segunda-feira, 25 de setembro de 2017

Treinamento: inventividade e o prazer dos desafios.



Hoje, abrimos espaço neste blog para uma publicação diferente. Temos mais um importante convidado, o Professor Roberto Cardia. Ele nos autorizou a reproduzir textos e imagens publicados em seu perfil no Facebook no nosso blog. Dentre quatro publicações que ele nos sugeriu, escolhi duas delas para mostrar aqui. No caso, duas publicações que relatam a inventividade do treinamento, combinando grandes desafios físicos e técnicos com a integração do homem ao ambiente que o circunda e com a sua história. Treinos ao ar livre são excelentes meios de compreender melhor os movimentos e os seus efeitos em distintas condições. Mais ainda quando exploram a bela paisagem e a rica natureza da cidade do Rio de Janeiro, inseparável também de histórias e tradições. O leitor deste blog terá a possibilidade de conferir um relato de experiência de treinamentos de Taekwondo em plena Mata da Tijuca, em escadarias originalmente esculpidas por escravos no século XIX e em pontes estreitas presentes na trilha.
Roberto Cardia, é professor de Taekwondo no Rio de Janeiro e um dos pioneiros no ensino desta arte marcial para portadores de deficiência visual. É autor dos livros "Taekwondo Arte Marcial e Cultura Coreana", volumes I e II, e um importante estudioso da cultura das artes marciais em nosso país. É uma grande alegria recebê-lo neste espaço. Obrigado, professor Roberto Cardia, pelo seu depoimento de memória.

Nas Escadarias do Pico da Tijuca

Por Roberto Cardia



Em toda minha jornada de praticante sempre quis os treinamentos mais duros possíveis porque acreditava que a repetição e o esforço físico me levariam em ao menos um degrau acima do que já estava. Desenvolvi várias formas de treinamentos as quais me deram resultados positivos. Entretanto, uma parte de mim, queria manter a dificuldade com bons resultados, mas com modificações nos treinos ao ar livre que já estavam repetitivos. No ano 2000 os esportes radicais estavam com tudo e neste enredo já estava pensando em algo radical também, procurando por lugares/espaços diferentes para minhas novas atividades. Uma das ideias que tive e gostei muito de praticar foi a subida de 118 degraus de rocha no Pico da Tijuca (vale a pena pesquisar pela história da construção destes degraus). Algumas partes são bastante íngremes e outras expostas ao risco de queda e rolamento. A caminhada era notória assim como algum treinamento que faria com o Felipe, um dedicado aluno que sempre me acompanhava. Ao chegar no pé da escadaria, onde dá acesso ao cume com uma visão maravilhosa, pedi para ele segurar a raquete enquanto subia. Ele foi subindo de costas segurando a raquete enquanto eu chutava ogul bandal chagui (chute circular na altura da cabeça). Não foi muito fácil porque o ambiente não é plano e simétrico assim como havia vento, sol e o cuidado de não cair ou me lesionar de alguma forma. As correntes ao lado, bastante grossas por sinal, eu recusava em amparar-me para que pudesse treinar o equilíbrio. Muito difícil! Isto ocorreu em março de 2001 e confesso a vontade de refazer o treinamento, mas se voltar o registro fotográfico deverá acontecer. A foto acima é de 2013 quando levei meus filhos lá, as restantes eu copiei na internet. Talvez tenha sido o primeiro a chutar subindo as escadarias esculpidas inicialmente por escravos no século XIX e depois reformados no século XX. Vale a pena unir história com treinamento de Taekwondo.


Antes do treinamento de subida das escadarias dos 118 degraus do Pico da Tijuca, estava em uma de minhas caminhadas na Floresta da Tijuca com finas de treinamentos técnicos de Taekwondo (1999). Resolvi treinar chutes em uma ponte ligeiramente estreita com intenção de realizar um ogul mondolio chagi (chute por trás desferido geralmente com o calcanhar, mas na altura da cabeça) e também com um ogul bandal chagi (chute semi circular na altura da cabeça, geralmente com o peito do pé). A ponte balançava muito, parecia que iria ruir e mesmo assim eu não queria me respaldar com as mãos na corda, pois precisava da dificuldade para vencer o novo obstáculo que me propus a realizar. A maior dificuldade foi executar o primeiro chute mencionado anteriormente porque precisava girar com a perna dobrada, elevar/esticar/puxar com a intenção de desferir o golpe em um ângulo muito menor do que o convencional, onde a altura das cordas não ajudava: era um pouco alta para execução da técnica apontada. O treinamento foi rápido, mas muito importante para refletir o quanto podemos chegar no alvo mais rápido e com técnicas que têm um trajeto diferente ao tradicional. As fotos apresentadas foram coletadas na internet e me parece que a ponte foi restaurada. Como sempre o meu grande amigo de treino foi o Carlo Felipe e o nome da ponte é “Ponte Pênsil”, localizada no Rio de Janeiro, na Floresta da Tijuca. Também não bati foto do treino desta vez, ficando apenas na memória de dois praticantes.

sábado, 16 de setembro de 2017

Chi Kung: dissipando mitos e equívocos - Sifu Robson Macedo


Mais uma vez, o blog Caminhos Marciais e Humanidades recebe a colaboração de um convidado. Temos a honra e a alegria de receber um texto do mestre Robson Macedo, uma das grandes referências das Artes Marciais Chinesas no Brasil.

Sifu Robson Macedo pratica Kung fu Hung Gar a mais de 35 anos. Formado em Educação física. Foi discípulo do renomado mestre  chinês Li Hon ki, tendo aprendido do seu mentor: Kung Fu Hung Gar, Tai chi Wu Dan e TCM. Foi fundador da Primeira Federação de kung Fu do estado do RJ (FKFERJ), bem como fez parte do Conselho de Mestres do Brasil, que por hora criou a Primeira Confederação de Kung Fu do Brasil (CBKW).

Neste texto, escrito originalmente há pouco mais de um ano, Robson Macedo nos apresenta a sua concepção de Chi Kung (ou Qigong, a depender do sistema de romanização) e indica algumas das suas potencialidades como prática voltada à educação integral. Trata-se de temática fundamental. O Chi Kung está presente na essência das artes marciais e também da Medicina Tradicional Chinesa. O conceito de Qi (Chi) ou Ki (no japonês) é indispensável para a compreensão plena das artes marciais como "caminho", tendo destaque central na proposição de todos os grandes mestres do Budo e das escolas tradicionais de "Kung Fu".

Muito obrigado, Sifu Robson Macedo, pela generosidade e pelos ensinamentos contidos neste texto. Xie xie!


Chi Kung: dissipando mitos e equívocos

Por Robson Macedo

Dê-me uma alavanca e um ponto de apoio, e eu moverei o mundo”.
Arquimedes


Desde quando comecei a treinar “Chi Kung” com o meu Mestre, sempre ouvi e li a respeito das coisas extraordinárias que eram possíveis de se realizar ao dominarmos estas práticas. Tais relatos versavam de exímios praticantes que tinham despertado vários poderes: quebravam vários tijolos com a cabeça e com socos, andavam sobre cacos de vidro e pregos, passavam através de paredes, curavam à distância e até desenvolviam o dom da levitação e invisibilidade. Por ser o “Chi Kung” uma disciplina regular do Tai Chi Chan e do Kung Fu Hung Gar no “curriculum” da escola do meu mentor marcial, fui introduzido nesta prática muito cedo.
“Chi kung, Qi Gong ou Kikō (em chinês simplificado: 气功; chinês tradicional: 氣功; pinyin: Qìgōng; Wade-Giles: ch'i4 kung1; em japonês: kikō (気功); em tailandês: ชี่กง) é um termo de origem chinesa que se refere ao trabalho ou exercício de cultivo da energia. Estes exercícios têm a finalidade de estimular e promover uma melhor circulação de energia Chi (energia vital) no corpo, ou seja, treino e desenvolvimento da energia (do corpo humano).” Fonte: https://pt.wikipedia.org/wiki/Chi_kung
Dos mais conhecidos, podemos citar as técnicas ou Postura da Árvore (Zhan Zhuang Chi Kung), a postura ou técnica do Chi Kung da Tartaruga Dourada, Chi kung da Camisa de Ferro, Chi Kung da Palma de Ferro e tantos outros. Com o tempo, inquiria-me ansiosamente e silenciosamente quando que Sifu Li Hon Ki iria me ensinar a “atravessar as paredes... (???)”


Nos mais de 35 anos de prática e ensino, percebo que estes mitos ainda são vigentes. Encontram-se bastante arraigados na cultura ocidental, presos talvez a nossa ancestralidade e que ao lado da vertente “filosófica”, muitas superstições associadas a algum panteão, continuam vivos até hoje, ao menos dentro do universo marcial que estou inserido. Pensamos sempre na via mais fácil, com atalhos, e que esse caminho tem uma relação com fatores externos ao nosso ser.

Desde que me conheço como indivíduo e faço parte do campo das artes marcais comumente me deparo com espetáculos em que os executantes fazem coisas extraordinárias, totalmente fora da nossa realidade. Monges de Shaolin viajam o mundo fazendo demonstrações fantásticas com números que transcendem nossa lógica e compreensão, sem falar é claro, dos filmes de Kung Fu que também retratam e enfatizam estes feitos marciais sobre-humanos.

Um ancião que estava à margem de um rio encontrou Buda e lhe disse: Passei toda a minha vida treinando e agora consigo caminhar sobre as águas do rio. Então Buda respondeu. “É mesmo, mas eu prefiro atravessar o rio de barco.”
Sabemos que, no passado, certos artistas marciais na China se concentravam e criavam ilusões “denotando um domínio excepcional de poderes mágicos”. Pessoas que podiam realizar proezas, como elevar pesos que contrariavam as leis de gravidade e a capacidade humana, pessoas capazes de voar e de se teletransportarem e outras que tinham o poder da telecinesia, ultrapassando os limites da física clássica e da biomecânica. No entanto, estes números eram apenas de ilusionismo.

Do mesmo modo, o ocidente também tem seus mágicos, como os conhecidos Mister M e o David Coperfield. Este último já voou o Gran Canyon (próximo a Las Vegas nos EUA), fez desaparecer a Estátua da Liberdade, sumiu com um avião e atravessou a exuberante e imponente Grande Muralha da China. Porém, torno a afirmar a redundante assertiva de que tudo não passa de mágica, que são truques, ou melhor, números de ilusionismo.
“No cinema, “aceitar” essas liberdades não é diferente, vemos um homem que nasce velho e cresce até virar bebê. Em outro cenário cinematográfico, um mundo habitado por trolls, elfos, Orcs, homens de 200 anos e magos poderosos. Em outra história, vemos um grupo de pessoas que vive em uma realidade imaginária e que, despertados, luta contra as máquinas, que dominaram o mundo e induzem toda a humanidade a um sono hipnótico.” Fonte: http://www.upf.br/pontodecinema/?p=447
Ao assistirmos a um show de ilusionismo em que uma moça seja serrada ao meio, temos a lucidez de saber que não foi mágica (algo real) e sim que se tratava apenas de técnicas de ilusionismo, mas que para que tivéssemos “o barato do show”, eliminamos o ceticismo e nos divertimos com “os poderes sobrenaturais dos artistas”. E então a razão nos faz a seguinte pergunta: "como podemos aceitar tamanhos absurdos sem contestar em nenhum momento o que estamos vendo à nossa frente?"

Do ponto de vista sócio histórico, o lúdico é um fenômeno cultural e não biológico, Huizinga (2008). A “mágica ou a ilusão” está carregada de valores afetivos e relacionais que envolvem o encantador e o encantado, o sedutor e o seduzido, ou seja, repleto de "ludicidade". Por isto somos capazes de assistir um filme ou um show e ficarmos extasiados, e tudo isto graças a um determinado “estado mental permitido”. Esta ideia denominou-se como “suspensão voluntária da descrença”, termo tradicionalmente aplicado no cinema, na literatura, no teatro e até em jogos dos games.

Por outro lado, se sairmos do show ou cinema e alguém quiser nos vender um carro voador, mesmo que o vendedor possa demonstrar algo que tente nos convencer de que de fato o carro voa, precisamos exercer o nosso ceticismo para não sermos enganados. Como se diz no popular: “levar gato por lebre”. De alguma forma em outros filmes, o simples fato de um homem pular de um telhado, cair rolando no chão e sair correndo nos faz exclamar que “ele deveria ter quebrado a perna ali, não poderia seguir correndo?” Não aceitamos a cena, discordamos da fantasia, isto porque neste instante estamos exercendo o ceticismo, o nosso raciocínio crítico. A “suspensão voluntária da descrença” permite que aceitemos certos absurdos e a ausência deste estado também nos faz que não perdoemos coisas bem mais simples...

O cultivo do “chi ou da energia” no ser humano é de fato um compromisso que assumimos com nós mesmos e com o nosso desenvolvimento e isto se traduz em treino e muito treino, sem firulas, ilusões, truques, sem devaneios e sem fórmulas mágicas. Leva muito tempo, sendo fundamental a paciência, muita prática e os resultados refletem nas atividades simples da vida diária (AVD) que são as nossas atividades ordinárias (estas mesmas do cotidiano), nada do outro mundo que contrarie leis e princípios universais. Os exercícios não são fórmulas transcendestes de saúde eterna e longevidade, mas processos que nos ajudam a “estarmos no aqui e agora”, vivendo o presente e aprendendo a lidar da melhor forma possível com as demandas da vida, com as impermanências e intempéries da existência, sempre em conformidade com as nossas reais potencialidades e limitações.

“Entre a força e a técnica, vence a técnica. Se a força e a técnica forem iguais, vence o Espírito.” (Miyamoto Musashi)
A filosofia chinesa ou pensamento chinês tem seus primórdios, suas raízes em priscas eras, com tratados e prolegômenos sobre política e ética:

"A filosofia chinesa corresponde ao pensamento filosófico que foi desenvolvido na China ao longo de milhares de anos. Se caracteriza pelo aspecto prático, procurando orientar o ser humano sobre como se portar com harmonia em sua vida cotidiana, em oposição à especulação teórica pura típica da filosofia grega. O conceito de união com a natureza e o conceito de forças opostas Yin Yang do taoismo também são elementos capitais na filosofia chinesa, bem como a ênfase na benevolência, justiça, retidão e respeito à autoridade. Como uma de suas obras fundamentais, cita-se o "Livro das Mutações", ou I Ching". Fonte: https://pt.wikipedia.org/wiki/Filosofia_chinesa

O “Chi Kung”, em sua gênese, é uma arte de “recarregar as nossas baterias”, de reorganizar a estrutura corporal, otimizando o seu potencial energético. De uma forma harmoniosa, busca fundir relaxamento, movimento, serenidade, concentração e disciplina - aspectos que são inerentes a essas “práticas energéticas”. O treino consiste de posturas que são alternadas com exercícios dinâmicos, onde se enfatiza o aquecimento e trabalha exercícios que auxiliam uma maior compreensão do método, sendo este apenas uma ferramenta meio.

“Chi Kung” é “filosofia oriental” com ciência ou vice-versa, pois:

“A ciência do Qigong é baseada no axioma de que a mente tem a capacidade de dirigir o chi. Você pode praticar qigong e começar a sentir os nervos, e esta capacidade aumenta com o tempo. Você pode literalmente aprender a ir dentro do seu corpo com a mente, sentir o que está lá, e direcionar o seu chi, onde ele precisa ir. Este não é um processo misterioso, mas natural, que pode ser adquirido com o tempo e esforço.” Fonte: http://www.praticasalternativas.com/qigong.php


Considerações Finais:

Nos conceitos da Medicina Tradicional Chinesa, o trato com o corpo e a psique humana estão diretamente associados com a qualidade e quantidade da “energia chi”.  As artes orientais como práticas expressivas, psicossomáticas e integrativas buscam a harmonia e autoconsciência utilizando-se da experiência corporal. “Pela linguagem do corpo, você diz muitas coisas aos outros e o corpo antes de tudo é um centro de informações, sendo essa uma linguagem que não se mente, comunicação não verbal”, (WEIL, 1986). O lugar do corpo no paradigma do ser integral se apresenta tanto como o lócus da integralidade do ser dentro de uma visão teórica, mas também como um espaço por onde se é possível ensaiar e conhecer essa integralidade. O trabalho educativo destas práticas baseia-se na concepção de “corpo multidimensional” e na práxis que se objetiva em perceber estas dimensões, de modo que esse conhecimento não seja um falar sobre, mas sim um entrar em contato com, na busca do autoconhecimento. O “Chi Kung”, em linhas gerais é um método ou uma técnica de cultivar a nossa relação com a força da vida.


Meus Respeitos aos Ancestrais e a todos os Mestres das AMC !!!

Muito Obrigado a todos!


sábado, 9 de setembro de 2017

Ciências, artes marciais e modernidade. Modernizando a ciência pelas artes marciais...



Introdução

Em nossos projetos, a prática da arte marcial está sempre à serviço da educação integral e, neste sentido, são frequentes os diálogos com as disciplinas da educação escolar. Nosso foco principal são as disciplinas de humanidades (História, Geografia, Filosofia, Sociologia), entretanto, sob ótica interdisciplinar e privilegiando eixos temáticos transversais.

Ao trabalhar com estudantes do ensino médio, notadamente no projeto na Escola Estadual Sebastião Dias Ferraz, em Tupaciguara, várias vezes senti-me aguçado a arriscar interpretações dos movimentos do kung fu a partir de conceitos básicos de Física e de Matemática. Elas são perfeitamente possíveis, mesmo para alguém tão pouco treinado nestas disciplinas quanto eu. Nunca levei isso muito adiante, pois precisaria de ajuda específica. Teria arriscado caso eu tivesse alguém da área no grupo que pudesse me auxiliar na explicação. Os professores participantes do projeto são coincidentemente todos da área de humanidades.

Não é nenhuma novidade a incorporação de conceitos científicos ("ocidentais" ou "modernos") nas artes marciais. Desde o século XIX que isso vem sendo promovido, tanto no Japão, se pensarmos no próprio Judo, quanto na China, se pensarmos no desenvolvimento do que os chineses chamavam de Tiyu (体育). O desenvolvimento do "intelecto" (zhi, 智) é um dos objetivos mais centrais das artes marciais como sistemas de educação integral. No Zhong Wudao (中武道) do Mestre Lin Zhong Yuan, no qual nos inspiramos em nossas propostas, ela se realiza na fusão entre o que o mestre chama de wen (文) e wu (武). Esta "cultura" (wen, 文) aparece de modo especial em um dos cinco aspectos do seu treinamento: o wuxue (武學 ou 武学), "estudo" ou "ciência marcial". Neste estudo, de acordo com o Mestre Lin, tudo o que ajuda a compreender as artes marciais e o seu universo amplo deve ser estudado, o que inclui a ciência e a educação física ocidentais.


O mito da ciência universal

No sentido exposto, trata-se de um pré-conceito difundido no senso comum afirmar que as artes marciais tradicionais são anti ou pseudo-científicas, que os mestres mais antigos rechaçam qualquer aproximação com a ciência e que as teorias em que as artes marciais se fundamentam são fantasias místicas, fórmulas mágicas ou derivações do pensamento religioso. Assim, há muita gente que se acha "tradicional" ao se colocar contrária a dar entendimento às artes marciais com base na ciência ocidental moderna. Inversamente, há aqueles que militam pelo abandono do que julgam "supersticioso" nas artes marciais, reduzindo-as a fenômenos a serem compreendidos no âmbito exclusivo das ciências modernas.

Eu pretendo abordar (e refutar) mais o pensamento do segundo grupo: daquelas pessoas que apostam na Ciência (com "C" maiúsculo) como a redentora das "fantasias marciais". Há alguns pressupostos na base do que elas defendem. Vamos a eles:

1. "A ciência é universal". Há uma confusão neste raciocínio. Sim: de fato, parece-me razoável supor que os objetos analisados pelas "ciências da natureza" sejam "fenômenos universais". Isso quer dizer, por exemplo, que a força gravitacional da terra independe de como cada civilização compreenda ou perceba os seus efeitos. Porém, o objeto ser universal não é o mesmo que afirmar que só seja possível compreendê-lo por meio de uma única e imutável teoria. Esta é uma crença cientificista já bastante questionada no meio acadêmico. A pá de cal neste tipo de ingenuidade foi dada em meados do século XX. Autores como Thomas Kuhn (faça download de sua obra mais conhecida aqui) demonstraram que as ciências possuem historicidade, que seus paradigmas, por mais que eficazes por algum período, transformam-se. A ciência não é um efeito direto dos objetos que estuda, mas envolve mediações. As ciências desenvolvem-se em sociedades, com suas instituições, linguagens e culturas próprias. Por mais que o seu auditório seja pretensamente toda criatura racional, sua verossimilhança depende de acordos de sentido, definidos pela comunidade (científica);

2. "Sendo a ciência universal, não há ciência dos chineses, dos japoneses ou dos 'ocidentais', mas apenas 'ciência'." Este raciocínio, decorrente do primeiro, é o efeito etnocêntrico da racionalidade moderna. Por meio dele, fora dos paradigmas aceitos pelo estado momentâneo da comunidade científica, só o que pode existir é superstição, pensamento mágico, pseudo-ciência, "empiria" e por aí vai... Não há, assim, "ciência do outro". Teorias formuladas em outras culturas, sociedades e civilizações são sempre imperfeitas ou falsas. Somente são tomadas como válidas quando encontram similaridades com a ciência moderna, quando são, de algum modo, familiares. Fora isso, são incompletas, falhas, contaminadas pelo pensamento pré-racional...

3. "A ciência traz evolução e progresso". Este é o terceiro e último passo que queremos abordar do preconceito científico: o seu caráter "expansionista". Ao entender que não existe "ciência do outro", mas "ciência universal", vigora, no senso comum, uma tese, formulada por volta do século XVIII, segundo a qual levar ciência para onde ela "não existe" é o mesmo que "civilizar". Em miúdos, para não entrar muito nos meandros da conversa, foi esta ideologia que fundamentou em grande medida os imperialismos inglês e francês (e outros) na África e na Ásia ao longo do século XIX. Taxados como "atrasados", africanos, americanos, asiáticos e povos nativos da Oceania foram infantilizados e ridicularizados. Suas "visões de mundo" foram tidas como ultrapassadas e inferiores. Era "fardo do homem branco" levar luzes para aquela "gente ignorante e bárbara". O movimento romântico, ao construir o seu orientalismo, resgatou a positividade de formas do pensamento asiático; porém, naquele momento, já assumido como irracional, místico, mágico...

Atualmente, quando muitas das artes marciais tornaram-se esportes de alto rendimento, envolvendo competições entre países em escala global, a ciência (moderna ocidental) tornou-se língua franca. Como tirar maior rendimento dos atletas? Como aumentar a força, a flexibilidade, a resistência, a efetividade das técnicas? Como compreender a mecânica dos movimentos no corpo humano e potencializá-la? Como elevar aquele salto, como tornar aquele chute mais rápido, aquele soco mais forte, aquela chave de braço mais eficaz? Para todas essas perguntas e muitas outras é possível investigar conforme métodos científicos e dar respostas muito eficientes, a serem testadas nas competições. Não há nada de mal nisso. O problema é quando isto se torna imperativo e universal. Quando esta passa a ser a "ciência do esporte" e todo o resto das artes marciais é jogado no porão das frivolidades.

Experiência de caso: a "ciência chinesa" retorna

No ano passado (2016), durante várias ocupações de escolas que aconteceram como resposta de movimentos estudantis contra a Reforma do Ensino Médio, desenvolvi uma atividade pensada em função das questões levantadas acima. Eu tinha acabado de voltar de um seminário sobre Leibniz e o pensamento chinês, realizado na Unicamp, durante o qual eu havia comprado o livro "Escritos de Leibniz sobre a China", organizado pelo professor Antônio Florentino Neto. Dentre os escritos selecionados para o livro, chamava-me a atenção uma troca de correspondências entre Leibniz e o missionário jesuíta Pe. Joachim Bouvet por volta dos primeiros anos do século XVIII.

Na primeira destas cartas, buscando a boa vontade do padre, de modo a conseguir as informações que precisava, Leibniz explicou a teoria matemática que ele estava a desenvolver: uma teoria que, segundo ele, poderia ser extremamente útil à missão, inclusive para provar a existência de um único Deus, criador de todas as coisas! Tratava-se da teoria da Progressão Binária ou da Progressão Geométrica Dupla.

Os missionários jesuítas na China eram, majoritariamente, homens de ciência, com sólida formação matemática e Leibniz sabia disso. Na corte imperial da Dinastia Qing, os jesuítas gozavam da reputação de sábios, colaborando em assuntos astronômicos, cartográficos e de infraestrutura, por exemplo. Com os sábios chineses, estes jesuítas aprenderam sobre os clássicos da sua tradição filosófica, científica e literária.

A resposta do Pe. Bouvet a Leibniz foi muito interessante. Dizendo-se muito impressionado pela descoberta matemática do filósofo, ele partiu para demonstrar que aquela teoria já era conhecida pelos chineses desde os temos de "Fohi" (Fuxi, 伏羲), sendo uma teoria milenar, conforme acreditava. Tratava-se da teoria dos gua (), ou "coua" (conforme grafado na carta). Pe. Bouvet demonstrou, partindo do que ele havia aprendido do seu contato com o Neoconfucionismo, que os gua do "Clássico das Mutações", o I Ching ou Yijing (易經), podem ser vistos como uma progressão geométrica dupla, que decorreria da análise do movimento circular a partir das polaridades yin e yang, que poderiam ser traduzidas, numericamente, por 0 e 1...

Assim, tive a ideia de explorar, em uma oficina para alunos do ensino médio, a leitura geométrica em transições de mabu para gongbu presentes no quantao xibuquan, do Sistema Básico de Kung Fu Kuoshu da FMKK. Desenvolvi a oficina na Escola Estadual René Giannetti, em Uberlândia, aproveitando a troca de correspondências entre Leibniz e o Pe. Bouvet, informações sobre o clássico Taiji Tushuo (太極圖說), escrito na Era Song pelo sábio Zhou Dunyi, e a matemática envolvida na formação dos gua do Yijing. Mostrei como a teoria poderia ajudar a compreender a movimentação básica do kung fu e como o vocabulário do yin/yang poderia ser compatível com noções matemáticas da racionalidade moderna (presente em Leibniz, por exemplo).

Foi uma oficina de Kung Fu (assim as pessoas recordam-se dela), mas o que exploramos naquela manhã foi além da arte marcial em si, envolvendo estudo da história, da filosofia e da matemática em perspectiva intercultural. Tal perspectiva busca romper com a visão arrogante e simplista de que tudo se torna ouro (apenas) pelo toque de midas da ciência moderna. Há sim a ciência dos outros. O I Ching, muitas vezes visto como um "livro mágico", encantado pelo imaginário new age, é um exemplo de que a "magia", a "religião" e a "ciência" foram separadas por fronteiras artificiais, nem sempre intransponíveis, nem sempre necessárias. O desafio não é modernizar as artes marciais por meio de ciência, mas utilizar as artes marciais para olharmos a ciência de um modo mais atual, mais moderno, mais intercultural.