática e ensino do velho "ju-jutsu". Diz ele:

"Algumas pessoas perguntam por que não usei um nome como jurikagu (a ciência do ju) ou juriron (a teoria do ju) em vez de judô. Foi uma questão de preferência pessoal. Eu achei que os nomes jurikagu e juriron seriam tão inovadores que dariam a impressão de que eu inventei algo. Eu apenas queria garantir que as conquistas dos que se foram antes de mim não fossem perdidas. Assim, usei um nome que já existia e adicionei a ele o nome de meu dojo" (JIGORO KANO, 2008: 22)

Ao longo de um período de aproximadamente 40 anos entre o final do século XIX e o início do século XX, Jigoro Kano promoveu assumida e deliberadamente uma enorme ruptura com os modelos de prática e de aprendizagem de artes marciais no Japão, tal como eram compreendidas nas Eras Edo e Meiji. Sua perspectiva inspirava-se em racionalidade compatível àquela da "modernidade ocidental", enfatizando a metodologia analítica, a prevalência da reflexão à mimese e o imperativo da eficiência, por exemplo. Ainda assim, buscou um termo pré-existente ao qual agregou o nome do seu Dojo, Kodokan, para dar identidade à sua criação: o Judo. Ele reivindicava continuidade do legado de mestres que o antecederam e de gerações que ajudaram a criar as técnicas que, naquele momento, apropriava em seu sistema. Sua filosofia educacional flertava com o "ocidente", mas, na mesma medida, fincava as suas raízes no Caminho, no "Do" japonês, parente do "Dao" dos chineses.

Na China, à mesma época de Jigoro Kano no Japão, um termo tornava-se importante nos meios intelectuais que buscavam a "modernização" ou "ocidentalização" do país. No final da Era Qing e início do período republicano, este termo era tiyong (體用), uma antiga categoria presente na tradição taoista desde Wang Bi, mas que vinha ganhando uma nova roupagem (ou função...). Tiyong pode ser traduzido como o binômio "essência-função". Entre os reformadores chineses do século XIX e do início do XX, ele expressava um desejo de incorporar a ciência e a tecnologia do "ocidente moderno" na China, porém, as submetendo a uma suposta essência chinesa a ser preservada. Em outros termos, Tiyong significava uma concepção de tempo histórico em que o presente estaria para o passado como a "função" (yong), para a "essência" (ti); mudar o presente, desde que o afinando ao passado, seria apenas dar uma nova função à uma essência chinesa "imutável", expressa nas suas tradições mais enraizadas.

Voltemos ao Taijiquan. Hoje em dia, é possível que o Tai Chi seja a arte marcial mais praticada no mundo, graças à sua adoção, pelo governo chinês, como rotina voltada à saúde preventiva (por meio da chamada "Forma de Pequim"). Mundialmente, sua maior difusão dá-se pelo estilo da Família Yang e de suas diversas ramificações e variações. E também foi no início do século XX, mais ou menos na mesma época de edificação do Budo (a partir do Japão), que o Tai Chi rompeu as fronteiras de Chenjiagou e começou a ser difundido de maneiras até então inusitadas. Não foi um processo linear, monogênico e muito menos sem precedentes em outras artes chinesas e japonesas. Pelo contrário, o Tai Chi deixa a aldeia e se move às conexões globais acompanhando um intenso, conflituoso e relativamente rápido processo de transformações nas artes marciais do leste asiático. Neste contexto, é escrita uma obra cujo título já é sintomático deste momento: Taijiquan Tiyong Quanshu, de Yang Chengfu, filho e herdeiro marcial de Yang Luchan. Esta obra, editada em 1934, é um verdadeiro divisor de águas (para o bem, para o mal ou para ambos) na história do Tai Chi Chuan.

O Judo, o Aikido, o Kung Fu ou o Tai Chi Chuan, na virada do século XIX para o XX, enfrentaram um grande desafio em comum: justificar-se como prática legítima em um mundo no qual a "arte de matar e morrer" afastou-se rapidamente do combate corporal. A guerra evoluía para as armas de fogo, cada vez mais potentes, até chegar à bomba atômica. Entre a Guerra dos Boxers e a devastação de Hiroshima, as artes marciais tiveram que aceitar o fato de que, para a guerra, já estavam muito defasadas. Não seria com jujutsu ou qigong que os asiáticos poderiam enfrentar as grandes potências da Europa e dos EUA. Militarmente, as artes marciais tornavam-se coadjuvantes. A ironia de Jigoro Kano é muito reveladora de uma nova busca de legitimação para as artes marciais:

"(...) Assim como o dinheiro, um meio de troca, passou a ser mais valorizado do que os bens que pode comprar, também o ju-jutsu passou a ser reverenciado pelas técnicas em si, e não pela sua função como meio de combate. Certas escolas e estilos vieram a ser estudados como algo bastante distante do conceito de combate.
Embora o combate esteja no cerne da prática do ju-jutsu, a educação física e o treinamento mental sempre estiveram entre as suas metas. Esse quase nunca foi um ponto de discussão, pois o treino para a luta exige que se mova o corpo de várias maneiras, o que levou o ju-jutsu a se tornar indiretamente um tipo de educação física. Entretanto, pela mesma razão, ele também se tornou um método de treinamento da mente. Todas as formas de combate requerem inteligência e o uso de vários truques e expedientes; por isso, durante o treinamento do ju-jutsu, a mente é inconscientemente treinada de várias maneiras. Coragem, postura, e outros fatores benéficos para a vida também podem ser desenvolvidos.
Mesmo não estando livre de falhas, o ju-jutsu como um todo é uma herança cultural realmente valiosa que deve ser preservada. No meu entender, com algumas melhorias o ju-jutsu poderia se tornar um método abrangente de educação física, treinamento intelectual e educação moral. Então passei vários anos desenvolvendo minhas ideias, até finalmente criar o Judo Kodokan". (JIGORO KANO, 2088: 18-19)

Outros mestres fizeram percursos ainda mais radicais, indo para o extremo oposto da brutalidade da guerra na direção de uma proposta espiritualizada de paz e harmonia mundial. É o caso paradigmático do Aikibudo (posteriormente nomeado Aikido) de Morihei Ueshiba. Na sua concepção, o Budo seria "uma via divina, estabelecida pelos deuses (kami, ), que conduz à verdade, à bondade e à beleza. É um caminho espiritual que reflete a natureza ilimitada e absoluta do universo e o grande desígnio final da criação" (MORIHEI UESHIBA, 1991:31). No caso de Morihei Ueshiba, o ju-jutsu, especialmente da matriz Daito Ryu, de Sokaku Takeda, foi relido a partir da espiritualidade da seita Oomoto Kyo, de Onisaburo Deguchi. A sua proposta era tão radicalmente espiritualizada que, mesmo o Aikido, continuado pelo seu filho, Kisshomaru Ueshiba, acabou abstraindo bastante desta dimensão para se estabelecer e se difundir de maneira mais ampla no próprio Japão e no mundo.

No caso do Tai Chi Chuan, não foi muito diferente. Mas há uma sutil peculiaridade em relação à consciência de novidade expressa, por exemplo, nos escritos de Jigoro Kano. No Taijiquan Tiyong Quanshu, Yang Chengfu especula que o cultivo de si estaria na base da própria criação do Tai Chi, cuja autoria ele atribui à mítica figura de Zhang Sanfeng. Escreve o mestre:

"O Taijiquan não foi criado apenas para nos engajarmos em lutas ou em testes de força. Talvez o sábio Sanfeng o tenha criado para aumentar o nosso estoque de boa saúde (zizhu daoti). As pessoas que desejam proteger os seus corpos (weishen) e cultivar a sua natureza (yang xing), prevenir doenças e promover a longevidade, sejam elas letradas, delicadas ou fracas, sejam velhas ou jovens, mulheres ou homens, todas podem estudar esta arte." (YANG CHENGFU, 2005: 12)

O Tai Chi de Yang Chengfu compartilha uma série de características com o Budo japonês: ênfase na educação física, mental e espiritual integrada; universalidade (capaz de ser aprendido por qualquer pessoa, inclusive mulheres, o que era uma grande novidade na época); superação do uso da força física pelo entendimento do "movimento natural" etc. Isso sem falar no aspecto amplo do entendimento da saúde, que se estende para além do corpo individual e é compreendido como saúde do corpo social da nação. Yang Chengfu foi ativo colaborador da Zhongyang Guoshuguan, Academia Central de Artes Nacionais. Para ele, o Tai Chi era parte importante de um projeto de (re)construção de uma China assolada por guerras, invasões, humilhações, perda de referências culturais e enfraquecimento militar, econômico e geopolítico.

A consequência mais óbvia do uso político das artes marciais na China republicana é que a sua difusão maciça implicava a remodelagem completa de seus modelos de ensino, como bem demonstra Albert Travis Joern em sua tese, de 2012. Para ele, a articulação entre artes marciais chinesas e o cultivo de si é efeito deste momento de transformação das tradições marciais do país em face de sua "modernização" e da renovação de suas "tradições".

Voltando à polêmica luta, Xu Xiaodong, o vencedor do desafio, foi entrevistado (assista à entrevista pelo link abaixo) e expressou a sua própria versão a respeito da marcialidade do Tai Chi, em particular, e do Wushu, em geral. Para ele, a luta não demonstra que o Tai Chi seja ruim como luta, mas a farsa daquele mestre em questão. Apesar disso, ele foi categórico a afirmar que 99% dos praticantes de Tai Chi, atualmente, não são capazes de lutar. Atribuiu, ainda, ao modo de transmissão das artes marciais chinesas a culpa pelo que considera uma presunção ilusória de boa parte da comunidade de praticantes de artes marciais tradicionais do país, que creem cegamente nos ensinamentos dos seus sifus, sem questioná-los e sem testar as suas técnicas.

Assista à entrevista de Xu Xiaodong


A "bronca", o "sermão" de Xu Xiaodong, é válida. Mas há um risco de confundirmos o que é válido na sua crítica com a implosão da prática das artes marciais como "caminhos" para o cultivo de si, em perspectivas que deslocaram o combate corpo a corpo de fim para meio desta prática. Sua crítica dirige-se às promessas vazias de sujeitos que, autorizados por linhagens, escolas e heranças de antigos mestres, tentam vender a "infalibilidade" de suas técnicas e de seus ensinamentos. Ora, nem Jigoro Kano, nem Morihei Ueshiba, nem Yang Chengfu, citados aqui, reivindicaram a infalibilidade de seus sistemas. Pelo contrário. Para Jigoro Kano, por exemplo, "existe um limite para a energia do ser humano e, quando se gasta muita energia em uma área, outra é negligenciada" (JIGORO KANO, 2008: 28-29). Por isso, diz ele, a equação balanceada entre o desenvolvimento de técnicas de nage-waza e katame-waza sempre foi um desafio para o currículo da Kodokan.

Do mesmo modo, a crítica relacionada ao dogmatismo e à fidelidade cega ao mestre, como características de modos "tradicionais" de relação entre mestres e discípulos, não encontra seu alvo nos modernos "caminhos marciais", nem mesmo do Tai Chi da Família Yang, hoje internacionalizado, aberto, cosmopolita e que encoraja o diálogo com outras artes marciais, desde que preservados os princípios do estilo da família, entendidos como um legado não só técnico, como também filosófico e ético. Muito menos se aplica a Morihei Ueshiba, para quem o aprendizado da técnica (natural) é sempre uma experiência pessoal, com características próprias de uma experiência mística. Tampouco, vale para o Judo de Jigoro Kano, segundo o qual, para além de imitar aos mestres, os praticantes devem estudar detalhadamente os princípios de cada técnica, analisando-a e compreendendo-os.

Mas, na afirmação de que 99% dos praticantes de Tai Chi não conseguem lutar mais do que qualquer pessoa "comum", há implícita uma crítica ao distanciamento do Tai Chi de seu "Chuan". Xu Xiaodong é claro ao dizer que não deseja comprar uma briga com milhões de adeptos desta arte marcial (já comprando...). Mas deixa subentendido que, ao contrário de outras artes chinesas que ele preservou, como Wing Chun e Bajiquan, por exemplo, o Tai Chi declinou para o nível de uma sub-arte, ao menos do ponto de vista marcial. No sentido em que descrevemos, não é que ele tenha se modernizado pouco, mas se modernizou até demais: a ponto de perder a sua conexão com a sua origem no combate. O Tai Chi teria abstraído a luta de tal forma que não se consegue encontrar um bom lutador entre seus milhões de praticantes...

Talvez estejamos vivendo um novo momento da história das artes marciais em que as lutas de ringue e de octógono trouxeram de volta a sua legitimidade propriamente marcial. Talvez o retorno ao conceito de ju-jutsu, no caso da variante brasileira, seja sintoma de que o "Do" ou o "Dao", e não mais a eficácia de combate, é que anda se tornando dispensável. Judo pode ser bom para MMA, mas Ju-jutsu brasileiro é melhor. Karatê pode ser bom, mas o chute do "moderno" Muai Thai é melhor. Wushu pode ser bom, mas a "simplicidade" do Kickboxing é melhor...  As regras "polidas" do Judo Kodokan já não parecem fazer mais muito sentido, a não ser como modalidade olímpica, que celebra o simulacro de uma utopia de paz. Neste mundo sem mistérios e sem utopias, a "modernidade" encontrou lugares novos e aceitáveis para a crueza da luta, para o prazer da violência, para a fruição da barbárie. Resta saber o quanto o Tai Chi ainda terá que apanhar para deixar de ser "mole"... Será que existe lugar para os caminhos marciais na sociedade moderna? Será que eles se sustentarão frente às distopias do mundo pós-moderno? Bem vindos à modernidade GTA! Finish him!  FATALITY! O polegar da plebe se volta para baixo. This is Sparta!

domingo, 14 de maio de 2017

O resultado pedagógico de uma surra - Por: Rodrigo Wolff Apolloni

Este texto é uma gentil colaboração do Prof. Rodrigo Wolff Apolloni para este Blog. Em nome de todos os participantes dos projetos que compõem o Programa "Caminhos Marciais, Humanidades e Educação Integral", agradeço fortemente ao professor Rodrigo e coloco este espaço sempre a disposição para as suas excelentes reflexões e observações sobre o mundo e a história das artes marciais. Xie xie! (Guilherme Amaral Luz)

O resultado pedagógico de uma surra

Rodrigo Wolff Apolloni (*)



Essa história de liberdade digital é, mesmo, curiosa: a gente acredita que está conectado ao mundo todo quando, na verdade, há um imenso território de dados que, por determinações políticas, não  acessamos.

Falo da China, que, para escapar dos riscos sociais da cacofonia, decidiu barrar as soluções globais e oferecer suas próprias "traquitanas binárias", mais vigiáveis, à sociedade nacional - deixando os "bárbaros" do lado de lá da muralha. Essas traquitanas atendem por nomes como "Baidu", Youku" e "Renren", e substituem, respectivamente, o Google, o Youtube e o Facebook.

Somando-se a essa disposição o fato de que o chinês é tudo menos uma língua franca - a despeito de seu extraordinário número de falantes -, temos uma verdadeira separação de informações.

Isso, contudo, não impede que, vez por outra, tomemos conhecimento de certos "bafões" do Império do Meio, vazados pela imprensa internacional. Um deles, recente, dá conta de uma comoção nacional surgida com um combate entre um lutador de MMA e um professor de Tai-Chi-Chuan, que seria mais um de muitos tira-teimas do campo das lutas.

Pois o lutador desafiou o professor e, no combate transmitido pela tevê, deu-lhe uma surra em regra - um nocaute em dez segundos. E saiu bradando que o Tai-Chi, ao menos no contexto marcial, era uma fraude.

Para muitos não chineses, imaginar o Tai-Chi como uma forma de luta soa algo absurdo, a começar pelo fato de que se trata de uma prática corporal lenta e meditativa - e não "porradora".

A nomenclatura, porém, é definitiva: em chinês, "Chuan" ("拳") significa "punho", que, por sua vez, serve para representar uma modalidade de combate. Se somarmos a isso um histórico de velhos mestres lutadores de Tai-Chi, como Yang Luchan, Yang Banhou, Gu Ruzhang, Sun Lutang e muitos outros, temos a demonstração cabal da "tese marcial".

O Tai- Chi, em especial quando de sua aproximação em relação à elite Qing (no século XIX) e de sua apropriação pelo Estado comunista (em 1956, com a publicação da chamada "Forma de Pequim" em 24 movimentos), assumiu uma indelével característica de saúde, que, no entanto, não nega seu antigo viés marcial. O que, ao fim e ao cabo, produz e não produz uma boa contradição que, na média, é contornada pelos praticantes - há Tai-Chi para todos os gostos, ainda que a preferência, ao menos entre nós, seja pela saúde.

E o que revela a "sova" aplicada pelo lutador de MMA ao professor de Tai-Chi?

Em primeiro lugar, a prevalência de uma tensão histórica da sociedade chinesa, que repete dúvidas em relação às próprias artes marciais surgidas após a Rebelião dos Boxers (1900) e durante a Revolução Cultural (1966 - 1973). Os chineses, enfim, seguem colocando em questão a validade do próprio patrimônio cultural marcial face à modernidade - o que, tenho para mim, não é algo ruim, desde que não signifique assumir uma postura apriorística que condena todo um universo de cultura,  tão corporal quanto simbólico, à vala do anacronismo.

Em segundo lugar, a história parece denotar um sério mal-estar em relação aos próprios mitos de invencibilidade da marcialidade chinesa, que seguem sendo propagados por parte da comunidade de praticantes. Quantas vezes, quando aprendemos uma técnica "x" ou "y", em especial dentro do sistema de aprendizado de rotinas do Kung-Fu, somos informados de sua "infalibilidade", que, no entanto, jamais será testada?

Isso pode parecer pouco, mas em uma sociedade perpassada por um passado marcial poderoso - e "aporrinhada" por mestres  que vendem o próprio poder marcial escorados por uma orientação confucionista de não questionamento da tradição - é algo bem relevante.

A questão é saber o que os chineses farão com isso e o que nós mesmos, professores de Tai-Chi, faremos com isso. Há, sempre, a tese da falibilidade da demonstração, visto que uma única luta não serve para provar a prevalência de um estilo marcial sobre outro; até que muitos outros combates validem ou invalidem o primeiro resultado, a questão estará em aberto.

Isso significa, então, que "estamos salvos" em relação à validade marcial do Tai-Chi? Não. Significa apenas que, para trabalhar com honestidade, precisamos conhecer mais sobre a modalidade - sua história, elementos não corporais, aspectos marciais - e, principalmente, assumir com honestidade o que fazemos e oferecemos aos alunos. Sem medo, por exemplo, de questionar certos aspectos da modalidade ou de assumir nossas próprias dúvidas. Marcial, meditativo ou marcial-meditativo, o Tai-Chi é  suficientemente rico para sustentar o próprio sentido de existência. Quanto a isso, não há receio - a menos que o seu receio se baseie em uma dúvida secreta, incômoda e que merece ser encarada.

A "sova do MMA", então, fica menos doída e se transforma em uma espécie de chamado pedagógico. Se você me perguntar se dói, se incomoda, eu responderei que sim, e é exatamente por isso que estou debatendo o tema. O aparente inimigo, já dizia um velho ditado chinês, é o melhor professor.


(*) - Rodrigo Wolff Apolloni é mestre em Ciência da Religião pela PUC-SP, doutor em Sociologia pela UFPR e professor de Tai-Chi-Chuan do Centro Ásia, em Curitiba.

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Assista, pelo Youtube, ao vídeo da luta em questão: