domingo, 14 de maio de 2017

O resultado pedagógico de uma surra - Por: Rodrigo Wolff Apolloni

Este texto é uma gentil colaboração do Prof. Rodrigo Wolff Apolloni para este Blog. Em nome de todos os participantes dos projetos que compõem o Programa "Caminhos Marciais, Humanidades e Educação Integral", agradeço fortemente ao professor Rodrigo e coloco este espaço sempre a disposição para as suas excelentes reflexões e observações sobre o mundo e a história das artes marciais. Xie xie! (Guilherme Amaral Luz)

O resultado pedagógico de uma surra

Rodrigo Wolff Apolloni (*)



Essa história de liberdade digital é, mesmo, curiosa: a gente acredita que está conectado ao mundo todo quando, na verdade, há um imenso território de dados que, por determinações políticas, não  acessamos.

Falo da China, que, para escapar dos riscos sociais da cacofonia, decidiu barrar as soluções globais e oferecer suas próprias "traquitanas binárias", mais vigiáveis, à sociedade nacional - deixando os "bárbaros" do lado de lá da muralha. Essas traquitanas atendem por nomes como "Baidu", Youku" e "Renren", e substituem, respectivamente, o Google, o Youtube e o Facebook.

Somando-se a essa disposição o fato de que o chinês é tudo menos uma língua franca - a despeito de seu extraordinário número de falantes -, temos uma verdadeira separação de informações.

Isso, contudo, não impede que, vez por outra, tomemos conhecimento de certos "bafões" do Império do Meio, vazados pela imprensa internacional. Um deles, recente, dá conta de uma comoção nacional surgida com um combate entre um lutador de MMA e um professor de Tai-Chi-Chuan, que seria mais um de muitos tira-teimas do campo das lutas.

Pois o lutador desafiou o professor e, no combate transmitido pela tevê, deu-lhe uma surra em regra - um nocaute em dez segundos. E saiu bradando que o Tai-Chi, ao menos no contexto marcial, era uma fraude.

Para muitos não chineses, imaginar o Tai-Chi como uma forma de luta soa algo absurdo, a começar pelo fato de que se trata de uma prática corporal lenta e meditativa - e não "porradora".

A nomenclatura, porém, é definitiva: em chinês, "Chuan" ("拳") significa "punho", que, por sua vez, serve para representar uma modalidade de combate. Se somarmos a isso um histórico de velhos mestres lutadores de Tai-Chi, como Yang Luchan, Yang Banhou, Gu Ruzhang, Sun Lutang e muitos outros, temos a demonstração cabal da "tese marcial".

O Tai- Chi, em especial quando de sua aproximação em relação à elite Qing (no século XIX) e de sua apropriação pelo Estado comunista (em 1956, com a publicação da chamada "Forma de Pequim" em 24 movimentos), assumiu uma indelével característica de saúde, que, no entanto, não nega seu antigo viés marcial. O que, ao fim e ao cabo, produz e não produz uma boa contradição que, na média, é contornada pelos praticantes - há Tai-Chi para todos os gostos, ainda que a preferência, ao menos entre nós, seja pela saúde.

E o que revela a "sova" aplicada pelo lutador de MMA ao professor de Tai-Chi?

Em primeiro lugar, a prevalência de uma tensão histórica da sociedade chinesa, que repete dúvidas em relação às próprias artes marciais surgidas após a Rebelião dos Boxers (1900) e durante a Revolução Cultural (1966 - 1973). Os chineses, enfim, seguem colocando em questão a validade do próprio patrimônio cultural marcial face à modernidade - o que, tenho para mim, não é algo ruim, desde que não signifique assumir uma postura apriorística que condena todo um universo de cultura,  tão corporal quanto simbólico, à vala do anacronismo.

Em segundo lugar, a história parece denotar um sério mal-estar em relação aos próprios mitos de invencibilidade da marcialidade chinesa, que seguem sendo propagados por parte da comunidade de praticantes. Quantas vezes, quando aprendemos uma técnica "x" ou "y", em especial dentro do sistema de aprendizado de rotinas do Kung-Fu, somos informados de sua "infalibilidade", que, no entanto, jamais será testada?

Isso pode parecer pouco, mas em uma sociedade perpassada por um passado marcial poderoso - e "aporrinhada" por mestres  que vendem o próprio poder marcial escorados por uma orientação confucionista de não questionamento da tradição - é algo bem relevante.

A questão é saber o que os chineses farão com isso e o que nós mesmos, professores de Tai-Chi, faremos com isso. Há, sempre, a tese da falibilidade da demonstração, visto que uma única luta não serve para provar a prevalência de um estilo marcial sobre outro; até que muitos outros combates validem ou invalidem o primeiro resultado, a questão estará em aberto.

Isso significa, então, que "estamos salvos" em relação à validade marcial do Tai-Chi? Não. Significa apenas que, para trabalhar com honestidade, precisamos conhecer mais sobre a modalidade - sua história, elementos não corporais, aspectos marciais - e, principalmente, assumir com honestidade o que fazemos e oferecemos aos alunos. Sem medo, por exemplo, de questionar certos aspectos da modalidade ou de assumir nossas próprias dúvidas. Marcial, meditativo ou marcial-meditativo, o Tai-Chi é  suficientemente rico para sustentar o próprio sentido de existência. Quanto a isso, não há receio - a menos que o seu receio se baseie em uma dúvida secreta, incômoda e que merece ser encarada.

A "sova do MMA", então, fica menos doída e se transforma em uma espécie de chamado pedagógico. Se você me perguntar se dói, se incomoda, eu responderei que sim, e é exatamente por isso que estou debatendo o tema. O aparente inimigo, já dizia um velho ditado chinês, é o melhor professor.


(*) - Rodrigo Wolff Apolloni é mestre em Ciência da Religião pela PUC-SP, doutor em Sociologia pela UFPR e professor de Tai-Chi-Chuan do Centro Ásia, em Curitiba.

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Assista, pelo Youtube, ao vídeo da luta em questão:


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