sábado, 12 de agosto de 2017

"Isso não é Taijiquan!" - compreendendo a arte marcial sem limitações




Desta vez, nosso blog abre espaço a um convidado que é mais do que de casa. Fabrício Pinto Monteiro é uma das principais referências técnicas e teóricas da Federação Mineira de Kung Fu Kuoshu. Tem sido o responsável pela padronização do seu Sistema Básico de Graduação e pela continuidade da formação técnica dos nossos instrutores e professores, dentre os quais me incluo. O Fabrício possui uma vida (tão longa quanto alguém tão jovem permite dizer...) dedicada às artes marciais chinesas. Começou a praticar o Zhong Wudao na academia do Ms. Huang Yu Sheng há mais de 20 anos. Hoje, como aluno do professor Niltoamar, importante referência em Uberlândia-MG, formou-se em algumas escolas: o próprio Zhong Wudao, o Nanbei Wudao (compilação de alguns estilos realizada pelo professor Niltomar e articulados conforme a sua leitura de arte marcial), o Wushu Moderno do Ms. Huang Hsiao Po e, atualmente, dedica-se à escola de Neijiaquan do Ms. Wu Tan Xien, de Hong Kong, representada, no Brasil, pelos seus dois filhos: Wu Tan Qing e Wu Tan Ming. Fabrício é também historiador de formação e professor na educação básica. Publicou já vários artigos e livros, sendo alguns deles sobre aspectos da história social do Kung Fu. Destaca-se, entre eles, "História das Artes Marciais Chinesas: Tradição, Memórias e Modernidade", no qual ele apresenta, após densa introdução ao desenvolvimento do kung fu na China, a proposta de Zhong Wudao do Ms. Lin Zhong Yuan, de Taiwan. Para finalizar, é preciso dizer que o Fabrício, além de um excelente amigo, é um parceiro sem o qual nosso programa e nossos projetos não existiriam. Sua interlocução, apoio e trabalho são indispensáveis para nós, de modo que não há agradecimento que seja suficiente no caso dele. Ainda assim, muitíssimo obrigado, Fabrício!

Vamos ao Texto!


"Isso não é Taijiquan!" - compreendendo a arte marcial sem limitações

Por Fabrício Pinto Monteiro


O tema deste texto não é exatamente novo, mas considero que sua discussão é interessante para que estudantes que estão começando sua prática nas artes marciais possam, desde o início, refletir sobre sua relação com as mesmas. Pensá-las um pouquinho além da atividade esportiva, por exemplo, e vivenciá-las como um Caminho mais amplo para suas vidas.

Para começar, deem uma olhada no vídeo abaixo:




Este é Nick Osipiczak, um lutador profissional britânico, praticante e professor de Taijiquan, Yoga e Qigong, que estuda as artes marciais internas para uso, entre outros focos, no MMA.

Não se preocupem! Não falaremos do desgastado assunto “Taijiquan funciona mesmo como arte marcial?”, ou ainda, “as artes marciais tradicionais são páreo para o MMA?”. A discussão aqui é outra e provém das impressões de várias pessoas ao assistirem um vídeo como o de Osipiczak, em que um lutador apresenta-se de forma explícita como praticamente de determinado estilo ou escola em um contexto esportivo de artes marciais mistas.

Em muitos comentários vemos afirmações como “Ah! Isso que ele está fazendo não é técnica de Taijiquan!”, ou, “Esse golpe é do boxe, aquele é do Jiu-jitsu, o seguinte é do karate etc.” Alguns chegam a clamar por um "Chicote Simples" ou um "Repelir o Macaco" e defensores da arte passam a jurar que viram uma "Agulha no fundo do Mar" aos 2:47…

NOTA: Chicote Simples (单鞭, danbian), repelir o macaco (倒撵猴, daonianhou)
e agulha no fundo do mar (海底针, haidizhensão exemplos de técnicas presentes na
Forma Longa estabelecida pelo Ms. Yang Chengfu na nomenclatura
pela qual são conhecidas em português no Brasil.

Tudo bem, mas será que cada arte marcial define-se por uma lista de técnicas que lhe são tradicionais? Existe uma geopolítica das lutas, em que o cruzamento de uma suposta fronteira é considerado uma afronta aos domínios de certa escola? E mais: desconsiderando o egoísmo infantil de alguns estudantes e professores que defendem que aquele chute bonito é propriedade de sua escola, nós mesmos às vezes não nos auto-limitamos? Não colocamos barreiras às nossas próprias artes quando, com certa surpresa ao perceber que em certo treino com um colega “saiu” uma técnica típica de outro estilo, nos policiamos para nos ater aos movimentos “originais” de nossa arte marcial?

Nick Osipiczak parece ter uma consciência muito clara de “onde está” seu Taijiquan no UFC, e ele a ensina de maneira bem direta em vários de seus vídeos e entrevistas. Como uma arte interna, o Taijiquan não se define por seus movimentos externos. É meio lógico, não? O Taijiquan (e, na verdade, qualquer outra arte marcial) não nos ensina simplesmente golpes fixos; ele não deve nos limitar, pelo contrário, deve expandir nossa consciência corporal e mental em direção a uma movimentação livre e natural. As artes marciais ensinam a nos movimentar, apenas isso. E esse “apenas” não é pouca coisa, certo? Movimentar-nos de forma mais eficiente, econômica, harmônica, flexível… Movimentos, de preferência, que gerem energia e aproveitem a que está ao nosso redor; não que consumam nossa própria energia até o esgotamento. Sendo um pouquinho mais profundo, as artes marciais nos ensinam como nos relacionar – nos mover, física e mentalmente - com tudo o que está ao nosso redor, tendo em vista essa harmonia e essa criação de energia. Tendo consciência desse ensinamento das artes marciais, começamos a escapar de sua vivência apenas como um esporte (o que continua sendo um aspecto válido e útil) e nos abrimos para experienciá-las como Caminho, como um todo em nossa vida.

“Tá”, você me responde, “mas que aquele gancho é do boxe, é!”. Tudo bem, você está certo. Chegamos aí em um outro aspecto importante das artes marciais: elas são históricas. A luta, a guerra como um todo são elementos humanos e históricos. Por mais que a propaganda do UFC afirme que o octógono é o “ambiente definitivo” de contenda entre dois homens ou mulheres, o cara-a-cara mais cru possível para testar a eficiência objetiva das técnicas de cada um, sabemos que isso é um exagero.

Em cada época e ambiente social, luta-se de acordo com formas aceitas e criadas por determinadas culturas. Não é difícil perceber como os atletas de lutas mistas lutavam de modos diferentes há 20, 40 e 100 anos, por exemplo. Cada cultura, nesse caso específico, temporalmente falando, possui um jeito “certo” e “eficiente” de lutar para aquele determinado grupo social. Claro que aproveita-se a experiência do passado, mas não há uma linearidade rumo ao “sistema perfeito” como muitos propagandeiam – senão, depois de milhares de anos de guerras, a humanidade já deveria ter chegado na arte marcial perfeita, não é?, uma arte que inexoravelmente venceria todas as outras.

Desde o século XIX, as nações ocidentais – e depois as orientais, desde os processos de domínio, colonização e influências culturais – tiveram alguns paradigmas fortes sendo construídos como parte da estética, da ética e da técnica consideradas “belas” e “boas” para as lutas de mãos vazias. Paradigmas que envolveram o boxe inglês, a luta romana e a esgrima francesa, sobretudo. Não vou usar a palavra “contaminar”, pois ela conota algo negativo e não se trata necessariamente de julgar isso como algo mal, mas essa cultura influenciou e influencia de várias maneiras diferentes nosso modo de lutar, independente da arte marcial praticada.

Uma luta é um diálogo, como se diz na capoeira, mas só existem respostas para as perguntas quando minimamente se fala uma língua parecida. Deve-se considerar a Huka-huka tradicional menos eficiente que o jiu-jitsu ao pegarmos um indígena do Mato Grosso e ele perder uma luta em um tatame? Acho que não. Lembram que o Anderson Silva tentou isso (ver o vídeo abaixo) e se deu mal enquanto as regras eram dos indígenas… mas, milagrosamente seu grappling voltou a ganhar eficiência logo que as regras mudaram para as dele…

NOTA: Huka-huka é uma arte marcial de algumas etnias indígenas do Mato Grosso, especialmente nas áreas
do Xingu e dos Bakairi. Trata-se de uma luta com forte conotação ritual, estando associada ao culto dos
ancestrais, na "festa" do Quarup, em reverência ao herói Mawutzinin. Atualmente, a modalidade
vem ganhando popularidade como uma arte marcial de caráter étnico e está inserida, assim como a
Capoeira e a luta Marajoara, em currículos de Educação Física na Educação Básica do Brasil.
O vídeo é uma clara peça publicitária para vender suco de açaí, fruta associada à região amazônica.




Voltemos agora a Nick Osipiczak e o taijiquan.

Há uma cultura, uma linguagem muito particular nas lutas de MMA e no UFC, traduzida em proibições e permissões de movimentos, duração dos combates, o que é considerado “vitória”, o papel da plateia, da mídia e patrocinadores no combate, a área onde a luta ocorre, o que se considera fairplay ou não e, sobretudo, as motivações de cada um estar ali. Se você não participar dessa cultura, não há luta: seja porque um deles será “derrotado” de forma rápida e estrondosa, seja porque um deles sequer estará lá.

O que o professor Osipiczak nos ensina é que o Taijiquan enquanto arte marcial consegue, se este for o desejo, participar desse diálogo. Seus princípios internos podem se manifestar externamente em palavras, quero dizer, em técnicas, em movimentos, que os demais envolvidos no MMA entendem. Ganchos, uppercuts, armlocks e tal carregam em seu interior projeções de energia, enraizamento, centros de equilíbrio, trabalho de respiração, desvios e redirecionamento de força, trabalhos de pernas e bases caríssimos ao Taijiquan. Mesmo não sendo fã dele, ou do UFC, recomendo voltarem depois a seu canal no Youtube, “Raised Spirit”, e conhecerem alguns dos vídeos instrucionais, bem como em seu website.

Você pode não gostar de suas lições ou considerar que suas pesquisas não estão sendo pertinentes ao Taijiquan ou ao MMA, mas é uma experiência muito válida que está compartilhando conosco.

Ah… e antes de terminar, um bônus para outra discussão: o Taijiquan de Nick Osipiczak é de estilo Yang, quando nos últimos anos estamos (mal) acostumados a pensar diretamente no Taijiquan Chen ao nos referirmos aos aspectos marciais dessa arte...

domingo, 6 de agosto de 2017

O que fazer quando um aluno questiona uma técnica?


Nosso blog, hoje, abre espaço para a colaboração do excelente educador em artes marciais, Jerônimo Marana. Jerônimo é educador físico pela Unicamp e possui formação em diversas artes marciais, especialmente o Hapkido, o Shaolin do Norte e o Yiquan. Mantém um dos mais interessantes blogs sobre o tema na Internet brasileira, que inclui um canal no Youtube. Ele também é colaborador do portal Wuxia, site especializado em artes marciais chinesas. É professor na Academia Trajano Center, em Valinhos-SP. Nós, do projeto "Caminhos Marciais, Humanidades e Educação Integral", temos muito orgulho de recebê-lo por aqui e de tê-lo como interlocutor. Convidamos todos a conhecer melhor as ideias deste professor, que quebra paradigmas engessados e propõe um olhar atual e sério sobre as artes marciais tradicionais, explorando a sua enorme riqueza para o desenvolvimento humano.
Vamos ao texto!

O que fazer quando um aluno questiona uma técnica?

Por Jerônimo Marana

Existe uma situação muito frequente nas aulas de artes marciais, que acontece quando o aluno questiona uma técnica. Eu já presenciei diversas situações como essa e embora seja muito simples de lidar, infelizmente muitos professores fazem isso da maneira errada.


Erros que os professores cometem quando o aluno questiona uma técnica

Muitas vezes, ao aprender uma técnica, o aluno pergunta: "mas professor e se o cara fizer isso?". Então ele faz alguma coisa que impede o professor ou companheiro de aplicar a técnica. Não há professor que não passe por isso ou que não tenha passado e se não passou, ainda vai passar. Então o professor, sabendo de antemão o movimento do aluno, recorre a uma maneira arcaica de calar o aluno. A tática é assim que o aluno impedir a aplicação do golpe, dar uma pancadinha em algum lugar para distrai-lo. Então, o professor aplica a técnica com força para subjugar o aluno, dizendo que o agressor nunca sabe o que você vai fazer, pois a técnica é elemento surpresa.
Acontece que o aluno está em desvantagem, pois o professor já sabe o movimento do aluno, que por sua vez não sabe qual vai ser o movimento do professor. Existem "professores" que orientam os seus subordinados, seus instrutores, a recorrer a essa prática quando o aluno questiona uma técnica. Eles dizem que é preciso fazer a técnica funcionar, não importa como, porque o professor não pode deixar dúvida para o aluno.
Outro erro é dizer o que ou quanto o aluno é ou não capaz de aprender. Há mais ou menos um ano atrás, eu assisti um vídeo que me deu a ideia de falar sobre esse assunto. O professor ensinava uma técnica muito simples. Em um momento ele disse que muitos alunos fazem aquela mesma pergunta do início do artigo. Então ele disse que ensinaria apenas uma técnica, porque senão seria muita coisa e o público não iria conseguir aprender. Isso ilustra bem alguns erros cometidos frequentemente por muitos professores.

Dois paradigmas que precisam ser quebrados

Existe nisso um paradigma que precisa ser quebrado, que é achar que é preciso dominar uma técnica antes de aprender outra. Eu já desmenti essa crença em um dos primeiros vídeos do meu canal, que você pode assistir abaixo. Nele eu explico que é muito mais fácil dominar uma técnica se você aprender outras.

O segundo é achar que um aluno não é capaz de aprender alguma coisa, pelo motivo que for. Professores dizem que os alunos devem aprender apenas uma técnica por vez, caso contrário, é muita coisa de uma vez só. É muita informação e por isso o aluno não vai conseguir assimilar. Ou então porque a técnica em questão é mais simples e o que o aluno quer aprender é mais difícil. Eu tenho que ser crítico nesse aspecto e perguntar qual é a base para dizer o quanto ou o que alguém é ou não é capaz de aprender. Só diz isso quem não entende o processo de aprendizado. Se alguém não consegue aprender, é porque alguém não é capaz de ensinar.

O que pode acontecer quando o aluno questiona uma técnica

Quando o professor diz que o aluno não vai conseguir aprender, duas coisas podem acontecer. A primeira é perder sua confiança, o que é justo, pois é ruim para o próprio professor. A segunda é levá-lo a criar uma autoimagem de alguém dependente do professor, que nunca conseguirá ultrapassá-lo e nem mesmo igualar-se a ele. O próprio aluno passa a duvidar da sua capacidade e aceitar que outra pessoa defina o que ele/ela é ou não capaz de fazer.
É preciso entender que o que é difícil para um nem sempre é difícil para outro. As pessoas tem dificuldades e facilidades diferentes por causa da sua história de vida e das suas experiências motoras. O caminho que o professor percorreu não é igual ao de nenhum aluno, cada um tem as suas particularidades. Ninguém começa na arte marcial ou em qualquer outra atividade com as mesmas habilidades. É preciso explorar as potencialidades e habilidades de cada um para ensinar a partir daquilo que lhes é mais fácil. E o que é mais fácil para o aluno nem sempre é aquilo que o professor considera mais fácil. Da mesma forma o que é mais fácil para um aluno, nem sempre é mais fácil para outro.

O que fazer quando o aluno questiona uma técnica

O terceiro erro é não levar em consideração as ideias do aluno, pois elas podem ter um valor imenso. Quando o aluno questiona uma técnica é importante demonstrar e convidar a experimentar. O que o aluno pergunta tem significado para ele e por isso pode ser mais fácil ensinar a partir daquilo. Nós professores precisamos estar preparados para redirecionar a aula e ensinar a partir daquilo que os alunos trazem. Muitas vezes isso pode ser necessário e às vezes funciona melhor do que o que foi planejado, afinal nem sempre o que planejamos dá certo ou é o melhor caminho. É preciso ter sensibilidade para mudar de acordo com o que o momento exige.


Se não for possível trabalhar com a questão naquele momento, é preciso primeiro demonstrar interesse por ela. É preciso comentar a respeito e demonstrar algum exemplo. Só depois se deve dizer que naquele momento aquela questão não será aprofundada porque será feita outra coisa. Então, assim que possível ela deverá ser trazida de volta. Se não for possível naquela aula, é preciso planejar para abordá-la em outra. Se não tiver uma resposta imediatamente, é preciso dizer que vai pensar e tentar responder em outro momento. Ou, melhor ainda, convidar os alunos para tentar descobrir uma resposta juntos.
Quando o aluno questiona uma técnica é muito fácil lidar com a situação, se houver conhecimento e boa didática. O que não se deve fazer em hipótese alguma é fazer o aluno se sentir ignorado. O aluno deve sentir que as suas ideias tem importância, mesmo que não funcionem. É preciso colocá-las para serem estudadas, mesmo quando sabemos que não dá certo. Essa é a melhor forma de ensinar. Mas infelizmente o professor comum dirá que aquilo é difícil para o aluno ou que é muita informação de uma vez.