Desta vez, nosso blog abre espaço a um convidado que é mais do que de casa. Fabrício Pinto Monteiro é uma das principais referências técnicas e teóricas da Federação Mineira de Kung Fu Kuoshu. Tem sido o responsável pela padronização do seu Sistema Básico de Graduação e pela continuidade da formação técnica dos nossos instrutores e professores, dentre os quais me incluo. O Fabrício possui uma vida (tão longa quanto alguém tão jovem permite dizer...) dedicada às artes marciais chinesas. Começou a praticar o Zhong Wudao na academia do Ms. Huang Yu Sheng há mais de 20 anos. Hoje, como aluno do professor Niltoamar, importante referência em Uberlândia-MG, formou-se em algumas escolas: o próprio Zhong Wudao, o Nanbei Wudao (compilação de alguns estilos realizada pelo professor Niltomar e articulados conforme a sua leitura de arte marcial), o Wushu Moderno do Ms. Huang Hsiao Po e, atualmente, dedica-se à escola de Neijiaquan do Ms. Wu Tan Xien, de Hong Kong, representada, no Brasil, pelos seus dois filhos: Wu Tan Qing e Wu Tan Ming. Fabrício é também historiador de formação e professor na educação básica. Publicou já vários artigos e livros, sendo alguns deles sobre aspectos da história social do Kung Fu. Destaca-se, entre eles, "História das Artes Marciais Chinesas: Tradição, Memórias e Modernidade", no qual ele apresenta, após densa introdução ao desenvolvimento do kung fu na China, a proposta de Zhong Wudao do Ms. Lin Zhong Yuan, de Taiwan. Para finalizar, é preciso dizer que o Fabrício, além de um excelente amigo, é um parceiro sem o qual nosso programa e nossos projetos não existiriam. Sua interlocução, apoio e trabalho são indispensáveis para nós, de modo que não há agradecimento que seja suficiente no caso dele. Ainda assim, muitíssimo obrigado, Fabrício!
Vamos ao Texto!
"Isso não é Taijiquan!" - compreendendo a arte marcial sem limitações
Por Fabrício Pinto Monteiro
O tema deste texto não é exatamente novo, mas considero que sua discussão é interessante para que estudantes que estão começando sua prática nas artes marciais possam, desde o início, refletir sobre sua relação com as mesmas. Pensá-las um pouquinho além da atividade esportiva, por exemplo, e vivenciá-las como um Caminho mais amplo para suas vidas.
Para começar, deem uma olhada no vídeo abaixo:
Este é Nick Osipiczak, um lutador profissional britânico, praticante e professor de Taijiquan, Yoga e Qigong, que estuda as artes marciais internas para uso, entre outros focos, no MMA.
Não se preocupem! Não falaremos do desgastado assunto “Taijiquan funciona mesmo como arte marcial?”, ou ainda, “as artes marciais tradicionais são páreo para o MMA?”. A discussão aqui é outra e provém das impressões de várias pessoas ao assistirem um vídeo como o de Osipiczak, em que um lutador apresenta-se de forma explícita como praticamente de determinado estilo ou escola em um contexto esportivo de artes marciais mistas.
NOTA: Chicote Simples (单鞭, danbian), repelir o macaco (倒撵猴, daonianhou)
e agulha no fundo do mar (海底针, haidizhen) são exemplos de técnicas presentes na
Forma Longa estabelecida pelo Ms. Yang Chengfu na nomenclatura
pela qual são conhecidas em português no Brasil.
Nick Osipiczak parece ter uma consciência muito clara de “onde está” seu Taijiquan no UFC, e ele a ensina de maneira bem direta em vários de seus vídeos e entrevistas. Como uma arte interna, o Taijiquan não se define por seus movimentos externos. É meio lógico, não? O Taijiquan (e, na verdade, qualquer outra arte marcial) não nos ensina simplesmente golpes fixos; ele não deve nos limitar, pelo contrário, deve expandir nossa consciência corporal e mental em direção a uma movimentação livre e natural. As artes marciais ensinam a nos movimentar, apenas isso. E esse “apenas” não é pouca coisa, certo? Movimentar-nos de forma mais eficiente, econômica, harmônica, flexível… Movimentos, de preferência, que gerem energia e aproveitem a que está ao nosso redor; não que consumam nossa própria energia até o esgotamento. Sendo um pouquinho mais profundo, as artes marciais nos ensinam como nos relacionar – nos mover, física e mentalmente - com tudo o que está ao nosso redor, tendo em vista essa harmonia e essa criação de energia. Tendo consciência desse ensinamento das artes marciais, começamos a escapar de sua vivência apenas como um esporte (o que continua sendo um aspecto válido e útil) e nos abrimos para experienciá-las como Caminho, como um todo em nossa vida.
“Tá”, você me responde, “mas que aquele gancho é do boxe, é!”. Tudo bem, você está certo. Chegamos aí em um outro aspecto importante das artes marciais: elas são históricas. A luta, a guerra como um todo são elementos humanos e históricos. Por mais que a propaganda do UFC afirme que o octógono é o “ambiente definitivo” de contenda entre dois homens ou mulheres, o cara-a-cara mais cru possível para testar a eficiência objetiva das técnicas de cada um, sabemos que isso é um exagero.
Em cada época e ambiente social, luta-se de acordo com formas aceitas e criadas por determinadas culturas. Não é difícil perceber como os atletas de lutas mistas lutavam de modos diferentes há 20, 40 e 100 anos, por exemplo. Cada cultura, nesse caso específico, temporalmente falando, possui um jeito “certo” e “eficiente” de lutar para aquele determinado grupo social. Claro que aproveita-se a experiência do passado, mas não há uma linearidade rumo ao “sistema perfeito” como muitos propagandeiam – senão, depois de milhares de anos de guerras, a humanidade já deveria ter chegado na arte marcial perfeita, não é?, uma arte que inexoravelmente venceria todas as outras.
Desde o século XIX, as nações ocidentais – e depois as orientais, desde os processos de domínio, colonização e influências culturais – tiveram alguns paradigmas fortes sendo construídos como parte da estética, da ética e da técnica consideradas “belas” e “boas” para as lutas de mãos vazias. Paradigmas que envolveram o boxe inglês, a luta romana e a esgrima francesa, sobretudo. Não vou usar a palavra “contaminar”, pois ela conota algo negativo e não se trata necessariamente de julgar isso como algo mal, mas essa cultura influenciou e influencia de várias maneiras diferentes nosso modo de lutar, independente da arte marcial praticada.
Uma luta é um diálogo, como se diz na capoeira, mas só existem respostas para as perguntas quando minimamente se fala uma língua parecida. Deve-se considerar a Huka-huka tradicional menos eficiente que o jiu-jitsu ao pegarmos um indígena do Mato Grosso e ele perder uma luta em um tatame? Acho que não. Lembram que o Anderson Silva tentou isso (ver o vídeo abaixo) e se deu mal enquanto as regras eram dos indígenas… mas, milagrosamente seu grappling voltou a ganhar eficiência logo que as regras mudaram para as dele…
NOTA: Huka-huka é uma arte marcial de algumas etnias indígenas do Mato Grosso, especialmente nas áreas
do Xingu e dos Bakairi. Trata-se de uma luta com forte conotação ritual, estando associada ao culto dos
ancestrais, na "festa" do Quarup, em reverência ao herói Mawutzinin. Atualmente, a modalidade
vem ganhando popularidade como uma arte marcial de caráter étnico e está inserida, assim como a
Capoeira e a luta Marajoara, em currículos de Educação Física na Educação Básica do Brasil.
O vídeo é uma clara peça publicitária para vender suco de açaí, fruta associada à região amazônica.
Voltemos agora a Nick Osipiczak e o taijiquan.
Há uma cultura, uma linguagem muito particular nas lutas de MMA e no UFC, traduzida em proibições e permissões de movimentos, duração dos combates, o que é considerado “vitória”, o papel da plateia, da mídia e patrocinadores no combate, a área onde a luta ocorre, o que se considera fairplay ou não e, sobretudo, as motivações de cada um estar ali. Se você não participar dessa cultura, não há luta: seja porque um deles será “derrotado” de forma rápida e estrondosa, seja porque um deles sequer estará lá.
O que o professor Osipiczak nos ensina é que o Taijiquan enquanto arte marcial consegue, se este for o desejo, participar desse diálogo. Seus princípios internos podem se manifestar externamente em palavras, quero dizer, em técnicas, em movimentos, que os demais envolvidos no MMA entendem. Ganchos, uppercuts, armlocks e tal carregam em seu interior projeções de energia, enraizamento, centros de equilíbrio, trabalho de respiração, desvios e redirecionamento de força, trabalhos de pernas e bases caríssimos ao Taijiquan. Mesmo não sendo fã dele, ou do UFC, recomendo voltarem depois a seu canal no Youtube, “Raised Spirit”, e conhecerem alguns dos vídeos instrucionais, bem como em seu website.
Você pode não gostar de suas lições ou considerar que suas pesquisas não estão sendo pertinentes ao Taijiquan ou ao MMA, mas é uma experiência muito válida que está compartilhando conosco.
Ah… e antes de terminar, um bônus para outra discussão: o Taijiquan de Nick Osipiczak é de estilo Yang, quando nos últimos anos estamos (mal) acostumados a pensar diretamente no Taijiquan Chen ao nos referirmos aos aspectos marciais dessa arte...
Um comentário:
Reflexão muito importante. E realmente no video dá para identificar uma coerência técnica de posturas, ataques, estado de espirito, etc. Outra coisa que pensei a partir do texto foi que é possivel treinar técnicas de uma arte marcial usando princípios de outra. Com sua ajuda, quando passei a entender melhor a ideia de "principios" fica fácil imaginar e fazer, por exemplo, boxe com os princípios do punho duro do Yingchui, ou fazer técnicas de taichi com a dureza do karate, judo com a circularidade e jogo do shuai jiao, ou jiujitsu com qigong. É claro que a coisa se transforma em outra, mas são combinações possiveis e, provavelmente frutiferas. Aliás, não é assim que a maior parte de estilos e artes marcias vão surgindo, combinando principios de um lugar com técnicas de outro?
Renner Mariano
Postar um comentário