domingo, 13 de agosto de 2017

Ambivalência das Tradições. Memória, Poder e Legitimação em Artes Marciais.

Imagem do curta metragem paranaense: "Chinês é Tudo Igual", que problematiza os estereótipos
associados a este grupo. Fonte: http://www.emcartaz.net/cinema/chines-e-tudo-igual/
Assista ao trailer aqui

"A força e a adaptabilidade das tradições genuínas não devem ser confundidas com
a 'invenção de tradições'. Não é necessário recuperar nem inventar tradições quando os
velhos usos ainda se conservam. Ainda assim, pode ser que muitas vezes se
inventem tradições não porque os velhos costumes não estejam mais
disponíveis nem sejam viáveis, mas porque eles deliberadamente não são
usados, nem adaptados".
(Eric Hobsbawm, A Invenção das Tradições)

Nesta semana, li uma postagem muito interessante no Blog do professor Herman Silvani da AFWK (Associação Fluir Wing Tjun Kung Fu). O professor Herman é um autor de tom polêmico e politizado, seus textos demonstram densidade cultural e domínio de linguagem. Por isso mesmo, suas opiniões (expressas no Blog ou nas redes sociais) despertam as mais opostas reações. Estou entre aqueles que o admiram e que tendem a concordar com, pelo menos, uma boa parte das suas concepções e, particularmente, espero que ele possa escrever para nós, neste espaço, alguma contribuição sua.
Dito isso, gostaria de tratar de tema correlato ao que ele tratou na sua postagem, que, no caso, foi sobre as "linhagens" no universo das artes marciais chinesas. Seu artigo abordou dois lados da questão: o da linhagem como meio de preservação da herança cultural e o da linhagem como forma de controle político, de perpetuação de hierarquias e exclusões no mundo das artes marciais. O aspecto talvez mais polêmico do texto é que o peso da tinta ficou maior sobre este segundo lado da moeda: o político. É possível que muitos praticantes de artes tradicionais tenham se sentido incomodados com esta abordagem e, em alguma medida, desrespeitados, ainda que não me pareça ter sido essa a intenção do autor.
Não quero ficar preso ao tema das linhagens. Embora seja central, ela me parece ser um dos aspectos de um quadro mais amplo, que, sem medo do conceito, emprestado do finado historiador Eric Hobsbawm, eu chamaria de "invenção das tradições" (leia a introdução do livro, baixando-a aqui). Não sou o primeiro a utilizar o termo para falar das artes marciais e das suas práticas de memória. Este é o mesmíssimo enfoque teórico de uma excelente coletânea sobre artes marciais na contemporaneidade. Refiro-me a Martial Arts in the Modern World, organizada pelos pesquisadores Thomas A. Green e Joseph R. Svinth, e publicada na Inglaterra há 14 anos.
Bom, em primeiro lugar, o que são "tradições inventadas"? Para Hobsbawm, elas são práticas marcadas por simbolismos e ritualismos, normatizadas por regras explícitas ou tácitas, que, por meio de comportamentos repetitivos, visam instituir normas de conduta e valores que clamam por continuidade com o passado. Ele distingue "tradições intentadas" dos costumes ou os "velhos usos", como aparece na epígrafe deste texto. A "tradição inventada" faz sentido propriamente quando a vida dos velhos costumes está perdida ou ameaçada diante das transformações históricas. Nesse sentido, as "tradições inventadas" são NOVIDADES, que podem ou não buscar no passado referências para a sua construção. Diz o autor: "espera-se que ela [a 'tradição inventada'] ocorra com mais freqüência: quando uma transformação rápida da sociedade debilita ou destrói os padrões sociais para os quais as 'velhas' tradições foram feitas, produzindo novos padrões com os quais essas tradições são incompatíveis; quando as velhas tradições, juntamente com seus promotores e divulgadores institucionais, dão mostras de haver perdido grande parte da capacidade de adaptação e da flexibilidade; ou quando são eliminadas de outras formas."
No senso comum entre os artistas marciais, reconhece-se facilmente como "tradição inventada" os sistemas elaborados por "não-chineses" ou por "pretensos mestres" que, não sendo de linhagem pura, sintetizam o que se supõe por fragmentos ou rudimentos de algo "legítimo" com vistas a ter um "aspecto" (enganoso) de verdadeiro. Por outro lado, toma-se como natural que um conjunto de escolas sejam "legítimas" em virtude de suas purezas de linhagem, o que supostamente as preservariam de transformações ou perdas no tempo. Assumem-se como naturais a sua antiguidade, imutabilidade e autenticidade (geográfica, étnica, cultural). São aceitas como positividades históricas e não construções vivas de experiências e memórias. Não se percebe que, pelo contrário, é a mania de fixação e de inadaptação que constitui o limite entre uma tradição viva e uma tradição inventada. Pior, não se percebe que este culto à uma tradição inventada, a inconsciência de sua artificialidade e o apego aos seus ritualismos são, na verdade, epitáfios do destino trágico desta tradição.
É preciso ter clareza: querer reviver as artes marciais praticadas no passado (seja ele mais remoto ou mais próximo) é impossível. Mesmo que houvesse perfeita preservação técnica (o que é impossível, diga-se), haveria sempre a mudança nos sentidos desta arte, pois ela estaria inserida em outro contexto (cultural, social, político, militar, filosófico, educacional etc.). Assumindo que as artes chinesas de punho tenham uma história capaz de ser traçada da Dinastia Ming aos dias atuais (seguindo, aqui, as hipóteses de Meir Shahar); assumindo também que os registros históricos mais encorpados surgem sobretudo a partir do final da Dinastia Qing; finalmente, assumindo que a maior parte das escolas conhecidas e atuantes na contemporaneidade, quando sistematizadas, não foram antes das décadas de 30 ou 40 do século XX; levando isso tudo em conta e, ainda, o intenso processo de transformações políticas, econômicas, sociais e culturais da China e dos chineses espalhados em diversas partes do mundo desde meados do século passado até hoje, atingindo, inclusive o universo do wushu, não se pode tratar das "velhas tradições chinesas" com excesso de romantismo ou de idealidade ingênua.
É muito frequente, no Brasil, a idealização da China por meio de estereótipos e marcas de exotismo. A China habita muito mais a nossa fantasia do que o nosso repertório concreto de referências de mundo. Nos casos mais graves, tamanha ingenuidade (quando não ignorância) produz o fenômeno do "pastiche cultural", aquilo que mais comumente se reconhece como "invenções" em artes marciais chinesas: por exemplo, estilos supostamente chineses com nomes japoneses ou que misturam japonês, mandarim e cantonês tudo junto... Em nível "intermediário", produz as visões mais petrificadas de convenções, tais como a naturalização de que existem estilos propriamente "norte" e outros propriamente "sul" (como se fosse algo preto no branco...), ou, para além da técnica e indo para a dimensão cultural, a confusão ou associação muito direta entre valores confucionistas e a moralidade patriarcal cristã. Porém, em um nível mais sutil, a China imaginária também faz crer que, em algum lugar escondido, encontra-se uma substância chinesa puramente preservada, cujo acesso é para pouquíssimos eleitos e, menos ainda, no caso de ocidentais. É disso que gostaria de falar.
A promessa de acesso ao tesouro escondido de uma China primordial é o maior valor simbólico agregado à marca de uma "escola legítima". No mercado do exotismo, é um capital cobiçado. Para ter acesso a ele, pagam-se altos preços. E não me refiro apenas às altas mensalidades, anuidades ou tarifas. Refiro-me a cotidianos de humilhações, de adulações (sobre este tema, recomendo este texto do Blog de Eduardo Lara), de sujeição e de silenciamento, fantasiados por eufemismos ou máscaras transculturais, tais como fidelidade, filialidade, disciplina, mérito marcial e por aí vai... Não estou dizendo que é sempre assim ou tenha que ser assim. Nem que toda escola tradicional é um simulacro de relações cruas de poder. Se assim fosse, eu nem mesmo estaria escrevendo este texto, muito menos apostaria nas artes marciais como caminho de formação integral do ser humano. O que eu digo é que há um risco muito grande, ao se assumir uma postura acrítica diante do que se propõe como "tradição definitiva" ou "linhagem pura" de artes marciais: o risco de transformarmos a (suposta) autenticidade em um fetiche e de nos alienarmos diante dele. O risco de cairmos tragicamente numa "tradição inventada" enquanto buscamos fugir das "invenções". O risco de arruinar a vitalidade de uma tradição em movimento em nome da segurança prometida por hierarquias invioláveis. O risco de confundir instituições culturais com pessoas físicas ou jurídicas, tratando-as como propriedades de empresas. O risco de assumir como um axioma que tudo o que é "legítimo", por definição, presta e nada que esteja fora disso tenha qualquer validade.
Para concluir, gostaria de moderar o meu próprio discurso e fazer uma homenagem a todos os praticantes e mestres de escolas tradicionais. Especialmente aquelas escolas que surgiram como fruto da generosidade de mestres chineses. Desde os anos 1960 e 1970, elas vêm formando gerações de professores brasileiros compromissados com a manutenção de uma cultura viva e dinâmica. Não dirijo a minha crítica a estas escolas. Pelo contrário, elas merecem meu digno respeito, minha admiração e total agradecimento. Como tradições vivas, elas se adaptaram e vêm se adaptando à realidade nova e, ao mesmo tempo, têm compartilhado conosco uma rica herança cultural, com valor de uso enorme no presente. Minha crítica é aos "fundamentalistas", aos praticantes e professores arrogantes e preconceituosos que se julgam capazes de apontar o dedo para cada expressão marcial que não caiba em suas idéias pré-concebidas e, por outro lado, não são capazes de se colocar diante do espelho com alguma honestidade. Minha crítica é à mentalidade de franchising, que vem substituindo ou se mesclando à de "linhagem", numa lógica que transforma o outro em "ameaça" ou em "concorrência". Também é uma crítica à "eugenia marcial", a busca por uma raça ou sangue puros em artes marciais. Até porque a riqueza cultural, diria um Lévi-Strauss, está no contato e não no isolamento entre os povos.

sábado, 12 de agosto de 2017

"Isso não é Taijiquan!" - compreendendo a arte marcial sem limitações




Desta vez, nosso blog abre espaço a um convidado que é mais do que de casa. Fabrício Pinto Monteiro é uma das principais referências técnicas e teóricas da Federação Mineira de Kung Fu Kuoshu. Tem sido o responsável pela padronização do seu Sistema Básico de Graduação e pela continuidade da formação técnica dos nossos instrutores e professores, dentre os quais me incluo. O Fabrício possui uma vida (tão longa quanto alguém tão jovem permite dizer...) dedicada às artes marciais chinesas. Começou a praticar o Zhong Wudao na academia do Ms. Huang Yu Sheng há mais de 20 anos. Hoje, como aluno do professor Niltoamar, importante referência em Uberlândia-MG, formou-se em algumas escolas: o próprio Zhong Wudao, o Nanbei Wudao (compilação de alguns estilos realizada pelo professor Niltomar e articulados conforme a sua leitura de arte marcial), o Wushu Moderno do Ms. Huang Hsiao Po e, atualmente, dedica-se à escola de Neijiaquan do Ms. Wu Tan Xien, de Hong Kong, representada, no Brasil, pelos seus dois filhos: Wu Tan Qing e Wu Tan Ming. Fabrício é também historiador de formação e professor na educação básica. Publicou já vários artigos e livros, sendo alguns deles sobre aspectos da história social do Kung Fu. Destaca-se, entre eles, "História das Artes Marciais Chinesas: Tradição, Memórias e Modernidade", no qual ele apresenta, após densa introdução ao desenvolvimento do kung fu na China, a proposta de Zhong Wudao do Ms. Lin Zhong Yuan, de Taiwan. Para finalizar, é preciso dizer que o Fabrício, além de um excelente amigo, é um parceiro sem o qual nosso programa e nossos projetos não existiriam. Sua interlocução, apoio e trabalho são indispensáveis para nós, de modo que não há agradecimento que seja suficiente no caso dele. Ainda assim, muitíssimo obrigado, Fabrício!

Vamos ao Texto!


"Isso não é Taijiquan!" - compreendendo a arte marcial sem limitações

Por Fabrício Pinto Monteiro


O tema deste texto não é exatamente novo, mas considero que sua discussão é interessante para que estudantes que estão começando sua prática nas artes marciais possam, desde o início, refletir sobre sua relação com as mesmas. Pensá-las um pouquinho além da atividade esportiva, por exemplo, e vivenciá-las como um Caminho mais amplo para suas vidas.

Para começar, deem uma olhada no vídeo abaixo:




Este é Nick Osipiczak, um lutador profissional britânico, praticante e professor de Taijiquan, Yoga e Qigong, que estuda as artes marciais internas para uso, entre outros focos, no MMA.

Não se preocupem! Não falaremos do desgastado assunto “Taijiquan funciona mesmo como arte marcial?”, ou ainda, “as artes marciais tradicionais são páreo para o MMA?”. A discussão aqui é outra e provém das impressões de várias pessoas ao assistirem um vídeo como o de Osipiczak, em que um lutador apresenta-se de forma explícita como praticamente de determinado estilo ou escola em um contexto esportivo de artes marciais mistas.

Em muitos comentários vemos afirmações como “Ah! Isso que ele está fazendo não é técnica de Taijiquan!”, ou, “Esse golpe é do boxe, aquele é do Jiu-jitsu, o seguinte é do karate etc.” Alguns chegam a clamar por um "Chicote Simples" ou um "Repelir o Macaco" e defensores da arte passam a jurar que viram uma "Agulha no fundo do Mar" aos 2:47…

NOTA: Chicote Simples (单鞭, danbian), repelir o macaco (倒撵猴, daonianhou)
e agulha no fundo do mar (海底针, haidizhensão exemplos de técnicas presentes na
Forma Longa estabelecida pelo Ms. Yang Chengfu na nomenclatura
pela qual são conhecidas em português no Brasil.

Tudo bem, mas será que cada arte marcial define-se por uma lista de técnicas que lhe são tradicionais? Existe uma geopolítica das lutas, em que o cruzamento de uma suposta fronteira é considerado uma afronta aos domínios de certa escola? E mais: desconsiderando o egoísmo infantil de alguns estudantes e professores que defendem que aquele chute bonito é propriedade de sua escola, nós mesmos às vezes não nos auto-limitamos? Não colocamos barreiras às nossas próprias artes quando, com certa surpresa ao perceber que em certo treino com um colega “saiu” uma técnica típica de outro estilo, nos policiamos para nos ater aos movimentos “originais” de nossa arte marcial?

Nick Osipiczak parece ter uma consciência muito clara de “onde está” seu Taijiquan no UFC, e ele a ensina de maneira bem direta em vários de seus vídeos e entrevistas. Como uma arte interna, o Taijiquan não se define por seus movimentos externos. É meio lógico, não? O Taijiquan (e, na verdade, qualquer outra arte marcial) não nos ensina simplesmente golpes fixos; ele não deve nos limitar, pelo contrário, deve expandir nossa consciência corporal e mental em direção a uma movimentação livre e natural. As artes marciais ensinam a nos movimentar, apenas isso. E esse “apenas” não é pouca coisa, certo? Movimentar-nos de forma mais eficiente, econômica, harmônica, flexível… Movimentos, de preferência, que gerem energia e aproveitem a que está ao nosso redor; não que consumam nossa própria energia até o esgotamento. Sendo um pouquinho mais profundo, as artes marciais nos ensinam como nos relacionar – nos mover, física e mentalmente - com tudo o que está ao nosso redor, tendo em vista essa harmonia e essa criação de energia. Tendo consciência desse ensinamento das artes marciais, começamos a escapar de sua vivência apenas como um esporte (o que continua sendo um aspecto válido e útil) e nos abrimos para experienciá-las como Caminho, como um todo em nossa vida.

“Tá”, você me responde, “mas que aquele gancho é do boxe, é!”. Tudo bem, você está certo. Chegamos aí em um outro aspecto importante das artes marciais: elas são históricas. A luta, a guerra como um todo são elementos humanos e históricos. Por mais que a propaganda do UFC afirme que o octógono é o “ambiente definitivo” de contenda entre dois homens ou mulheres, o cara-a-cara mais cru possível para testar a eficiência objetiva das técnicas de cada um, sabemos que isso é um exagero.

Em cada época e ambiente social, luta-se de acordo com formas aceitas e criadas por determinadas culturas. Não é difícil perceber como os atletas de lutas mistas lutavam de modos diferentes há 20, 40 e 100 anos, por exemplo. Cada cultura, nesse caso específico, temporalmente falando, possui um jeito “certo” e “eficiente” de lutar para aquele determinado grupo social. Claro que aproveita-se a experiência do passado, mas não há uma linearidade rumo ao “sistema perfeito” como muitos propagandeiam – senão, depois de milhares de anos de guerras, a humanidade já deveria ter chegado na arte marcial perfeita, não é?, uma arte que inexoravelmente venceria todas as outras.

Desde o século XIX, as nações ocidentais – e depois as orientais, desde os processos de domínio, colonização e influências culturais – tiveram alguns paradigmas fortes sendo construídos como parte da estética, da ética e da técnica consideradas “belas” e “boas” para as lutas de mãos vazias. Paradigmas que envolveram o boxe inglês, a luta romana e a esgrima francesa, sobretudo. Não vou usar a palavra “contaminar”, pois ela conota algo negativo e não se trata necessariamente de julgar isso como algo mal, mas essa cultura influenciou e influencia de várias maneiras diferentes nosso modo de lutar, independente da arte marcial praticada.

Uma luta é um diálogo, como se diz na capoeira, mas só existem respostas para as perguntas quando minimamente se fala uma língua parecida. Deve-se considerar a Huka-huka tradicional menos eficiente que o jiu-jitsu ao pegarmos um indígena do Mato Grosso e ele perder uma luta em um tatame? Acho que não. Lembram que o Anderson Silva tentou isso (ver o vídeo abaixo) e se deu mal enquanto as regras eram dos indígenas… mas, milagrosamente seu grappling voltou a ganhar eficiência logo que as regras mudaram para as dele…

NOTA: Huka-huka é uma arte marcial de algumas etnias indígenas do Mato Grosso, especialmente nas áreas
do Xingu e dos Bakairi. Trata-se de uma luta com forte conotação ritual, estando associada ao culto dos
ancestrais, na "festa" do Quarup, em reverência ao herói Mawutzinin. Atualmente, a modalidade
vem ganhando popularidade como uma arte marcial de caráter étnico e está inserida, assim como a
Capoeira e a luta Marajoara, em currículos de Educação Física na Educação Básica do Brasil.
O vídeo é uma clara peça publicitária para vender suco de açaí, fruta associada à região amazônica.




Voltemos agora a Nick Osipiczak e o taijiquan.

Há uma cultura, uma linguagem muito particular nas lutas de MMA e no UFC, traduzida em proibições e permissões de movimentos, duração dos combates, o que é considerado “vitória”, o papel da plateia, da mídia e patrocinadores no combate, a área onde a luta ocorre, o que se considera fairplay ou não e, sobretudo, as motivações de cada um estar ali. Se você não participar dessa cultura, não há luta: seja porque um deles será “derrotado” de forma rápida e estrondosa, seja porque um deles sequer estará lá.

O que o professor Osipiczak nos ensina é que o Taijiquan enquanto arte marcial consegue, se este for o desejo, participar desse diálogo. Seus princípios internos podem se manifestar externamente em palavras, quero dizer, em técnicas, em movimentos, que os demais envolvidos no MMA entendem. Ganchos, uppercuts, armlocks e tal carregam em seu interior projeções de energia, enraizamento, centros de equilíbrio, trabalho de respiração, desvios e redirecionamento de força, trabalhos de pernas e bases caríssimos ao Taijiquan. Mesmo não sendo fã dele, ou do UFC, recomendo voltarem depois a seu canal no Youtube, “Raised Spirit”, e conhecerem alguns dos vídeos instrucionais, bem como em seu website.

Você pode não gostar de suas lições ou considerar que suas pesquisas não estão sendo pertinentes ao Taijiquan ou ao MMA, mas é uma experiência muito válida que está compartilhando conosco.

Ah… e antes de terminar, um bônus para outra discussão: o Taijiquan de Nick Osipiczak é de estilo Yang, quando nos últimos anos estamos (mal) acostumados a pensar diretamente no Taijiquan Chen ao nos referirmos aos aspectos marciais dessa arte...

terça-feira, 8 de agosto de 2017

Professor de artes marciais é mesmo professor?

Professor de artes marciais é mesmo professor? Você já se perguntou sobre isso? E já se questionou sobre os motivos desta dúvida? Neste texto, tentaremos problematizar um pouco a respeito deste tema.

Primeira aula (no início de 2016) ministrada para o Projeto de Tupaciguara, na Escola Estadual Sebastião Dias Ferraz.

A última postagem neste blog, de Jerônimo Marana, foi um sucesso de público. Seus acessos foram dez vezes mais numerosos do que a média dos textos publicados neste espaço. Segundo o autor, o número chegou a ser também mais expressivo do que aqueles dos textos presentes no seu próprio blog. O tema talvez ajude a explicar a razão do sucesso. Ao abordar uma questão didática, ele traz à tona uma velha polêmica: quem ensina artes marciais é professor? Se é, precisa de ter formação adequada?

Do ponto de vista jurídico, a questão está vencida. São águas passadas. Desde 2010, uma decisão do Tribunal de Justiça de São Paulo, motivada por ação de aikidocas contra o Conselho Regional de Educação Física (CREF) daquele estado, definiu a inconstitucionalidade e a ilegalidade do CREF querer fiscalizar ou cobrar qualquer tipo de taxa de instituições ou pessoas que ensinam artes marciais em geral e Aikido em particular. Isso porque houve o entendimento de que a educação corporal não é a atividade fim nem das artes marciais, nem da dança, nem do Yoga. Assim, elas extrapolariam os limites da Educação Física propriamente dita e dos objetos que compõem atividades exclusivas de seus profissionais.

Um efeito da decisão jurídica é que, para dar aulas de artes marciais, o sujeito não depende de qualquer formação específica. Na verdade, não depende de qualquer formação superior. Em tese, qualquer um pode ser professor ou instrutor de artes marciais no Brasil. Não há qualquer controle estatal sobre isso. Há apenas o controle de federações e/ou associações que, reconhecidas civilmente, habilitam instrutores e professores oficiais. Para isso, cada uma define os seus critérios e eles, não necessariamente, apresentam preocupações com a dimensão pedagógica da formação.

Porém, o fato jurídico de os professores de artes marciais não serem professores não resolve a questão, que não é legal, mas pedagógica e cultural. Para entender melhor a questão, é preciso aprimorar o nosso conceito do que seja um "professor", abstraindo a sua dimensão meramente escolar. Hoje em dia, os "espaços educacionais" não são compreendidos como sinônimos de "espaços escolares". Há também os espaços não-formais, em que ocorrem processos organizados de ensino-aprendizagem complementares ao sistema formal. Os espaços de prática e aprendizado de artes marciais são perfeitamente compatíveis com o moderno conceito de espaço educacional não-formal. Seus objetivos abrangem elementos típicos destes espaços, tais como o desenvolvimento de uma postura ética e cidadã, a fruição cultural e mesmo a profissionalização. Nesse sentido, sim, o professor de artes marciais é um professor, entendido como um "educador" inserido em espaço não-formal.

Daí advém um enorme complicador. Se os ambientes da educação formal são complexos e diversos, se a formação dos profissionais da educação, de modo geral, já é muito variável; no caso dos espaços não-formais, o que se tem é um universo ainda menos regulado. Se, por um lado, isso é ótimo, por conta da liberdade e da diversidade de expressões possíveis de encontrar; por outro, apresenta perigos muito grandes, pois não permite qualquer controle sobre as eventuais distorções e enganações que se alojam no interior deste mercado.

O perfil dos professores de artes marciais é muito variável. Traçar tipologias envolve riscos de simplificações e reprodução de estereótipos. Porém, é muito claro que um grande número de professores de artes marciais não tem nem mesmo consciência do que significa ser professor. Muitos nem mesmo se reconhecem neste lugar. Outros, no extremo oposto, supervalorizam a própria condição e querem se portar como "pais" ou "gurus" de seus alunos, inspirados por alguma fantasia presunçosa herdada de filmes e do imaginário de senso comum. Alguns vivem economicamente de dar aulas de artes marciais; outros o fazem em paralelo com outras profissões, muitas vezes sem nenhuma conexão com o magistério. Alguns têm formação superior; outros, não. Uma parcela tem escolaridade inclusive muito baixa e seus conhecimentos para dar aula são praticamente limitados ao conhecimento técnico de sua arte.

O resultado disso é que uma quantidade muito expressiva de professores amadores mal instrumentalizados, dependentes da sua própria sensibilidade, orientados (quando muito) por quem também não tem conhecimentos específicos nesta área e, por conseguinte, arraigados a processos educacionais tradicionais sobre os quais eles não conseguem refletir, mas apenas reproduzir sem qualquer criticidade ou inventividade. Tais professores sofrem de um mal terrível: o da confusão entre o que deve ser aprendido e como se deve aprender. Há bons estudos a respeito do assunto. No caso do wushu ou das artes marciais chinesas, sugiro o artigo de Marcelo Moreira Antunes e Diego Luz Moura, publicado em 2010 (baixar). Neste artigo, os autores identificam uma tendência dos professores de wushu formados em Educação Física terem estilos educacionais mais abertos e conscientes do que os professores sem esta formação. O artigo não aborda os casos de professores de artes marciais com formação em outras licenciaturas, no entanto.

Por outro lado, a tentativa da Educação Física apropriar-se das artes marciais como área exclusivamente sua também descamba em muitos problemas. Dados de um artigo recente sobre uso escolar de wushu no Brasil, mostram o quanto é importante a formação e a prática específica de uma arte marcial para que ela seja efetivamente trazida pelo professor de Educação Física à escola com a finalidade de desenvolver aspectos motores, cognitivos e socioafetivos nos estudantes (baixar). Ou seja, se a formação pedagógica é importante, a prática específica da arte marcial também é.

Ademais, quando se analisam os documentos oficiais de Educação Física (fiz, no caso, um exercício com a segunda versão da proposta de Educação Física na BNCC), é possível perceber o quanto a concepção sobre as artes marciais chinesas (especialmente) é limitada. Ainda que o documento parta de uma concepção inovadora de práticas corporais como patrimônio cultural, a tipologia que diferencia lutas de artes marciais ou de ginásticas, por exemplo, é absolutamente inoperante para o universo das artes marciais asiáticas em geral e, ainda mais, para o das chinesas. Ainda que a Educação Física tenha contribuições riquíssimas para o desenvolvimento do ensino de artes marciais (provavelmente as mais ricas contribuições), ela não se basta como área capaz de abarcar a formação deste professor em específico.

Ainda estamos muito longe, no Brasil, de termos uma formação pedagógica específica para professores de artes marciais e, talvez, criar algo assim nem seja a melhor das saídas. Por hora, o melhor parece ser o investimento na qualificação das formações de instrutores e professores no interior de associações, federações e confederações, aproximando-as de instituições de ensino, especialmente as instituições superiores que formam professores (de diversas áreas). Este é um dos objetivos mais centrais dos nossos projetos e envolve investigações sobre perspectivas de formação. Quando trazemos isso para a vizinhança das humanidades, queremos reconhecer o professor de artes marciais também como agente promotor de sensibilidades com o tempo, o espaço e as práticas sociais; difusor de culturas e do patrimônio cultural; formador de perspectivas éticas e cidadãs; facilitador de diálogos interculturais; conscientizador das responsabilidades dos sujeitos consigo mesmos e com a coletividade. Isso é possível e viável no âmbito da própria formação não-formal, em interlocução com os sistemas formais de ensino.

Por último, gostaria de abordar mais um aspecto da questão. Muitos professores de artes marciais, graças a ambiguidades do próprio meio marcial, confundem atingir altos graus de conhecimento e desenvolvimento técnico com a obtenção da função social de "professor". Há um senso comum de que faixa preta e professor são termos sinônimos... Este é um dos principais mecanismos de reprodução de práticas inadequadas de ensino no meio marcial. Um dos seus efeitos é uma espécie de "obrigação moral" de ensinar sentida pelo praticante graduado. É preciso ter clareza de que um praticante avançado de artes marciais não precisa se tornar um professor. Professor não é nível técnico, mas uma função social, quando não uma profissão. Requer vocação, formação pedagógica e sensibilidades específicas. O nível técnico deve ser um pré-requisito para alguém se tornar professor de artes marciais, mas não se pode confundir as duas coisas como se fossem uma só. O melhor professor não necessariamente é o melhor artista marcial. E o melhor artista marcial não necessariamente será o melhor professor.

Se você é professor de artes marciais pergunte-se sempre o que você precisa para se tornar cada vez melhor como professor. Se você aspira ser um dia professor de artes marciais, sempre indague-se a respeito de suas reais motivações. Se vai ensinar, tenha consciência de que você será um professor. Tenha consciência de que, para isso, não bastam as suas opiniões e impressões, que há como melhorar a sua formação, desenvolver instrumentos, melhorar seus métodos. Tenhamos sempre a humildade de nos reconhecermos como sujeitos em contínua formação e não tenhamos medo de nos depararmos volta e meia com os nossos limites. Eles são nossos, são parte da gente e podem ser alargados até o último momento de nossas vidas.

domingo, 6 de agosto de 2017

O que fazer quando um aluno questiona uma técnica?


Nosso blog, hoje, abre espaço para a colaboração do excelente educador em artes marciais, Jerônimo Marana. Jerônimo é educador físico pela Unicamp e possui formação em diversas artes marciais, especialmente o Hapkido, o Shaolin do Norte e o Yiquan. Mantém um dos mais interessantes blogs sobre o tema na Internet brasileira, que inclui um canal no Youtube. Ele também é colaborador do portal Wuxia, site especializado em artes marciais chinesas. É professor na Academia Trajano Center, em Valinhos-SP. Nós, do projeto "Caminhos Marciais, Humanidades e Educação Integral", temos muito orgulho de recebê-lo por aqui e de tê-lo como interlocutor. Convidamos todos a conhecer melhor as ideias deste professor, que quebra paradigmas engessados e propõe um olhar atual e sério sobre as artes marciais tradicionais, explorando a sua enorme riqueza para o desenvolvimento humano.
Vamos ao texto!

O que fazer quando um aluno questiona uma técnica?

Por Jerônimo Marana

Existe uma situação muito frequente nas aulas de artes marciais, que acontece quando o aluno questiona uma técnica. Eu já presenciei diversas situações como essa e embora seja muito simples de lidar, infelizmente muitos professores fazem isso da maneira errada.


Erros que os professores cometem quando o aluno questiona uma técnica

Muitas vezes, ao aprender uma técnica, o aluno pergunta: "mas professor e se o cara fizer isso?". Então ele faz alguma coisa que impede o professor ou companheiro de aplicar a técnica. Não há professor que não passe por isso ou que não tenha passado e se não passou, ainda vai passar. Então o professor, sabendo de antemão o movimento do aluno, recorre a uma maneira arcaica de calar o aluno. A tática é assim que o aluno impedir a aplicação do golpe, dar uma pancadinha em algum lugar para distrai-lo. Então, o professor aplica a técnica com força para subjugar o aluno, dizendo que o agressor nunca sabe o que você vai fazer, pois a técnica é elemento surpresa.
Acontece que o aluno está em desvantagem, pois o professor já sabe o movimento do aluno, que por sua vez não sabe qual vai ser o movimento do professor. Existem "professores" que orientam os seus subordinados, seus instrutores, a recorrer a essa prática quando o aluno questiona uma técnica. Eles dizem que é preciso fazer a técnica funcionar, não importa como, porque o professor não pode deixar dúvida para o aluno.
Outro erro é dizer o que ou quanto o aluno é ou não capaz de aprender. Há mais ou menos um ano atrás, eu assisti um vídeo que me deu a ideia de falar sobre esse assunto. O professor ensinava uma técnica muito simples. Em um momento ele disse que muitos alunos fazem aquela mesma pergunta do início do artigo. Então ele disse que ensinaria apenas uma técnica, porque senão seria muita coisa e o público não iria conseguir aprender. Isso ilustra bem alguns erros cometidos frequentemente por muitos professores.

Dois paradigmas que precisam ser quebrados

Existe nisso um paradigma que precisa ser quebrado, que é achar que é preciso dominar uma técnica antes de aprender outra. Eu já desmenti essa crença em um dos primeiros vídeos do meu canal, que você pode assistir abaixo. Nele eu explico que é muito mais fácil dominar uma técnica se você aprender outras.

O segundo é achar que um aluno não é capaz de aprender alguma coisa, pelo motivo que for. Professores dizem que os alunos devem aprender apenas uma técnica por vez, caso contrário, é muita coisa de uma vez só. É muita informação e por isso o aluno não vai conseguir assimilar. Ou então porque a técnica em questão é mais simples e o que o aluno quer aprender é mais difícil. Eu tenho que ser crítico nesse aspecto e perguntar qual é a base para dizer o quanto ou o que alguém é ou não é capaz de aprender. Só diz isso quem não entende o processo de aprendizado. Se alguém não consegue aprender, é porque alguém não é capaz de ensinar.

O que pode acontecer quando o aluno questiona uma técnica

Quando o professor diz que o aluno não vai conseguir aprender, duas coisas podem acontecer. A primeira é perder sua confiança, o que é justo, pois é ruim para o próprio professor. A segunda é levá-lo a criar uma autoimagem de alguém dependente do professor, que nunca conseguirá ultrapassá-lo e nem mesmo igualar-se a ele. O próprio aluno passa a duvidar da sua capacidade e aceitar que outra pessoa defina o que ele/ela é ou não capaz de fazer.
É preciso entender que o que é difícil para um nem sempre é difícil para outro. As pessoas tem dificuldades e facilidades diferentes por causa da sua história de vida e das suas experiências motoras. O caminho que o professor percorreu não é igual ao de nenhum aluno, cada um tem as suas particularidades. Ninguém começa na arte marcial ou em qualquer outra atividade com as mesmas habilidades. É preciso explorar as potencialidades e habilidades de cada um para ensinar a partir daquilo que lhes é mais fácil. E o que é mais fácil para o aluno nem sempre é aquilo que o professor considera mais fácil. Da mesma forma o que é mais fácil para um aluno, nem sempre é mais fácil para outro.

O que fazer quando o aluno questiona uma técnica

O terceiro erro é não levar em consideração as ideias do aluno, pois elas podem ter um valor imenso. Quando o aluno questiona uma técnica é importante demonstrar e convidar a experimentar. O que o aluno pergunta tem significado para ele e por isso pode ser mais fácil ensinar a partir daquilo. Nós professores precisamos estar preparados para redirecionar a aula e ensinar a partir daquilo que os alunos trazem. Muitas vezes isso pode ser necessário e às vezes funciona melhor do que o que foi planejado, afinal nem sempre o que planejamos dá certo ou é o melhor caminho. É preciso ter sensibilidade para mudar de acordo com o que o momento exige.


Se não for possível trabalhar com a questão naquele momento, é preciso primeiro demonstrar interesse por ela. É preciso comentar a respeito e demonstrar algum exemplo. Só depois se deve dizer que naquele momento aquela questão não será aprofundada porque será feita outra coisa. Então, assim que possível ela deverá ser trazida de volta. Se não for possível naquela aula, é preciso planejar para abordá-la em outra. Se não tiver uma resposta imediatamente, é preciso dizer que vai pensar e tentar responder em outro momento. Ou, melhor ainda, convidar os alunos para tentar descobrir uma resposta juntos.
Quando o aluno questiona uma técnica é muito fácil lidar com a situação, se houver conhecimento e boa didática. O que não se deve fazer em hipótese alguma é fazer o aluno se sentir ignorado. O aluno deve sentir que as suas ideias tem importância, mesmo que não funcionem. É preciso colocá-las para serem estudadas, mesmo quando sabemos que não dá certo. Essa é a melhor forma de ensinar. Mas infelizmente o professor comum dirá que aquilo é difícil para o aluno ou que é muita informação de uma vez.

terça-feira, 1 de agosto de 2017

Reaprender as artes de viver.


Hoje, pretendo sair um pouco do tema mais específico das artes marciais para falar um pouco mais dos papéis da educação integral no mundo contemporâneo e sobre a urgência de modelos alternativos à educação para o trabalho e para o consumo.


Em um famoso texto no meio acadêmico, o historiador marxista britânico Edward Palmer Thompson expôs sua tese sobre os efeitos subjetivos de uma nova concepção de tempo, que surgiu em conjunto com o desenvolvimento da tecnologia do relógio, em compasso com as demandas de exploração do trabalho na época do Capitalismo Industrial. Em contraste com outras sociedades e culturas "rurais" ou "pré-industriais" - nas quais os ritmos de trabalho obedecem ciclos irregulares e intermitentes, oscilando momentos de intensa atividade com hiatos de "ociosidade" -, as sociedades urbanas do capitalismo industrial desenvolveram um ritmo regular da produção e, com ele, uma disciplina do trabalhador, organizada conforme uma economia do tempo. Semelhante reflexão é possível quando assistimos ao filme Tempos Modernos, do genial Charles Chaplin, uma sátira tragicômica do fordismo, vivida por personagens marginalizados dos grandes centros urbanos.

Voltando a Thompson, ao final de seu texto, nos deparamos com trechos em que o autor ensaia algumas possibilidades de transformação da experiência do tempo na medida em que haja maior automatização da produção industrial. É interessante lermos este texto na atualidade, aproximadamente 50 anos depois que foram escritos e publicados pela primeira vez, na revista Past and Present. Podemos, hoje, testar as suas hipóteses de futurologia e refletir até que ponto elas ajudam a compreender o mundo atual. Escreve:

"Se vamos ter mais tempo de lazer no futuro automatizado, o problema não é 'como as pessoas vão conseguir consumir todas essas unidades adicionais de tempo de lazer?', mas 'que capacidade para a experiência terão as pessoas com este tempo livre?'. Se mantemos uma avaliação de tempo puritana, uma avaliação de mercadoria, a questão é como empregar esse tempo, ou como será aproveitado pelas indústrias de entretenimento. Mas se a notação útil do tempo se torna menos compulsiva, as pessoas talvez tenham de reaprender algumas das artes de viver que foram perdidas na Revolução Industrial: como preencher os interstícios de seu dia com relações sociais e pessoais mais enriquecedoras e descompromissadas; como derrubar mais uma vez as barreiras entre o trabalho e a vida." (THOMPSON, E. P. Tempo, disciplina de trabalho e capitalismo industrial. In: Costumes em comum, São Paulo: Editora Schwarcz, 1998. p. 302.)
O "futuro automatizado" a que se refere o autor já chegou. Ele é o nosso tempo presente. Em comparação com 50 ou 100 anos atrás, os processos de produção industrial do mundo capitalista tornaram-se muito mais instrumentalizados pela tecnologia. Computadores sofisticados e robôs ultra precisos fazem trabalhos que outrora ou eram realizados por homens, mulheres e crianças ou simplesmente não eram sequer possíveis. Mesmo a nossa agropecuária exige muito menos mão de obra humana ou tração animal. As máquinas são como as antigas ovelhas do século XVI e, nas últimas três ou quatro décadas, se levarmos em conta a realidade brasileira, vivemos uma verdadeira inversão demográfica, com o esvaziamento do campo e a superlotação das grandes cidades. Homens de negócio fecham transações à distância, por meio de ligações e videoconferências, formalizam contratos com assinatura digital... Entretanto, apesar dos grandes índices globais de desemprego e nunca antes a humanidade demandar tão pouco trabalho humano, vivemos a sensação de que estamos sempre ocupados.

Nossa vida privada também vivencia os "benefícios" da automatização. Os computadores pessoais e os atuais celulares poupam-nos até mesmo de enfrentarmos filas de bancos e, até mesmo, irmos pessoalmente fazer compras de supermercado. Nossas roupas são lavadas por máquinas, bem como a nossa louça... Até para fazer a barba utilizamos energia elétrica. Temos freezers que não acumulam gelo (alguns mais jovens nem sabem do que estou falando...)... Carregamos dezenas de ferramentas em nossos bolsos, confinadas em um microchip. Se no trabalho doméstico e na vida profissional estamos tão assistidos de instrumentos que nos poupam tempo, por que não temos tempo livre? Será que não temos mesmo ou não sabemos o que ele é, nem como pode ser verdadeiramente utilizado?

O tempo livre que nós temos nós o consumimos. São tantas as opções de lazer quanto de pequenas tarefas que achamos disponíveis para nós no mercado de entretenimento. Algumas chegam a se mesclar de tal forma em nosso "tempo útil" que mal notamos o quanto elas são distrações. Jogos, redes sociais, compras, viagens de turismo, imagens, séries, filmes... Não há quem não gaste horas por dia com atividades distrativas sem nem notar. Entre elas, podemos inserir algumas tarefas que são quase "trabalho" ou uma nova forma de trabalho que concorre com a profissão e as tarefas domésticas: o suposto "cuidado de si", que não passa, na maioria dos casos, de um cuidado contra o envelhecimento, para uma estética específica e uma concepção fantasiosa de saúde e bem estar. Nesta modalidade de trabalho, temos as academias, as corridas, as caminhadas, os salões, as consultas médicas, as terapias... Até mesmo as artes marciais e, quiçá, as religiões... Nos ocupamos tanto com estas "obrigações" em nossa rotina, nos devotamos tanta energia e tanto tempo a elas como se elas fossem parte do nosso tempo útil.

Quanto à família, nossas relações interpessoais mais difíceis de contornar, bem... esta, como dá "trabalho"! Filhos? Muito trabalho. Idosos para cuidar? Muito trabalho! Assim como em nossa profissão esperamos pela aposentadoria, na vida familiar, esperamos pelo momento em que nos tornaremos avós... Parece que só lá poderemos ter tempo para "curtir", tempo para "nós mesmos"... Pura ilusão. Primeiro, porque a velhice também dá trabalho, até porque a fragilidade natural do corpo, com o tempo, vai nos demandando mais e mais esforço para aquelas mesmas tarefas que realizávamos sem maiores dificuldades enquanto jovens. Segundo, porque depois de décadas não nos dando tempo para nós mesmos, quando chegamos na velhice, acabamos vítimas da depressão e da falta de sentido na vida.

Por falar em velhice, ela é mais um fator que nos tem dado mais tempo na vida. O avanço da medicina e das condições de prevenção a doenças contagiosas, desde a Revolução Industrial, colocou o mundo, em média, numa condição ímpar: nunca mais vivemos declínio demográfico, só aumento! A expectativa de vida também cresce nos meios urbanos, especialmente para as classes altas e médias, mas também para os mais pobres. A química nos trouxe "soluções" para diversos problemas que nos tomavam "tempo de vida" ou "tempo para curtir a vida": pressão alta, colesterol, impotência, depressão... Para tudo isso existe algum tipo de comprimido! Com algum investimento, a medicina deu para as mulheres meios até de contornarem alguns efeitos da menopausa, como é o caso da reposição hormonal. Rugas, queda de cabelo? Quando não há cremes, há próteses, implantes, cirurgias... É verdade: temos mais tempo de vida e de juventude, se quisermos, mas ter isso também demanda um certo trabalho e, necessariamente, consumo! E para podermos consumir: trabalho!

Daí, pergunto, será que temos, como aparece no texto de Thompson, sabido preencher os interstícios de nossos dias de trabalho, o nosso "tempo livre" com relações mais enriquecedoras e descompromissadas? Será que estamos vivendo o nosso tempo conosco mesmos e com os outros? Quando digo "nós mesmos", não penso em nossos personagens sociais e nas nossas máscaras. Penso nos seres frágeis, carentes, perecíveis e desejantes que vivem sufocados em nossas carcaças. Quando digo "os outros", não penso em avatares de redes sociais, nem em amizades de conveniência, nem em parentes que visitamos protocolarmente, nem naqueles sujeitos que, vivendo sob o mesmo telhado "conosco", insistem em ser algo que nós não queremos... Penso no outro como seres dignos em si mesmos, ricos em sentimentos, expressões e beleza própria, com os quais podemos trocar nossas angústias e alegrias; nossos sucessos e frustrações.

Poster do filme (musical) The Wall, de 1982, que representa
o sistema educacional (do século XX) como uma máquina de moer carne.

Vivemos uma época perigosa para a educação. Mais e mais nossos sistemas de ensino focalizam a "vida" como se ela fosse um objeto a ser consumido. A ideia (ideologia) do "projeto de vida", muitas vezes vendida como proposta de educação integral, é um eufemismo para educação para o trabalho no mundo contemporâneo. Ou melhor, trabalhos, pois hoje eles não se restringem à profissão e às tarefas domésticas. Envolvem uma verdadeira tecnologia de "gestão de si mesmo". Ela prepara para o "mundo", mas entendendo o mundo como uma realidade concreta sobre a qual é possível realizar, por meio de planejamentos e esforço, as fantasias do consumo. Prepara ela para o nosso encontro inevitável um dia para a morte? Prepara-nos para as frustrações e os "nãos" que este mesmo mundo volta e meia nos oferece? Prepara-nos para nos conhecermos profundamente, para distinguirmos nossos desejos mais verdadeiros dos estímulos do marketing? Prepara-nos para o encontro realmente respeitoso e aberto com a alteridade? Prepara-nos para desenvolvermos sentimentos e ações altruístas? Se for possível pelo menos um "meio sim" para cada uma destas perguntas, eu abandono estes meus projetos e vou apoiar o modelo de educação que nós temos aí. Mas se as respostas forem desoladoras, como suponho que sejam, buscar alternativas é urgente. Precisamos de uma educação que nos faça reaprender as artes de viver. Mas não se engane, pois há quem venda "isso" também...