Mais uma vez, o blog Caminhos Marciais e Humanidades recebe a colaboração de um convidado. Temos a honra e a alegria de receber um texto do mestre Robson Macedo, uma das grandes referências das Artes Marciais Chinesas no Brasil.
Sifu Robson Macedo pratica Kung fu Hung Gar a mais de 35 anos. Formado em Educação física. Foi discípulo do renomado mestre chinês Li Hon ki, tendo aprendido do seu mentor: Kung Fu Hung Gar, Tai chi Wu Dan e TCM. Foi fundador da Primeira Federação de kung Fu do estado do RJ (FKFERJ), bem como fez parte do Conselho de Mestres do Brasil, que por hora criou a Primeira Confederação de Kung Fu do Brasil (CBKW).
Neste texto, escrito originalmente há pouco mais de um ano, Robson Macedo nos apresenta a sua concepção de Chi Kung (ou Qigong, a depender do sistema de romanização) e indica algumas das suas potencialidades como prática voltada à educação integral. Trata-se de temática fundamental. O Chi Kung está presente na essência das artes marciais e também da Medicina Tradicional Chinesa. O conceito de Qi (Chi) ou Ki (no japonês) é indispensável para a compreensão plena das artes marciais como "caminho", tendo destaque central na proposição de todos os grandes mestres do Budo e das escolas tradicionais de "Kung Fu".
Muito obrigado, Sifu Robson Macedo, pela generosidade e pelos ensinamentos contidos neste texto. Xie xie!
Chi Kung: dissipando mitos e equívocos
Por Robson Macedo
Dê-me uma alavanca e um
ponto de apoio, e eu moverei o mundo”.
– Arquimedes
Desde quando comecei a treinar “Chi Kung” com o meu Mestre, sempre ouvi e li a respeito das coisas extraordinárias que eram possíveis de se realizar ao dominarmos estas práticas. Tais relatos versavam de exímios praticantes que tinham despertado vários poderes: quebravam vários tijolos com a cabeça e com socos, andavam sobre cacos de vidro e pregos, passavam através de paredes, curavam à distância e até desenvolviam o dom da levitação e invisibilidade. Por ser o “Chi Kung” uma disciplina regular do Tai Chi Chan e do Kung Fu Hung Gar no “curriculum” da escola do meu mentor marcial, fui introduzido nesta prática muito cedo.
“Chi kung, Qi Gong ou Kikō (em chinês simplificado: 气功; chinês tradicional: 氣功; pinyin: Qìgōng; Wade-Giles: ch'i4 kung1; em japonês: kikō (気功); em tailandês: ชี่กง) é um termo de origem chinesa que se refere ao trabalho ou exercício de cultivo da energia. Estes exercícios têm a finalidade de estimular e promover uma melhor circulação de energia Chi (energia vital) no corpo, ou seja, treino e desenvolvimento da energia (do corpo humano).” Fonte: https://pt.wikipedia.org/wiki/Chi_kung
Dos mais conhecidos, podemos citar as técnicas ou Postura da Árvore (Zhan Zhuang Chi Kung), a postura ou técnica do Chi Kung da Tartaruga Dourada, Chi kung da Camisa de Ferro, Chi Kung da Palma de Ferro e tantos outros. Com o tempo, inquiria-me ansiosamente e silenciosamente quando que Sifu Li Hon Ki iria me ensinar a “atravessar as paredes... (???)”
Nos mais de 35 anos de prática e ensino, percebo que estes mitos ainda são vigentes. Encontram-se bastante arraigados na cultura ocidental, presos talvez a nossa ancestralidade e que ao lado da vertente “filosófica”, muitas superstições associadas a algum panteão, continuam vivos até hoje, ao menos dentro do universo marcial que estou inserido. Pensamos sempre na via mais fácil, com atalhos, e que esse caminho tem uma relação com fatores externos ao nosso ser.
Desde que me conheço como indivíduo e faço parte do campo das artes marcais comumente me deparo com espetáculos em que os executantes fazem coisas extraordinárias, totalmente fora da nossa realidade. Monges de Shaolin viajam o mundo fazendo demonstrações fantásticas com números que transcendem nossa lógica e compreensão, sem falar é claro, dos filmes de Kung Fu que também retratam e enfatizam estes feitos marciais sobre-humanos.
Um ancião que estava à margem de um rio encontrou Buda e lhe disse: Passei toda a minha vida treinando e agora consigo caminhar sobre as águas do rio. Então Buda respondeu. “É mesmo, mas eu prefiro atravessar o rio de barco.”
Sabemos que, no passado, certos artistas marciais na China se concentravam e criavam ilusões “denotando um domínio excepcional de poderes mágicos”. Pessoas que podiam realizar proezas, como elevar pesos que contrariavam as leis de gravidade e a capacidade humana, pessoas capazes de voar e de se teletransportarem e outras que tinham o poder da telecinesia, ultrapassando os limites da física clássica e da biomecânica. No entanto, estes números eram apenas de ilusionismo.
Do mesmo modo, o ocidente também tem seus mágicos, como os conhecidos Mister M e o David Coperfield. Este último já voou o Gran Canyon (próximo a Las Vegas nos EUA), fez desaparecer a Estátua da Liberdade, sumiu com um avião e atravessou a exuberante e imponente Grande Muralha da China. Porém, torno a afirmar a redundante assertiva de que tudo não passa de mágica, que são truques, ou melhor, números de ilusionismo.
“No cinema, “aceitar” essas liberdades não é diferente, vemos um homem que nasce velho e cresce até virar bebê. Em outro cenário cinematográfico, um mundo habitado por trolls, elfos, Orcs, homens de 200 anos e magos poderosos. Em outra história, vemos um grupo de pessoas que vive em uma realidade imaginária e que, despertados, luta contra as máquinas, que dominaram o mundo e induzem toda a humanidade a um sono hipnótico.” Fonte: http://www.upf.br/pontodecinema/?p=447
Ao assistirmos a um show de ilusionismo em que uma moça seja serrada ao meio, temos a lucidez de saber que não foi mágica (algo real) e sim que se tratava apenas de técnicas de ilusionismo, mas que para que tivéssemos “o barato do show”, eliminamos o ceticismo e nos divertimos com “os poderes sobrenaturais dos artistas”. E então a razão nos faz a seguinte pergunta: "como podemos aceitar tamanhos absurdos sem contestar em nenhum momento o que estamos vendo à nossa frente?"
Do ponto de vista sócio histórico, o lúdico é um fenômeno cultural e não biológico, Huizinga (2008). A “mágica ou a ilusão” está carregada de valores afetivos e relacionais que envolvem o encantador e o encantado, o sedutor e o seduzido, ou seja, repleto de "ludicidade". Por isto somos capazes de assistir um filme ou um show e ficarmos extasiados, e tudo isto graças a um determinado “estado mental permitido”. Esta ideia denominou-se como “suspensão voluntária da descrença”, termo tradicionalmente aplicado no cinema, na literatura, no teatro e até em jogos dos games.
Por outro lado, se sairmos do show ou cinema e alguém quiser nos vender um carro voador, mesmo que o vendedor possa demonstrar algo que tente nos convencer de que de fato o carro voa, precisamos exercer o nosso ceticismo para não sermos enganados. Como se diz no popular: “levar gato por lebre”. De alguma forma em outros filmes, o simples fato de um homem pular de um telhado, cair rolando no chão e sair correndo nos faz exclamar que “ele deveria ter quebrado a perna ali, não poderia seguir correndo?” Não aceitamos a cena, discordamos da fantasia, isto porque neste instante estamos exercendo o ceticismo, o nosso raciocínio crítico. A “suspensão voluntária da descrença” permite que aceitemos certos absurdos e a ausência deste estado também nos faz que não perdoemos coisas bem mais simples...
O cultivo do “chi ou da energia” no ser humano é de fato um compromisso que assumimos com nós mesmos e com o nosso desenvolvimento e isto se traduz em treino e muito treino, sem firulas, ilusões, truques, sem devaneios e sem fórmulas mágicas. Leva muito tempo, sendo fundamental a paciência, muita prática e os resultados refletem nas atividades simples da vida diária (AVD) que são as nossas atividades ordinárias (estas mesmas do cotidiano), nada do outro mundo que contrarie leis e princípios universais. Os exercícios não são fórmulas transcendestes de saúde eterna e longevidade, mas processos que nos ajudam a “estarmos no aqui e agora”, vivendo o presente e aprendendo a lidar da melhor forma possível com as demandas da vida, com as impermanências e intempéries da existência, sempre em conformidade com as nossas reais potencialidades e limitações.
“Entre a força e a técnica, vence a técnica. Se a força e a técnica forem iguais, vence o Espírito.” (Miyamoto Musashi)
A filosofia chinesa ou pensamento chinês tem seus primórdios, suas raízes em priscas eras, com tratados e prolegômenos sobre política e ética:
"A filosofia chinesa corresponde ao pensamento filosófico que foi desenvolvido na China ao longo de milhares de anos. Se caracteriza pelo aspecto prático, procurando orientar o ser humano sobre como se portar com harmonia em sua vida cotidiana, em oposição à especulação teórica pura típica da filosofia grega. O conceito de união com a natureza e o conceito de forças opostas Yin Yang do taoismo também são elementos capitais na filosofia chinesa, bem como a ênfase na benevolência, justiça, retidão e respeito à autoridade. Como uma de suas obras fundamentais, cita-se o "Livro das Mutações", ou I Ching". Fonte: https://pt.wikipedia.org/wiki/Filosofia_chinesa
O “Chi Kung”, em sua gênese, é uma arte de “recarregar as nossas baterias”, de reorganizar a estrutura corporal, otimizando o seu potencial energético. De uma forma harmoniosa, busca fundir relaxamento, movimento, serenidade, concentração e disciplina - aspectos que são inerentes a essas “práticas energéticas”. O treino consiste de posturas que são alternadas com exercícios dinâmicos, onde se enfatiza o aquecimento e trabalha exercícios que auxiliam uma maior compreensão do método, sendo este apenas uma ferramenta meio.
“Chi Kung” é “filosofia oriental” com ciência ou vice-versa, pois:
“A ciência do Qigong é baseada no axioma de que a mente tem a capacidade de dirigir o chi. Você pode praticar qigong e começar a sentir os nervos, e esta capacidade aumenta com o tempo. Você pode literalmente aprender a ir dentro do seu corpo com a mente, sentir o que está lá, e direcionar o seu chi, onde ele precisa ir. Este não é um processo misterioso, mas natural, que pode ser adquirido com o tempo e esforço.” Fonte: http://www.praticasalternativas.com/qigong.php
Considerações Finais:
Nos conceitos da Medicina Tradicional Chinesa, o trato com o corpo e a psique humana estão diretamente associados com a qualidade e quantidade da “energia chi”. As artes orientais como práticas expressivas, psicossomáticas e integrativas buscam a harmonia e autoconsciência utilizando-se da experiência corporal. “Pela linguagem do corpo, você diz muitas coisas aos outros e o corpo antes de tudo é um centro de informações, sendo essa uma linguagem que não se mente, comunicação não verbal”, (WEIL, 1986). O lugar do corpo no paradigma do ser integral se apresenta tanto como o lócus da integralidade do ser dentro de uma visão teórica, mas também como um espaço por onde se é possível ensaiar e conhecer essa integralidade. O trabalho educativo destas práticas baseia-se na concepção de “corpo multidimensional” e na práxis que se objetiva em perceber estas dimensões, de modo que esse conhecimento não seja um falar sobre, mas sim um entrar em contato com, na busca do autoconhecimento. O “Chi Kung”, em linhas gerais é um método ou uma técnica de cultivar a nossa relação com a força da vida.
Meus Respeitos aos Ancestrais e a todos os Mestres das AMC !!!
Muito Obrigado a todos!
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