sábado, 12 de agosto de 2017

"Isso não é Taijiquan!" - compreendendo a arte marcial sem limitações




Desta vez, nosso blog abre espaço a um convidado que é mais do que de casa. Fabrício Pinto Monteiro é uma das principais referências técnicas e teóricas da Federação Mineira de Kung Fu Kuoshu. Tem sido o responsável pela padronização do seu Sistema Básico de Graduação e pela continuidade da formação técnica dos nossos instrutores e professores, dentre os quais me incluo. O Fabrício possui uma vida (tão longa quanto alguém tão jovem permite dizer...) dedicada às artes marciais chinesas. Começou a praticar o Zhong Wudao na academia do Ms. Huang Yu Sheng há mais de 20 anos. Hoje, como aluno do professor Niltoamar, importante referência em Uberlândia-MG, formou-se em algumas escolas: o próprio Zhong Wudao, o Nanbei Wudao (compilação de alguns estilos realizada pelo professor Niltomar e articulados conforme a sua leitura de arte marcial), o Wushu Moderno do Ms. Huang Hsiao Po e, atualmente, dedica-se à escola de Neijiaquan do Ms. Wu Tan Xien, de Hong Kong, representada, no Brasil, pelos seus dois filhos: Wu Tan Qing e Wu Tan Ming. Fabrício é também historiador de formação e professor na educação básica. Publicou já vários artigos e livros, sendo alguns deles sobre aspectos da história social do Kung Fu. Destaca-se, entre eles, "História das Artes Marciais Chinesas: Tradição, Memórias e Modernidade", no qual ele apresenta, após densa introdução ao desenvolvimento do kung fu na China, a proposta de Zhong Wudao do Ms. Lin Zhong Yuan, de Taiwan. Para finalizar, é preciso dizer que o Fabrício, além de um excelente amigo, é um parceiro sem o qual nosso programa e nossos projetos não existiriam. Sua interlocução, apoio e trabalho são indispensáveis para nós, de modo que não há agradecimento que seja suficiente no caso dele. Ainda assim, muitíssimo obrigado, Fabrício!

Vamos ao Texto!


"Isso não é Taijiquan!" - compreendendo a arte marcial sem limitações

Por Fabrício Pinto Monteiro


O tema deste texto não é exatamente novo, mas considero que sua discussão é interessante para que estudantes que estão começando sua prática nas artes marciais possam, desde o início, refletir sobre sua relação com as mesmas. Pensá-las um pouquinho além da atividade esportiva, por exemplo, e vivenciá-las como um Caminho mais amplo para suas vidas.

Para começar, deem uma olhada no vídeo abaixo:




Este é Nick Osipiczak, um lutador profissional britânico, praticante e professor de Taijiquan, Yoga e Qigong, que estuda as artes marciais internas para uso, entre outros focos, no MMA.

Não se preocupem! Não falaremos do desgastado assunto “Taijiquan funciona mesmo como arte marcial?”, ou ainda, “as artes marciais tradicionais são páreo para o MMA?”. A discussão aqui é outra e provém das impressões de várias pessoas ao assistirem um vídeo como o de Osipiczak, em que um lutador apresenta-se de forma explícita como praticamente de determinado estilo ou escola em um contexto esportivo de artes marciais mistas.

Em muitos comentários vemos afirmações como “Ah! Isso que ele está fazendo não é técnica de Taijiquan!”, ou, “Esse golpe é do boxe, aquele é do Jiu-jitsu, o seguinte é do karate etc.” Alguns chegam a clamar por um "Chicote Simples" ou um "Repelir o Macaco" e defensores da arte passam a jurar que viram uma "Agulha no fundo do Mar" aos 2:47…

NOTA: Chicote Simples (单鞭, danbian), repelir o macaco (倒撵猴, daonianhou)
e agulha no fundo do mar (海底针, haidizhensão exemplos de técnicas presentes na
Forma Longa estabelecida pelo Ms. Yang Chengfu na nomenclatura
pela qual são conhecidas em português no Brasil.

Tudo bem, mas será que cada arte marcial define-se por uma lista de técnicas que lhe são tradicionais? Existe uma geopolítica das lutas, em que o cruzamento de uma suposta fronteira é considerado uma afronta aos domínios de certa escola? E mais: desconsiderando o egoísmo infantil de alguns estudantes e professores que defendem que aquele chute bonito é propriedade de sua escola, nós mesmos às vezes não nos auto-limitamos? Não colocamos barreiras às nossas próprias artes quando, com certa surpresa ao perceber que em certo treino com um colega “saiu” uma técnica típica de outro estilo, nos policiamos para nos ater aos movimentos “originais” de nossa arte marcial?

Nick Osipiczak parece ter uma consciência muito clara de “onde está” seu Taijiquan no UFC, e ele a ensina de maneira bem direta em vários de seus vídeos e entrevistas. Como uma arte interna, o Taijiquan não se define por seus movimentos externos. É meio lógico, não? O Taijiquan (e, na verdade, qualquer outra arte marcial) não nos ensina simplesmente golpes fixos; ele não deve nos limitar, pelo contrário, deve expandir nossa consciência corporal e mental em direção a uma movimentação livre e natural. As artes marciais ensinam a nos movimentar, apenas isso. E esse “apenas” não é pouca coisa, certo? Movimentar-nos de forma mais eficiente, econômica, harmônica, flexível… Movimentos, de preferência, que gerem energia e aproveitem a que está ao nosso redor; não que consumam nossa própria energia até o esgotamento. Sendo um pouquinho mais profundo, as artes marciais nos ensinam como nos relacionar – nos mover, física e mentalmente - com tudo o que está ao nosso redor, tendo em vista essa harmonia e essa criação de energia. Tendo consciência desse ensinamento das artes marciais, começamos a escapar de sua vivência apenas como um esporte (o que continua sendo um aspecto válido e útil) e nos abrimos para experienciá-las como Caminho, como um todo em nossa vida.

“Tá”, você me responde, “mas que aquele gancho é do boxe, é!”. Tudo bem, você está certo. Chegamos aí em um outro aspecto importante das artes marciais: elas são históricas. A luta, a guerra como um todo são elementos humanos e históricos. Por mais que a propaganda do UFC afirme que o octógono é o “ambiente definitivo” de contenda entre dois homens ou mulheres, o cara-a-cara mais cru possível para testar a eficiência objetiva das técnicas de cada um, sabemos que isso é um exagero.

Em cada época e ambiente social, luta-se de acordo com formas aceitas e criadas por determinadas culturas. Não é difícil perceber como os atletas de lutas mistas lutavam de modos diferentes há 20, 40 e 100 anos, por exemplo. Cada cultura, nesse caso específico, temporalmente falando, possui um jeito “certo” e “eficiente” de lutar para aquele determinado grupo social. Claro que aproveita-se a experiência do passado, mas não há uma linearidade rumo ao “sistema perfeito” como muitos propagandeiam – senão, depois de milhares de anos de guerras, a humanidade já deveria ter chegado na arte marcial perfeita, não é?, uma arte que inexoravelmente venceria todas as outras.

Desde o século XIX, as nações ocidentais – e depois as orientais, desde os processos de domínio, colonização e influências culturais – tiveram alguns paradigmas fortes sendo construídos como parte da estética, da ética e da técnica consideradas “belas” e “boas” para as lutas de mãos vazias. Paradigmas que envolveram o boxe inglês, a luta romana e a esgrima francesa, sobretudo. Não vou usar a palavra “contaminar”, pois ela conota algo negativo e não se trata necessariamente de julgar isso como algo mal, mas essa cultura influenciou e influencia de várias maneiras diferentes nosso modo de lutar, independente da arte marcial praticada.

Uma luta é um diálogo, como se diz na capoeira, mas só existem respostas para as perguntas quando minimamente se fala uma língua parecida. Deve-se considerar a Huka-huka tradicional menos eficiente que o jiu-jitsu ao pegarmos um indígena do Mato Grosso e ele perder uma luta em um tatame? Acho que não. Lembram que o Anderson Silva tentou isso (ver o vídeo abaixo) e se deu mal enquanto as regras eram dos indígenas… mas, milagrosamente seu grappling voltou a ganhar eficiência logo que as regras mudaram para as dele…

NOTA: Huka-huka é uma arte marcial de algumas etnias indígenas do Mato Grosso, especialmente nas áreas
do Xingu e dos Bakairi. Trata-se de uma luta com forte conotação ritual, estando associada ao culto dos
ancestrais, na "festa" do Quarup, em reverência ao herói Mawutzinin. Atualmente, a modalidade
vem ganhando popularidade como uma arte marcial de caráter étnico e está inserida, assim como a
Capoeira e a luta Marajoara, em currículos de Educação Física na Educação Básica do Brasil.
O vídeo é uma clara peça publicitária para vender suco de açaí, fruta associada à região amazônica.




Voltemos agora a Nick Osipiczak e o taijiquan.

Há uma cultura, uma linguagem muito particular nas lutas de MMA e no UFC, traduzida em proibições e permissões de movimentos, duração dos combates, o que é considerado “vitória”, o papel da plateia, da mídia e patrocinadores no combate, a área onde a luta ocorre, o que se considera fairplay ou não e, sobretudo, as motivações de cada um estar ali. Se você não participar dessa cultura, não há luta: seja porque um deles será “derrotado” de forma rápida e estrondosa, seja porque um deles sequer estará lá.

O que o professor Osipiczak nos ensina é que o Taijiquan enquanto arte marcial consegue, se este for o desejo, participar desse diálogo. Seus princípios internos podem se manifestar externamente em palavras, quero dizer, em técnicas, em movimentos, que os demais envolvidos no MMA entendem. Ganchos, uppercuts, armlocks e tal carregam em seu interior projeções de energia, enraizamento, centros de equilíbrio, trabalho de respiração, desvios e redirecionamento de força, trabalhos de pernas e bases caríssimos ao Taijiquan. Mesmo não sendo fã dele, ou do UFC, recomendo voltarem depois a seu canal no Youtube, “Raised Spirit”, e conhecerem alguns dos vídeos instrucionais, bem como em seu website.

Você pode não gostar de suas lições ou considerar que suas pesquisas não estão sendo pertinentes ao Taijiquan ou ao MMA, mas é uma experiência muito válida que está compartilhando conosco.

Ah… e antes de terminar, um bônus para outra discussão: o Taijiquan de Nick Osipiczak é de estilo Yang, quando nos últimos anos estamos (mal) acostumados a pensar diretamente no Taijiquan Chen ao nos referirmos aos aspectos marciais dessa arte...

domingo, 6 de agosto de 2017

O que fazer quando um aluno questiona uma técnica?


Nosso blog, hoje, abre espaço para a colaboração do excelente educador em artes marciais, Jerônimo Marana. Jerônimo é educador físico pela Unicamp e possui formação em diversas artes marciais, especialmente o Hapkido, o Shaolin do Norte e o Yiquan. Mantém um dos mais interessantes blogs sobre o tema na Internet brasileira, que inclui um canal no Youtube. Ele também é colaborador do portal Wuxia, site especializado em artes marciais chinesas. É professor na Academia Trajano Center, em Valinhos-SP. Nós, do projeto "Caminhos Marciais, Humanidades e Educação Integral", temos muito orgulho de recebê-lo por aqui e de tê-lo como interlocutor. Convidamos todos a conhecer melhor as ideias deste professor, que quebra paradigmas engessados e propõe um olhar atual e sério sobre as artes marciais tradicionais, explorando a sua enorme riqueza para o desenvolvimento humano.
Vamos ao texto!

O que fazer quando um aluno questiona uma técnica?

Por Jerônimo Marana

Existe uma situação muito frequente nas aulas de artes marciais, que acontece quando o aluno questiona uma técnica. Eu já presenciei diversas situações como essa e embora seja muito simples de lidar, infelizmente muitos professores fazem isso da maneira errada.


Erros que os professores cometem quando o aluno questiona uma técnica

Muitas vezes, ao aprender uma técnica, o aluno pergunta: "mas professor e se o cara fizer isso?". Então ele faz alguma coisa que impede o professor ou companheiro de aplicar a técnica. Não há professor que não passe por isso ou que não tenha passado e se não passou, ainda vai passar. Então o professor, sabendo de antemão o movimento do aluno, recorre a uma maneira arcaica de calar o aluno. A tática é assim que o aluno impedir a aplicação do golpe, dar uma pancadinha em algum lugar para distrai-lo. Então, o professor aplica a técnica com força para subjugar o aluno, dizendo que o agressor nunca sabe o que você vai fazer, pois a técnica é elemento surpresa.
Acontece que o aluno está em desvantagem, pois o professor já sabe o movimento do aluno, que por sua vez não sabe qual vai ser o movimento do professor. Existem "professores" que orientam os seus subordinados, seus instrutores, a recorrer a essa prática quando o aluno questiona uma técnica. Eles dizem que é preciso fazer a técnica funcionar, não importa como, porque o professor não pode deixar dúvida para o aluno.
Outro erro é dizer o que ou quanto o aluno é ou não capaz de aprender. Há mais ou menos um ano atrás, eu assisti um vídeo que me deu a ideia de falar sobre esse assunto. O professor ensinava uma técnica muito simples. Em um momento ele disse que muitos alunos fazem aquela mesma pergunta do início do artigo. Então ele disse que ensinaria apenas uma técnica, porque senão seria muita coisa e o público não iria conseguir aprender. Isso ilustra bem alguns erros cometidos frequentemente por muitos professores.

Dois paradigmas que precisam ser quebrados

Existe nisso um paradigma que precisa ser quebrado, que é achar que é preciso dominar uma técnica antes de aprender outra. Eu já desmenti essa crença em um dos primeiros vídeos do meu canal, que você pode assistir abaixo. Nele eu explico que é muito mais fácil dominar uma técnica se você aprender outras.

O segundo é achar que um aluno não é capaz de aprender alguma coisa, pelo motivo que for. Professores dizem que os alunos devem aprender apenas uma técnica por vez, caso contrário, é muita coisa de uma vez só. É muita informação e por isso o aluno não vai conseguir assimilar. Ou então porque a técnica em questão é mais simples e o que o aluno quer aprender é mais difícil. Eu tenho que ser crítico nesse aspecto e perguntar qual é a base para dizer o quanto ou o que alguém é ou não é capaz de aprender. Só diz isso quem não entende o processo de aprendizado. Se alguém não consegue aprender, é porque alguém não é capaz de ensinar.

O que pode acontecer quando o aluno questiona uma técnica

Quando o professor diz que o aluno não vai conseguir aprender, duas coisas podem acontecer. A primeira é perder sua confiança, o que é justo, pois é ruim para o próprio professor. A segunda é levá-lo a criar uma autoimagem de alguém dependente do professor, que nunca conseguirá ultrapassá-lo e nem mesmo igualar-se a ele. O próprio aluno passa a duvidar da sua capacidade e aceitar que outra pessoa defina o que ele/ela é ou não capaz de fazer.
É preciso entender que o que é difícil para um nem sempre é difícil para outro. As pessoas tem dificuldades e facilidades diferentes por causa da sua história de vida e das suas experiências motoras. O caminho que o professor percorreu não é igual ao de nenhum aluno, cada um tem as suas particularidades. Ninguém começa na arte marcial ou em qualquer outra atividade com as mesmas habilidades. É preciso explorar as potencialidades e habilidades de cada um para ensinar a partir daquilo que lhes é mais fácil. E o que é mais fácil para o aluno nem sempre é aquilo que o professor considera mais fácil. Da mesma forma o que é mais fácil para um aluno, nem sempre é mais fácil para outro.

O que fazer quando o aluno questiona uma técnica

O terceiro erro é não levar em consideração as ideias do aluno, pois elas podem ter um valor imenso. Quando o aluno questiona uma técnica é importante demonstrar e convidar a experimentar. O que o aluno pergunta tem significado para ele e por isso pode ser mais fácil ensinar a partir daquilo. Nós professores precisamos estar preparados para redirecionar a aula e ensinar a partir daquilo que os alunos trazem. Muitas vezes isso pode ser necessário e às vezes funciona melhor do que o que foi planejado, afinal nem sempre o que planejamos dá certo ou é o melhor caminho. É preciso ter sensibilidade para mudar de acordo com o que o momento exige.


Se não for possível trabalhar com a questão naquele momento, é preciso primeiro demonstrar interesse por ela. É preciso comentar a respeito e demonstrar algum exemplo. Só depois se deve dizer que naquele momento aquela questão não será aprofundada porque será feita outra coisa. Então, assim que possível ela deverá ser trazida de volta. Se não for possível naquela aula, é preciso planejar para abordá-la em outra. Se não tiver uma resposta imediatamente, é preciso dizer que vai pensar e tentar responder em outro momento. Ou, melhor ainda, convidar os alunos para tentar descobrir uma resposta juntos.
Quando o aluno questiona uma técnica é muito fácil lidar com a situação, se houver conhecimento e boa didática. O que não se deve fazer em hipótese alguma é fazer o aluno se sentir ignorado. O aluno deve sentir que as suas ideias tem importância, mesmo que não funcionem. É preciso colocá-las para serem estudadas, mesmo quando sabemos que não dá certo. Essa é a melhor forma de ensinar. Mas infelizmente o professor comum dirá que aquilo é difícil para o aluno ou que é muita informação de uma vez.

domingo, 14 de maio de 2017

O resultado pedagógico de uma surra - Por: Rodrigo Wolff Apolloni

Este texto é uma gentil colaboração do Prof. Rodrigo Wolff Apolloni para este Blog. Em nome de todos os participantes dos projetos que compõem o Programa "Caminhos Marciais, Humanidades e Educação Integral", agradeço fortemente ao professor Rodrigo e coloco este espaço sempre a disposição para as suas excelentes reflexões e observações sobre o mundo e a história das artes marciais. Xie xie! (Guilherme Amaral Luz)

O resultado pedagógico de uma surra

Rodrigo Wolff Apolloni (*)



Essa história de liberdade digital é, mesmo, curiosa: a gente acredita que está conectado ao mundo todo quando, na verdade, há um imenso território de dados que, por determinações políticas, não  acessamos.

Falo da China, que, para escapar dos riscos sociais da cacofonia, decidiu barrar as soluções globais e oferecer suas próprias "traquitanas binárias", mais vigiáveis, à sociedade nacional - deixando os "bárbaros" do lado de lá da muralha. Essas traquitanas atendem por nomes como "Baidu", Youku" e "Renren", e substituem, respectivamente, o Google, o Youtube e o Facebook.

Somando-se a essa disposição o fato de que o chinês é tudo menos uma língua franca - a despeito de seu extraordinário número de falantes -, temos uma verdadeira separação de informações.

Isso, contudo, não impede que, vez por outra, tomemos conhecimento de certos "bafões" do Império do Meio, vazados pela imprensa internacional. Um deles, recente, dá conta de uma comoção nacional surgida com um combate entre um lutador de MMA e um professor de Tai-Chi-Chuan, que seria mais um de muitos tira-teimas do campo das lutas.

Pois o lutador desafiou o professor e, no combate transmitido pela tevê, deu-lhe uma surra em regra - um nocaute em dez segundos. E saiu bradando que o Tai-Chi, ao menos no contexto marcial, era uma fraude.

Para muitos não chineses, imaginar o Tai-Chi como uma forma de luta soa algo absurdo, a começar pelo fato de que se trata de uma prática corporal lenta e meditativa - e não "porradora".

A nomenclatura, porém, é definitiva: em chinês, "Chuan" ("拳") significa "punho", que, por sua vez, serve para representar uma modalidade de combate. Se somarmos a isso um histórico de velhos mestres lutadores de Tai-Chi, como Yang Luchan, Yang Banhou, Gu Ruzhang, Sun Lutang e muitos outros, temos a demonstração cabal da "tese marcial".

O Tai- Chi, em especial quando de sua aproximação em relação à elite Qing (no século XIX) e de sua apropriação pelo Estado comunista (em 1956, com a publicação da chamada "Forma de Pequim" em 24 movimentos), assumiu uma indelével característica de saúde, que, no entanto, não nega seu antigo viés marcial. O que, ao fim e ao cabo, produz e não produz uma boa contradição que, na média, é contornada pelos praticantes - há Tai-Chi para todos os gostos, ainda que a preferência, ao menos entre nós, seja pela saúde.

E o que revela a "sova" aplicada pelo lutador de MMA ao professor de Tai-Chi?

Em primeiro lugar, a prevalência de uma tensão histórica da sociedade chinesa, que repete dúvidas em relação às próprias artes marciais surgidas após a Rebelião dos Boxers (1900) e durante a Revolução Cultural (1966 - 1973). Os chineses, enfim, seguem colocando em questão a validade do próprio patrimônio cultural marcial face à modernidade - o que, tenho para mim, não é algo ruim, desde que não signifique assumir uma postura apriorística que condena todo um universo de cultura,  tão corporal quanto simbólico, à vala do anacronismo.

Em segundo lugar, a história parece denotar um sério mal-estar em relação aos próprios mitos de invencibilidade da marcialidade chinesa, que seguem sendo propagados por parte da comunidade de praticantes. Quantas vezes, quando aprendemos uma técnica "x" ou "y", em especial dentro do sistema de aprendizado de rotinas do Kung-Fu, somos informados de sua "infalibilidade", que, no entanto, jamais será testada?

Isso pode parecer pouco, mas em uma sociedade perpassada por um passado marcial poderoso - e "aporrinhada" por mestres  que vendem o próprio poder marcial escorados por uma orientação confucionista de não questionamento da tradição - é algo bem relevante.

A questão é saber o que os chineses farão com isso e o que nós mesmos, professores de Tai-Chi, faremos com isso. Há, sempre, a tese da falibilidade da demonstração, visto que uma única luta não serve para provar a prevalência de um estilo marcial sobre outro; até que muitos outros combates validem ou invalidem o primeiro resultado, a questão estará em aberto.

Isso significa, então, que "estamos salvos" em relação à validade marcial do Tai-Chi? Não. Significa apenas que, para trabalhar com honestidade, precisamos conhecer mais sobre a modalidade - sua história, elementos não corporais, aspectos marciais - e, principalmente, assumir com honestidade o que fazemos e oferecemos aos alunos. Sem medo, por exemplo, de questionar certos aspectos da modalidade ou de assumir nossas próprias dúvidas. Marcial, meditativo ou marcial-meditativo, o Tai-Chi é  suficientemente rico para sustentar o próprio sentido de existência. Quanto a isso, não há receio - a menos que o seu receio se baseie em uma dúvida secreta, incômoda e que merece ser encarada.

A "sova do MMA", então, fica menos doída e se transforma em uma espécie de chamado pedagógico. Se você me perguntar se dói, se incomoda, eu responderei que sim, e é exatamente por isso que estou debatendo o tema. O aparente inimigo, já dizia um velho ditado chinês, é o melhor professor.


(*) - Rodrigo Wolff Apolloni é mestre em Ciência da Religião pela PUC-SP, doutor em Sociologia pela UFPR e professor de Tai-Chi-Chuan do Centro Ásia, em Curitiba.

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Assista, pelo Youtube, ao vídeo da luta em questão:


sábado, 11 de fevereiro de 2017

Poética e Artes Marciais Chinesas


Para notar que os movimentos de wushu (武术) podem ser muito bonitos para os padrões estéticos do ocidente moderno, basta assistir a um bom filme de wuxia (武俠), como O Tigre e o Dragão, ou pesquisar algumas formas modernas no Youtube, executadas em competições internacionais, como esta que trazemos abaixo:



Quer saber mais sobre o gênero wuxiaClique aqui
(conteúdo em espanhol)


Alguns autores, como Barry Allen (Striking Beauty: A Philosophical Look at the Asian Martial Arts, Columbia University Press, 2015), vêm a beleza do wushu e a sua natureza propriamente marcial como, a princípio, elementos contraditórios. Como "solução", ele indica que o wushu, como espetáculo e treinamento, é uma espécie de teatralização da guerra. Não é violência, mas a experiência estética de movimentos que devem ser executados tal como seriam eficazes em caso de utilizados como "armas". Se Allen está correto, eu poderia chamar este wushu de uma poética da guerra, por meio da qual a linguagem da guerra se torna meio de tematização inventiva desta própria linguagem. Poderia, ainda, dizer que se trata de uma poética indiciária de conceitos filosóficos, éticos e metafísicos. Ela permite, sozinha ou incorporada a outras formas de representação (teatro, cinema, literatura, artes visuais etc.), dar forma a narrativas, histórias, ideias e abstrações.

Há uma forma de treinamento e competição no wushu cujo nome é muito interessante para pensar a poética das artes marciais chinesas: dui lian (对练). 对, dui, significa "par" ou "duplas"; enquanto 练 significa "exercício", "prática" ou "treinamento". "Prática a dois", seria, portanto, uma boa tradução para a expressão. Vejamos um exemplo abaixo:



Este tipo de "prática a dois" se materializa como uma "luta combinada", em que os dois praticantes comprometem-se a fazer papéis complementares e, ao mesmo tempo, de oposição entre si. Estes opostos-complementares podem ser em termos espaciais (direita/esquerda, em pé/no chão, um pula enquanto outro agacha etc.), em termos de situação de ataque ou de defesa ou em termos de tipo de movimento (um mais reto e outro mais circular, um mais suave e outro mais duro etc.). Muitas vezes, as performances enfatizam isso nas cores das roupas (azul x vermelho ou rosa e branco x preto são os pares mais comuns). A base óbvia desta linguagem é a dialética do yin (阴) e do yang (). O que estas performances tentam dar visibilidade é exatamente aos efeitos da relação entre essas duas forças e as suas transformações uma na outra.

Há, na literatura chinesa, uma expressão muito semelhante a 对练 para nomear um gênero poético que também tematiza os opostos-complementares: 对联, cuja pronúncia, duilian, é quase idêntica à do "treinamento a dois". Este lian 联, no caso, indica "dupla" ou "casal". 对联, numa tradução "estranha", poderia virar uma redundância; "dupla de dois". Acontece que 对 também pode indicar "opor" ou "oposição". Desse modo, uma tradução mais interessante poderia ser "par de opostos" ou mesmo, mais livremente: "dupla de opostos-complementares".


Rotes Duilian aus Baishuitai.jpg
By User:Chrislb - Own work, CC BY-SA 3.0, Link

Popularizado durante as Dinastias Ming (1368 a 1644) e Qing (1644-1912), este gênero poético é, ao mesmo tempo, uma arte "decorativa". Eles são dispostos, normalmente, em pilares opostos de portais (como no exemplo da imagem acima) e seus escritos apresentam características de opostos-complementares. Eles precisam ter, simetricamente, o mesmo número de caracteres; as pronúncias das palavras, de um ou de outro elemento do par, devem ser opostas (em termos de padrão tonal) e os significados das palavras colocadas em paralelo uma com as outras também devem denotar oposição. Mas o resultado final de um e de outro deve ser a complementação do sentido mútuo. Vejamos um exemplo, conforme trazido na versão em inglês da Wikipédia:


Exemplo de um duilian:
書山有路勤爲徑
Padrão tonal: 平平仄仄平平仄
Pinyin: shū shān yǒu lù qín wéi jìng
Tradução: A montanha de livros tem uma estrada e a diligência torna-se o percurso
學海無涯苦作舟
Tone pattern: 仄仄平平仄仄平
Pinyin: xué hǎi wú yá kǔ zuò zhōu
Translation: O mar de conhecimento não tem limites e o esforço faz o barco

  Abaixo    Acima
conhecimentolivro
marmontanha
não temtem
limitesestrada
esforçodiligência
faztorna-se
barco
percurso

Lendo palavra por palavra em paralelo, vêm-se oposições: conhecimento é abstrato, livro é concreto; mar é baixo e de água, montanha é alta e de terra; ter é o inverso de não ter; limite trava a circulação, estradas permitem; esforço é físico, diligência é postura de vontade; fazer é externo, tornar-se é interno; o barco é o objeto material, percurso é o "desenho". No conjunto, os sentidos de uma e outra formulação se retroalimentam. Ambos indicam que, para adquirir conhecimento, é necessário muito trabalho e que isso não chega de uma hora para a outra.

O ponto a que gostaríamos de chegar com esta reflexão é que as artes marciais chinesas também podem ser vistas como tematização da linguagem da "guerra" para a construção simbólica de um discurso poético. Muitas vezes, este discurso segue em paralelo com outras formas de linguagem, inclusive a poesia propriamente dita. É o caso, por exemplo, da forma de sabre do estilo Yang de Taijiquan. Cada um dos seus 13 movimentos traz, como descrição, um verso, formando, assim, um "poema". Abaixo, reproduzimos os versos nos ideogramas originais (vocês podem pesquisar os significados e a pronúncia na internet...) e um vídeo com a forma sendo executada pelo, ainda bem jovem, Mestre Yang Jun.
七星跨虎交刀势
腾挪闪展意气扬
左顾右盼两分张
白鹤亮翅五行掌
风卷荷花叶里藏
玉女穿梭八方势
三星开合自主张

二起脚来打虎势
披身斜挂鸳鸯脚
顺水推舟鞭做篙
下势三合自由招
左右分水龙门跳
卞和携石凤还巢