Para notar que os movimentos de wushu (武术) podem ser muito bonitos para os padrões estéticos do ocidente moderno, basta assistir a um bom filme de wuxia (武俠), como O Tigre e o Dragão, ou pesquisar algumas formas modernas no Youtube, executadas em competições internacionais, como esta que trazemos abaixo:
(conteúdo em espanhol)
Alguns autores, como Barry Allen (Striking Beauty: A Philosophical Look at the Asian Martial Arts, Columbia University Press, 2015), vêm a beleza do wushu e a sua natureza propriamente marcial como, a princípio, elementos contraditórios. Como "solução", ele indica que o wushu, como espetáculo e treinamento, é uma espécie de teatralização da guerra. Não é violência, mas a experiência estética de movimentos que devem ser executados tal como seriam eficazes em caso de utilizados como "armas". Se Allen está correto, eu poderia chamar este wushu de uma poética da guerra, por meio da qual a linguagem da guerra se torna meio de tematização inventiva desta própria linguagem. Poderia, ainda, dizer que se trata de uma poética indiciária de conceitos filosóficos, éticos e metafísicos. Ela permite, sozinha ou incorporada a outras formas de representação (teatro, cinema, literatura, artes visuais etc.), dar forma a narrativas, histórias, ideias e abstrações.
Há uma forma de treinamento e competição no wushu cujo nome é muito interessante para pensar a poética das artes marciais chinesas: dui lian (对练). 对, dui, significa "par" ou "duplas"; enquanto 练 significa "exercício", "prática" ou "treinamento". "Prática a dois", seria, portanto, uma boa tradução para a expressão. Vejamos um exemplo abaixo:
Este tipo de "prática a dois" se materializa como uma "luta combinada", em que os dois praticantes comprometem-se a fazer papéis complementares e, ao mesmo tempo, de oposição entre si. Estes opostos-complementares podem ser em termos espaciais (direita/esquerda, em pé/no chão, um pula enquanto outro agacha etc.), em termos de situação de ataque ou de defesa ou em termos de tipo de movimento (um mais reto e outro mais circular, um mais suave e outro mais duro etc.). Muitas vezes, as performances enfatizam isso nas cores das roupas (azul x vermelho ou rosa e branco x preto são os pares mais comuns). A base óbvia desta linguagem é a dialética do yin (阴) e do yang (阳). O que estas performances tentam dar visibilidade é exatamente aos efeitos da relação entre essas duas forças e as suas transformações uma na outra.
Há, na literatura chinesa, uma expressão muito semelhante a 对练 para nomear um gênero poético que também tematiza os opostos-complementares: 对联, cuja pronúncia, duilian, é quase idêntica à do "treinamento a dois". Este lian 联, no caso, indica "dupla" ou "casal". 对联, numa tradução "estranha", poderia virar uma redundância; "dupla de dois". Acontece que 对 também pode indicar "opor" ou "oposição". Desse modo, uma tradução mais interessante poderia ser "par de opostos" ou mesmo, mais livremente: "dupla de opostos-complementares".
By User:Chrislb - Own work, CC BY-SA 3.0, Link
Popularizado durante as Dinastias Ming (1368 a 1644) e Qing (1644-1912), este gênero poético é, ao mesmo tempo, uma arte "decorativa". Eles são dispostos, normalmente, em pilares opostos de portais (como no exemplo da imagem acima) e seus escritos apresentam características de opostos-complementares. Eles precisam ter, simetricamente, o mesmo número de caracteres; as pronúncias das palavras, de um ou de outro elemento do par, devem ser opostas (em termos de padrão tonal) e os significados das palavras colocadas em paralelo uma com as outras também devem denotar oposição. Mas o resultado final de um e de outro deve ser a complementação do sentido mútuo. Vejamos um exemplo, conforme trazido na versão em inglês da Wikipédia:
Exemplo de um duilian:
- 書山有路勤爲徑
- Padrão tonal: 平平仄仄平平仄
- Pinyin: shū shān yǒu lù qín wéi jìng
- Tradução: A montanha de livros tem uma estrada e a diligência torna-se o percurso
- 學海無涯苦作舟
- Tone pattern: 仄仄平平仄仄平
- Pinyin: xué hǎi wú yá kǔ zuò zhōu
- Translation: O mar de conhecimento não tem limites e o esforço faz o barco
Abaixo | Acima | ||
---|---|---|---|
conhecimento | 學 | 書 | livro |
mar | 海 | 山 | montanha |
não tem | 無 | 有 | tem |
limites | 涯 | 路 | estrada |
esforço | 苦 | 勤 | diligência |
faz | 作 | 爲 | torna-se |
barco | 舟 | 徑 | percurso |
Lendo palavra por palavra em paralelo, vêm-se oposições: conhecimento é abstrato, livro é concreto; mar é baixo e de água, montanha é alta e de terra; ter é o inverso de não ter; limite trava a circulação, estradas permitem; esforço é físico, diligência é postura de vontade; fazer é externo, tornar-se é interno; o barco é o objeto material, percurso é o "desenho". No conjunto, os sentidos de uma e outra formulação se retroalimentam. Ambos indicam que, para adquirir conhecimento, é necessário muito trabalho e que isso não chega de uma hora para a outra.
O ponto a que gostaríamos de chegar com esta reflexão é que as artes marciais chinesas também podem ser vistas como tematização da linguagem da "guerra" para a construção simbólica de um discurso poético. Muitas vezes, este discurso segue em paralelo com outras formas de linguagem, inclusive a poesia propriamente dita. É o caso, por exemplo, da forma de sabre do estilo Yang de Taijiquan. Cada um dos seus 13 movimentos traz, como descrição, um verso, formando, assim, um "poema". Abaixo, reproduzimos os versos nos ideogramas originais (vocês podem pesquisar os significados e a pronúncia na internet...) e um vídeo com a forma sendo executada pelo, ainda bem jovem, Mestre Yang Jun.
七星跨虎交刀势
腾挪闪展意气扬
左顾右盼两分张
白鹤亮翅五行掌
风卷荷花叶里藏
玉女穿梭八方势
三星开合自主张
二起脚来打虎势
披身斜挂鸳鸯脚
顺水推舟鞭做篙
下势三合自由招
左右分水龙门跳
卞和携石凤还巢
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