quarta-feira, 1 de novembro de 2017

Treinamento de artes marciais. Diálogo em torno de elementos ginásticos.

Esta publicação tem uma natureza pouco convencional. O que fazemos aqui é a reprodução (organizada) de uma conversa que eu (Guilherme Amaral Luz) e Jerônimo Marana fizemos em redes sociais (por Messenger e Facebook). Decidimos que era uma conversa que deveria ser registrada, pois pode ser útil para mais gente (e para nós mesmos no futuro).

Tudo começou depois que li uma publicação do blog do Jerônimo e fiz uma pergunta para ele em um grupo do Facebook, o grupo Kung Fu Brasil. Originalmente, a publicação dizia respeito às dimensões técnicas e físicas do treinamento de artes marciais, questionando o que deveria, numa sessão de treino, ser trabalhado primeiro.

Pois bem, vamos à conversa:

Guilherme Amaral Luz:
Para variar, uma publicação muito boa e muito útil, Jerônimo Marana. Como uma colaboração, gostaria de acrescentar um ponto correlato e aproveitar para conhecer o seu ponto de vista a respeito. Lendo a ótima dissertação do Marcio Antonio Tralci Filho, deparei-me com um trecho do Mestre Imamura que questiona o caráter supostamente "tradicional" da repetição de técnicas ritmadas em conjunto, o que ele mostra ser uma adaptação japonesa do modelo sueco de educação física na Era Meiji, depois "exportado" para a China. Esta repetição padronizada e mecânica, segundo o Mestre Imamura, seria o oposto do que ele entende como mais próprio da prática tradicional, que seria mais pessoal e individual, menos "uniformizada". É engraçado e até irônico que o Wushu tenha incorporado isso quase como marca registrada e muita gente associe este padrão a antigas formas de treinamento militar (o que faz até algum sentido). Nas academias, repetimos muito este tipo de treinamento, cujo ritmo, muitas vezes, não permite prestarmos atenção nas técnicas e cujo desgaste físico me parece comprometer a própria qualidade na execução delas. O que você acha deste tipo de treinamento? Até que ponto ele pode ser útil, até que ponto danoso? Há vantagem em treinar assim em algum momento? Com que frequência?

Eis o trecho da entrevista do mestre Leo Imamura, conforme transcrita na dissertação de Tralci Filho: "Muita gente pergunta pra mim, né: "porque o kung fu, cada um faz diferente?", eu não entendo essa pergunta, então por isso que eu respondo com outra pergunta: "mas por que que você achou que teria que ser igual?" (...) Então, entender tradição é um dos grandes problemas nossos hoje, porque tudo em nome da tradição o cara fala: "Oh, é tradicional, todo mundo soca igual, faz não sei o que, fica lá..." [simula uma repetição de socos], karatê  tradicional, todo mundo andando pra frente e pra trás, já fez Karatê, já viu aula de Karatê?
(...)
É, vem da Suécia, por que? Porque no Período Meiji (...) o Japão se abriu para o conhecimento europeu e o karatê foi desenvolvido dentro das Universidades, principalmente na escola de Educação Física, então ele se baseou naquele processo de aula unida, fazer tudo igual, que é totalmente estranho à tradição oriental isso. Sabe essa questão de fazer igualzinho, aquela coisa toda? Mas foi incorporado, isso foi incorporado no começo do século passado e o pessoal considera tradicional, parece que vem de várias gerações. Nada disso: antigamente, nem uniforme tinha. Antigamente, cada um fazia a sua parte, sabe? Hoje, você vê lá todo mundo, você pega lá, pega o movimento e faz: "Ta, ta, ta", né? Pessoal chama de Kati, né? Essa palavra nem existe, mas tudo bem, vamos chamar de Kati, faz lá: Ta, ta, ta, ta, ta", tudo igual, já reparou? "Um, dois, três!". Cada um tem o seu tempo para fazer o movimento, não pode fazer todo mundo igual. "Ah, mas isso é tradicional". Não que eu saiba... então isso é muito importante, de onde que vem cada um desses elementos que nós estamos considerando tradicional?" (TRALCI FILHO, Marcio Antonio. Artes marciais chinesas: histórias de vida de mestres brasileiros e as tensões entre a tradição e o modelo esportivo. Dissertação de Mestrado (Educação Física). São Paulo: Universidade de São Paulo, 2014. pp. 224-225.)

Calistenia, ginástica sueca. Fonte: Jesson, Tom. Upright and uptight: the invention of posture.

Jerônimo Marana:
Guilherme, pra responder a sua pergunta vou fazer um levantamento histórico e tentar escrever de um jeito fácil pra tentar ao mesmo tempo satisfazer a sua curiosidade natural de historiador e o público em geral pra que todo mundo possa acompanhar essa discussão. Vou dividir a resposta em vários comentários para deixar a leitura mais fácil para todo mundo.
Então pra entender a questão a gente precisa entender o processo de sistematização da educação física. Esse processo aconteceu na Europa, começou nas últimas décadas do século 18 e foi mais forte no 19. Então é preciso observar o momento pelo qual a Europa estava passando pra entender o contexto em que se deu essa sistematização.
Na segunda metade do século 18 estavam acontecendo as revoluções liberais, impulsionadas pela Revolução Francesa de um lado. De outro lado tínhamos a Revolução Industrial a partir de 1760. Vou voltar a falar da Inglaterra mais tarde, por enquanto vou me concentrar na Europa continental.
O século 18 foi o século do desenvolvimento da educação pública estatal. Já o 19 foi o século da formação dos Estados Nacionais e movimentos nacionalistas. Nessa época estavam ocorrendo as guerras contra a expansão do império de Napoleão. A educação física foi responsável por firmar o sentimento nacionalista na população na escola. Isso aconteceu por meio dos movimentos ginásticos, que iniciaram na Alemanha. Vou falar aqui dos movimentos ginásticos alemão, dinamarquês, sueco e francês.

Assista, aqui, ao vídeo de Jerônimo Marana sobre o conteúdo desta publicação.

O movimento ginástico alemão iniciou com um cara de sobrenome Basedow, que fundou uma escola em 1774, chamada Philantropum. Ele era influenciado pelas ideias educacionais de Rousseau, que dava muita importância pra saúde e educação física. A ginástica praticada era naturalista, envolvia vários tipos de exercícios praticados na natureza.
Aí veio um cara chamado GutsMuths, que fundou um instituto educacional semelhante. É importante guardar o nome dele pra entender o processo. Ele elaborou um sistema que ficou conhecido como ginástica natural. Ele teve influência sobre o sentimento nacionalista alemão a partir de 1806 após a invasão da França. Ele acreditava que a ginástica tinha um alto valor patriótico e pediu que o Estado assumisse a organização e divulgação da ginástica.
O auge da relação entre educação física e nacionalismo na Alemanha vieram com um cara de sobrenome Jahn. Para ele a salvação da nacionalidade da Alemanha estava na educação. Ele criou um movimento chamado Turnen, em que a educação física tinha papel importante.  O objetivo imediato dele era o fortalecimento físico e moral da juventude para libertar a Alemanha. Na guerra de libertação em 1813 ele e vários turneres se juntaram ao exército. Aí com a expulsão dos franceses o movimento ganhou força.
Em 1868 foi formada uma federação de todas as sociedades ginásticas alemãs. Durante a guerra franco-prussiana em 1870-71, que levou à unificação da Alemanha, 15 mil membros da federação se apresentaram para o serviço militar. Mas o sistema ginástico implantado nas escolas alemãs foi o de um cara chamado Spiess. Ele dava ênfase na disciplina e buscava o desenvolvimento eficiente e completo de todas as partes do corpo. Esses objetivos eram alcançados por meio da SUBMISSÃO, treino da memória e RESPOSTAS rápidas e precisas ao COMANDO.
É importante dizer aqui que o Movimento Jovem Hitleriano era um sistema extracurricular de educação física.
O movimento ginástico dinamarquês começou depois da perda de território para o império napoleônico e de uma crise econômica que durou de 1814 a 1820. A partir daí emergiu um sentimento nacional. Nesse período, um cara chamado Nachtegall liderou o movimento de consolidação da educação física dinamarquesa. Ele foi influenciado pelo GutsMuths, o sistema ginástico dele fez muito sucesso e atingiu o meio militar.
Em 1804 foi fundado Instituto Militar de Ginástica, tendo Nachtegall como diretor. O instituto acabou se tornando uma escola preparatória de professores de ginástica para a escola e passou a admitir civis também. Então a educação física entrava na escola sob influência militar. A Dinamarca foi o primeiro país a introduzir a educação física como matéria escolar. A ginástica se tornou obrigatória em todas as escolas elementares da Dinamarca. Como em muitos países europeus, um dos objetivos da educação física dinamarquesa era o desenvolvimento do patriotismo e da competência militar.
Agora a gente chega na ginástica sueca, que é o ponto da sua questão. A conquista da Finlândia pela Rússia no século 19, fazendo o império Sueco perder território, desencadeou um sentimento nacionalista na Suécia. Nessa época, um cara chamado Per Henrik Ling estava começando seu próprio movimento ginástico. Ele usou a ginástica e literatura para instigar coragem força e coragem no povo.
Como era influenciado por Nachtegall, ele propôs ao governo a fundação de uma escola nacional semelhante ao Instituto Militar de Ginástica da Dinamarca. Então em 1813 foi fundado o Real Instituto Central de Ginástica e Ling foi seu diretor por 25 anos. Em 1838 ele escreveu um manual militar de ginástica e esgrima. Esse manual foi adotado oficialmente não só pelo exército sueco, mas também de outros países.
Ling dividiu a educação física em quatro frentes: médica, militar, pedagógica e estética. Porém, ele mesmo se dedicava mais à médica e à militar. A militar tinha o propósito de elevar a condição física dos soldados. Para isso, ele enfatizava o vigor na ação e a capacidade de suportar esforços. O sistema criado por Ling se difundiu para vários países dentro e fora da Europa. Então aqui se justifica a influência sobre o Japão e posteriormente a China. Os sistemas ginásticos desses países se espalharam por todo o mundo, principalmente os de Jahn, Nachtegall e Ling.
Na França a ginástica só foi introduzida a partir da derrota de Napoleão, entre 1815 e 1848, começando no exército. Em 1852 foi fundada a Escola Militar Normal de Ginástica de Joinville-le-Pont. Ela foi responsável por suprir de professores não só o exército, mas também as escolas. A título de curiosidade, essa escola exerceu influência importante no Brasil.
A derrota na guerra franco-prussiana foi atribuída à degeneração física e moral. Então a ginástica se tornou obrigatória no currículo escolar. Graduados na Escola de Joiville-le-Pont e militares eram enviados como professores. Eles receberam instrução expressa para aumentar as potencialidades militares dos jovens.
Então muito da postura pedagógica autoritária em diversas práticas de educação física que existem até hoje tem influência nos movimentos ginásticos do século 19. Como característica elas tem o ensino frontal (todo mundo de frente para o professor) e o exercício coletivo dirigido pela voz de comando e pelo apito. A racionalização e a mecanização dos séculos 19 e 20 contribuíram para transformar a ginástica escolar em movimento uniforme e automatizado de massa. Isso já responde parte da sua pergunta. Mas vamos em frente, que agora vou voltar à Inglaterra.
Por causa da posição geográfica e do poder da marinha Inglesa, a Inglaterra não passava pelos mesmos conflitos que a Europa continental. E ali estava nascendo o capitalismo. Então enquanto aconteciam os movimentos ginásticos na Europa continental, na Inglaterra acontecia o movimento esportivo.
A Inglaterra demorou mais para estabelecer seu sistema público educacional. O esporte, que antes era prática da aristocracia, passou a permear outras camadas sociais até chegar na escola. O modelo de educação física de toda a Europa era ginástico, com exceção da Inglaterra, que era esportivo. O esporte, suas regras e organização correspondia às demandas da economia capitalista e da organização social que emergiam por conta da Revolução Industrial. Então enquanto a ginástica desenvolvia a obediência e submissão, o esporte ensinava a socialização, autodisciplina, iniciativa e liderança. Essas eram qualidades necessárias para a administração do império britânico e de suas atividades econômicas.
Somente em 1870 que o governo apoiou um sistema de educação física mantido pelo governo. Na ocasião do Ato de Educação de 1870, os sargentos passaram a ensinar educação física nas escolas. Só que o modelo adotado foi o modelo ginástico Sueco de Ling, que foi introduzido na Inglaterra entre 1840 e 1850.
Em 1904 o sistema sueco foi adotado oficialmente nas escolas, gerando uma dualidade na educação física nas escolas inglesas. Nas escolas públicas eram ensinados os esportes, objetivando formar bons chefes de empreendimento e bons oficiais. Nas escolas primárias se trabalhava a ginástica, com o objetivo de formar bons operários e soldados.
Acho que este último parágrafo responde a sua pergunta sobre até que ponto este tipo de treinamento pode ser útil ou danoso, se tem vantagem em se treinar assim em algum momento e com qual frequência. Como o Léo Imamura citou, a padronização suprime a individualidade. Cada aluno tem o seu ritmo, que precisa ser desrespeitado em prol da coletividade. E geralmente são os alunos de ritmo mais lento e menor capacidade física que precisam ignorar a sua individualidade para acompanhar os alunos fisicamente mais aptos.
Então agora eu devolvo para você as mesmas perguntas que você fez para mim. O que você acha deste tipo de treinamento? Até que ponto ele pode ser útil, até que ponto danoso? Há vantagem em treinar assim em algum momento? Com que frequência?

Guilherme Amaral Luz:
Complicado responder de forma muito simples. Mas o fato que talvez já responda é como eu lido com isso na prática, como aluno e como professor. Como aluno, eu faço; como professor, não uso esta metodologia. Como aluno, aproveito para uma coisa que, de algum modo, é bastante útil: gastar calorias. Como professor, não tenho gasto calórico como objetivo, por isso, não utilizo. Sei que, mesmo para gastar calorias há métodos mais eficazes e menos alienantes, mas, como professor/instrutor, nem me preocupo com isso, pois o que eu ensino (ou procuro ensinar) é o oposto deste trabalho alienante: autoconhecimento, reflexão e conexão integral entre o físico, o mental (inclusive o cognitivo), o psíquico (inclusive o emocional), o ético, o espiritual e o cultural. Meu instrumento mediador dessas conexões é o corpo, porém mais na sua dimensão técnica ou artística do que atlética (muito menos na sua variação ginástica ou militar).
Nesse sentido, compreender a técnica e colocar esforço no seu entendimento "correto" é mais importante para mim do que desenvolver resistência ao esforço, por exemplo. Também neste sentido, compreender o próprio ritmo, os próprios limites e potencias é central, o que contradiz à ideia de trabalho uniforme. Em suma, sendo bem claro, eu não gosto nem um pouco do método e me submeto a ele apenas por uma questão de hierarquia na academia. Aproveito para conseguir os benefícios possíveis, mas, quando tenho as rédeas do processo, faço de outro modo. Acho um método, em geral, danoso, tanto do ponto de vista ético, quanto técnico e, talvez, à saúde.
Uma última coisa que eu gostaria de comentar é sobre a sua presença nas artes marciais chinesas. Ele foi sendo construído miticamente como algo milenar, sendo vendido como expressão daquela ideia de kung fu como "esforço". Os treinamentos "desumanos" que aparecem em filmes desde a década de 1970 ou os supostos treinamentos extenuantes de "monges" Shaolin são alguns investimentos neste mito. Isso é muito ruim por divulgar estereótipos ligados ao kung fu, aproximando-o de algo extraordinário ou que poucas pessoas aguentam praticar. Isso pega muito quando eu encontro pessoas da minha geração ou mais velhas que praticaram kung fu na juventude e não cogitam voltar. Muitas dizem que não têm mais físico para isso ou alguma lesão que as impediriam de realizar "aquele" ritmo de treinamento. Como se fazer kung fu significasse necessariamente a prática de uma ginástica deste tipo, não houvesse outros meios, nem possibilidades de adaptação.

Jerônimo Marana:
Exatamente. Vale ressaltar que no início do século passado as artes marciais incorporaram exercícios da educação física, a corrida é um exemplo. Isso aconteceu, por exemplo, na Jingwu e na Academia Central de Guoshu. Aqui dá pra estabelecer alguma relação com o Zhong Wudao, não é?

Treinamento típico da Associação Jingwu de Xangai no início do século XX. Fonte: JUDKINS, Ben. Reevaluating Jingwu: would Bruce Lee have existed without it?

Guilherme Amaral Luz:
Acho que dá sim, pensando no Zhong Wudao como herdeiro tanto da Jingwu quanto da Academia Central de Guoshu. Sem falar no passado militar do Mestre Lin Zhong Yuan, que foi combatente na guerra civil, lutando no lado do Guomingtang. Mas o Fabrício poderia falar mais disso. De todo modo, pelo que ele andou pesquisando, o projeto do Zhong Wudao desdobrou-se, posteriormente, na proposta do Shang Wumen, que, em comparação com a ideia do Zhong Wudao, tem um caráter mais "interno" e envolve muito trabalho de meditação. Suponho que este caráter ginástico não deve ter persistido na proposta do Mestre Lin. O problema é que é difícil saber, pois ninguém aqui do Brasil, dentre os alunos do Mestre Sheng (ou qualquer outro), foi para Taiwan estudar diretamente com o Mestre Lin. E o Mestre Sheng veio para o Brasil muito cedo. Quando o Mestre Lin publicou o artigo sobre o Zhong Wudao, o próprio Mestre Sheng só o conhecia em manuscrito e já estava vivendo aqui no Brasil. Todo este desenvolvimento posterior do Shang Wumen ficou perdido para nós (praticantes brasileiros) e mesmo o Zhong Wudao que recebemos, provavelmente, é bem modificado pelo Mestre Sheng. O Zhong Wudao do Mestre Sheng tem muito destas características atléticas que você comentou. É um modelo que funcionou muito bem por aqui no início, até porque os primeiros alunos do Mestre Sheng tinham um perfil de muita força física. O pessoal mais antigo comenta a respeito do treino como algo muito puxado e também muito disciplinar, neste sentido de algo meio "militarista". Ainda temos muito desta herança por aqui.

Estudo para antigo logo da Wushukwan, academia do Mestre Huang Yu Sheng, nas décadas de 1990-2000, em Uberlândia.
Percebe-se uma apropriação do nome da Associação Jingwu, grafada como Chin Woo (outro modo bem usual no Ocidente), juntamente com o símbolo do Zhong Wudao do Mestre Lin Zhong Yuan. A academia, contudo, não tinha nenhum vínculo formal com a Associação Jingwu. Acervo pessoal de Guilherme Amaral Luz de documentos digitalizados a partir de originais da antiga academia.

quarta-feira, 11 de outubro de 2017

A Natureza das Artes Marciais - Por Sifu Robson Macedo

Mais uma vez, com muita honra e alegria, recebemos, para este blog, um texto do Sifu Robson Macedo. Agora, ele nos enviou um artigo originariamente escrito há mais de 20 anos, porém com atualidade total. Nele, Sifu Robson expressa a sua compreensão a respeito dos sentidos da prática das artes marciais, dos seus objetivos e aspectos éticos.

Texto original extraído da Revista Fatal Artes (1996) pp. 26-27.

Muito obrigado, Sifu, por mais esta bela contribuição!


Artigo em sua versão e publicação original.

A Natureza das Artes Marciais

Por Sifu Robson Macedo

Seguindo por princípios advindos de uma compreensão profunda das forças do universo em que do microcósmico ao macrocósmico, vê-se a eterna dança da contração e expansão, do atrair e repulsar, da rigidez e da suavidade, facetas de uma energia primordial única que em tudo se apresenta, os grandes sábios orientais, sintetizaram movimentos físicos que alicerçados nestes princípios permitiram a harmonização do ser com o universo em sua dinâmica, conscientizando-o desta energia em seu eterno fluir. Ao longo dos tempos foram transmitidos por castas selecionadas, e levados a outros povos do oriente, e desenvolvidos de outras formas, sendo aplicados das mais diversas finalidades, como por exemplo, na preparação do monge budista para suportar as extensas horas de meditação.
 As necessidades de uma época direcionaram moldagem e adaptação destes princípios para a autodefesa, pois um indivíduo através da atitude consciente de aplicação da força conseguiria facilmente dominar qualquer ofensor, permitindo, por exemplo, aos monges se defenderem dos assaltantes em suas longas peregrinações. Assim, foram despertando a atenção e curiosidade dos homens agressivos que se viram atraídos pelo poder que poderiam ter com esta capacidade.
O paradoxo estava lançado, o que outrora fora desenvolvido para prazer, harmonia e paz, via-se aplicável para a guerra. Mas graças à essência de sua natureza, todo aquele que se dedica a essas práticas, imperceptivelmente, na medida em que se desenvolve, torna-se cada vez mais sereno e pacífico, transformando o homem agressivo e rude em tranquilo e autocontrolado.
Muitos Mestres, hábeis nestas práticas e conscientes destes princípios, refinaram suas técnicas com grande eficiência para o combate corpo a corpo, permitindo aqueles que a elas se dedicaram, tornarem-se grandes lutadores pela justiça, paz, amor e harmonia.

Também surgiram alguns alunos que se julgaram “mestres”, devido a sua grande habilidade em luta, pararam no caminho, deturparam antigos ensinamentos, e criaram estilos próprios tolhidos dos princípios maiores, limitados por natureza à força física e agressiva, “desenvolvendo-se” como verdadeiros animais estúpidos e vazios. Atualmente, em parte, o mundo ocidental valoriza muito mais esta agressividade; devido talvez à selva em que vivemos, onde vinga o conceito que: só os “fortes” sobrevivem.

Violência gera violência, e cada vez mais o adepto deste conceito ficará perdido e iludido que está no caminho certo, preocupado com o mais forte, e temeroso de ser vencido, totalmente instável emocionalmente, arrogante, insensível e doente. “A capacidade de luta é apenas a migalha que cai da mesa, um método para atingir o princípio maior”. Cabe ao postulante avaliar bem o que deseja para si, e não se iludir com propostas de resultados inatingíveis, e com sonhos infantis de super-heróis.

Considerações Finais:

A força como tudo na vida é um conceito relativo, físico; a força do homem está sim na sua sabedoria e sensibilidade, características de um ser tranquilo e saudável, que se alia a força da natureza, que é infinitamente poderosa. Logo, a verdadeira arte marcial é aquela que orienta o homem neste sentido e que conserva em si um legado. A joia dos antigos princípios, ou seja, a pedra filosofal dos augustos ensinamentos, preservados para as futuras gerações.

Nossos agradecimentos a todos os Mestres por ter trazido esta arte marcial para nosso convívio. Em particular, agradeço ao meu Sifu, Mestre Li Hon Ki (RIP), pelos seus ensinamentos, por sua dedicação e amor a esta Arte.
Muito obrigado a todos

terça-feira, 10 de outubro de 2017

Todos amamos o UFC? Falácias e bravatas da era digital.

Hoje, por sugestão de um amigo, assisti a um vídeo no Youtube que se dispunha a elencar seis motivos pelos quais o Kung Fu não prospera no UFC. A sugestão veio acompanhada de contrapontos bastante enfáticos a todos estes supostos seis motivos. No final, não achei o vídeo ruim, apenas limitado, pois, restrito àqueles que procuram no MMA um modelo de vivência das artes marciais, ele é bastante pertinente e coerente. Porém há uma grande falácia, uma enorme bravata no vídeo que precisa ser escancarada e repensada. Segundo o rapaz, não há nada além de covardia e medo que justifique a ausência de praticantes de Kung Fu no MMA ou no UFC, pois, segundo ele, todo mundo que busca a prática de uma arte marcial, no fundo no fundo, adora os espetáculos promovidos por esta indústria.

Eu gostaria de crer que as opiniões do jovem youtuber fossem apenas resultado de imaturidade e irreflexão, crise de testosterona ou empolgação pueril. Porém, não é. As falácias e bravatas são típicos instrumentos de autopromoção na internet brasileira. Por meio de polêmicas e sensacionalismo, criam-se as legiões de fãs e, junto com eles, as multidões de inimigos. Por bem ou por mal, ganham-se visualizações, likes e publicidade gratuita, numa cadeia formidável de compartilhamentos em redes sociais. Neste caso, chamar praticantes de kung fu que resistem ou não gostam de MMA de covardes, ultrapassados e hipócritas é sinal menos de mediocridade do que da mais profunda má fé sensacionalista.

Uma das características próprias das artes marciais asiáticas é a multiplicidade de formas por meio das quais elas se ocidentalizaram. Algumas, como o Sumô e o Kendo japoneses, mesmo tendo assumido um caráter esportivo, mantiveram profunda relação com as suas origens étnicas, culturais e filosóficas. Outras, como o Aikido, persistem ainda hoje alheias à esportivização. O Karatê, hoje olímpico, precisou esperar a morte de Funakoshi para estabelecer as suas primeiras competições. Jigoro Kano, o homem que levou as Olimpíadas para o Japão, era um crítico ferrenho da prática do Judo como esporte competitivo. As diversas disciplinas do Budo sempre pensaram no esporte, no mínimo, como secundário na vivência marcial. Não se propunham como modalidades esportivas de luta, mas como caminho marcial de educação e auto cultivo. Isso não impede que praticantes dessas artes se tornem lutadores e competidores, mas é absolutamente falso dizer que quem as procura, no fundo, gosta é de ver sangue no octógono e só não admite por "medinho", por "desculpinha"...

No universo das artes marciais chinesas (tradicionais), é semelhante. O objetivo primordial da prática nunca foi a competição. Não estou afirmando que as competições não existam, não existiram nem que não devam existir. Afirmo tão somente que elas não estão nem nunca estiveram no centro da prática. Quando as artes marciais chinesas começaram a se massificar, entre o final do século XIX e o início do XX, o que se buscava era sobretudo um modelo nacional de educação física, entendendo-o como instrumento para a edificação do povo chinês, recuperando a saúde, a dignidade e a auto-estima nacionais. Várias das escolas que conhecemos e praticamos hoje são herdeiras desta perspectiva das artes marciais chinesas como formativas do caráter (pessoal e social) do praticante. É atrás disso que muita gente vai.

Nem todo mundo que entra para o Kung Fu vai atrás de se tornar uma estrela do UFC. Uma grande parte não entra nem interessada em competir. Várias são, inclusive, crianças levadas pelos seus pais, que procuram uma atividade, ao mesmo tempo, boa para a saúde do corpo e construtiva como complemento ao processo de educação. Nada impede, de fato, que, com adaptações, o Kung Fu (e mesmo o Tai Chi, como já vimos em outros textos deste blog) participe de um diálogo com o MMA; porém, reduzi-lo ao destino inexorável de promover este diálogo, é falácia e bravata.

Há espaço nas artes marciais (chinesas) para diversos públicos, com as suas diversas motivações e vários interesses. Há espaço, inclusive, para os lutadores, os esportistas e os competidores. Não deveria haver espaço para bravateiros, que desrespeitam seus colegas, denigrem a arte e caçoam de seus professores apenas para conquistar likes e visualizações, moeda contemporânea para quem almeja um lugarzinho ao sol neste império de mediocridade das celebridades virtuais. Quem quiser ir para o MMA que vá. Boa sorte, mas respeito e gratidão não são coisas que se ensinam por lá, como se pode perceber pelo comportamento de alguns de seus fãs.

segunda-feira, 25 de setembro de 2017

Treinamento: inventividade e o prazer dos desafios.



Hoje, abrimos espaço neste blog para uma publicação diferente. Temos mais um importante convidado, o Professor Roberto Cardia. Ele nos autorizou a reproduzir textos e imagens publicados em seu perfil no Facebook no nosso blog. Dentre quatro publicações que ele nos sugeriu, escolhi duas delas para mostrar aqui. No caso, duas publicações que relatam a inventividade do treinamento, combinando grandes desafios físicos e técnicos com a integração do homem ao ambiente que o circunda e com a sua história. Treinos ao ar livre são excelentes meios de compreender melhor os movimentos e os seus efeitos em distintas condições. Mais ainda quando exploram a bela paisagem e a rica natureza da cidade do Rio de Janeiro, inseparável também de histórias e tradições. O leitor deste blog terá a possibilidade de conferir um relato de experiência de treinamentos de Taekwondo em plena Mata da Tijuca, em escadarias originalmente esculpidas por escravos no século XIX e em pontes estreitas presentes na trilha.
Roberto Cardia, é professor de Taekwondo no Rio de Janeiro e um dos pioneiros no ensino desta arte marcial para portadores de deficiência visual. É autor dos livros "Taekwondo Arte Marcial e Cultura Coreana", volumes I e II, e um importante estudioso da cultura das artes marciais em nosso país. É uma grande alegria recebê-lo neste espaço. Obrigado, professor Roberto Cardia, pelo seu depoimento de memória.

Nas Escadarias do Pico da Tijuca

Por Roberto Cardia



Em toda minha jornada de praticante sempre quis os treinamentos mais duros possíveis porque acreditava que a repetição e o esforço físico me levariam em ao menos um degrau acima do que já estava. Desenvolvi várias formas de treinamentos as quais me deram resultados positivos. Entretanto, uma parte de mim, queria manter a dificuldade com bons resultados, mas com modificações nos treinos ao ar livre que já estavam repetitivos. No ano 2000 os esportes radicais estavam com tudo e neste enredo já estava pensando em algo radical também, procurando por lugares/espaços diferentes para minhas novas atividades. Uma das ideias que tive e gostei muito de praticar foi a subida de 118 degraus de rocha no Pico da Tijuca (vale a pena pesquisar pela história da construção destes degraus). Algumas partes são bastante íngremes e outras expostas ao risco de queda e rolamento. A caminhada era notória assim como algum treinamento que faria com o Felipe, um dedicado aluno que sempre me acompanhava. Ao chegar no pé da escadaria, onde dá acesso ao cume com uma visão maravilhosa, pedi para ele segurar a raquete enquanto subia. Ele foi subindo de costas segurando a raquete enquanto eu chutava ogul bandal chagui (chute circular na altura da cabeça). Não foi muito fácil porque o ambiente não é plano e simétrico assim como havia vento, sol e o cuidado de não cair ou me lesionar de alguma forma. As correntes ao lado, bastante grossas por sinal, eu recusava em amparar-me para que pudesse treinar o equilíbrio. Muito difícil! Isto ocorreu em março de 2001 e confesso a vontade de refazer o treinamento, mas se voltar o registro fotográfico deverá acontecer. A foto acima é de 2013 quando levei meus filhos lá, as restantes eu copiei na internet. Talvez tenha sido o primeiro a chutar subindo as escadarias esculpidas inicialmente por escravos no século XIX e depois reformados no século XX. Vale a pena unir história com treinamento de Taekwondo.


Antes do treinamento de subida das escadarias dos 118 degraus do Pico da Tijuca, estava em uma de minhas caminhadas na Floresta da Tijuca com finas de treinamentos técnicos de Taekwondo (1999). Resolvi treinar chutes em uma ponte ligeiramente estreita com intenção de realizar um ogul mondolio chagi (chute por trás desferido geralmente com o calcanhar, mas na altura da cabeça) e também com um ogul bandal chagi (chute semi circular na altura da cabeça, geralmente com o peito do pé). A ponte balançava muito, parecia que iria ruir e mesmo assim eu não queria me respaldar com as mãos na corda, pois precisava da dificuldade para vencer o novo obstáculo que me propus a realizar. A maior dificuldade foi executar o primeiro chute mencionado anteriormente porque precisava girar com a perna dobrada, elevar/esticar/puxar com a intenção de desferir o golpe em um ângulo muito menor do que o convencional, onde a altura das cordas não ajudava: era um pouco alta para execução da técnica apontada. O treinamento foi rápido, mas muito importante para refletir o quanto podemos chegar no alvo mais rápido e com técnicas que têm um trajeto diferente ao tradicional. As fotos apresentadas foram coletadas na internet e me parece que a ponte foi restaurada. Como sempre o meu grande amigo de treino foi o Carlo Felipe e o nome da ponte é “Ponte Pênsil”, localizada no Rio de Janeiro, na Floresta da Tijuca. Também não bati foto do treino desta vez, ficando apenas na memória de dois praticantes.

sábado, 16 de setembro de 2017

Chi Kung: dissipando mitos e equívocos - Sifu Robson Macedo


Mais uma vez, o blog Caminhos Marciais e Humanidades recebe a colaboração de um convidado. Temos a honra e a alegria de receber um texto do mestre Robson Macedo, uma das grandes referências das Artes Marciais Chinesas no Brasil.

Sifu Robson Macedo pratica Kung fu Hung Gar a mais de 35 anos. Formado em Educação física. Foi discípulo do renomado mestre  chinês Li Hon ki, tendo aprendido do seu mentor: Kung Fu Hung Gar, Tai chi Wu Dan e TCM. Foi fundador da Primeira Federação de kung Fu do estado do RJ (FKFERJ), bem como fez parte do Conselho de Mestres do Brasil, que por hora criou a Primeira Confederação de Kung Fu do Brasil (CBKW).

Neste texto, escrito originalmente há pouco mais de um ano, Robson Macedo nos apresenta a sua concepção de Chi Kung (ou Qigong, a depender do sistema de romanização) e indica algumas das suas potencialidades como prática voltada à educação integral. Trata-se de temática fundamental. O Chi Kung está presente na essência das artes marciais e também da Medicina Tradicional Chinesa. O conceito de Qi (Chi) ou Ki (no japonês) é indispensável para a compreensão plena das artes marciais como "caminho", tendo destaque central na proposição de todos os grandes mestres do Budo e das escolas tradicionais de "Kung Fu".

Muito obrigado, Sifu Robson Macedo, pela generosidade e pelos ensinamentos contidos neste texto. Xie xie!


Chi Kung: dissipando mitos e equívocos

Por Robson Macedo

Dê-me uma alavanca e um ponto de apoio, e eu moverei o mundo”.
Arquimedes


Desde quando comecei a treinar “Chi Kung” com o meu Mestre, sempre ouvi e li a respeito das coisas extraordinárias que eram possíveis de se realizar ao dominarmos estas práticas. Tais relatos versavam de exímios praticantes que tinham despertado vários poderes: quebravam vários tijolos com a cabeça e com socos, andavam sobre cacos de vidro e pregos, passavam através de paredes, curavam à distância e até desenvolviam o dom da levitação e invisibilidade. Por ser o “Chi Kung” uma disciplina regular do Tai Chi Chan e do Kung Fu Hung Gar no “curriculum” da escola do meu mentor marcial, fui introduzido nesta prática muito cedo.
“Chi kung, Qi Gong ou Kikō (em chinês simplificado: 气功; chinês tradicional: 氣功; pinyin: Qìgōng; Wade-Giles: ch'i4 kung1; em japonês: kikō (気功); em tailandês: ชี่กง) é um termo de origem chinesa que se refere ao trabalho ou exercício de cultivo da energia. Estes exercícios têm a finalidade de estimular e promover uma melhor circulação de energia Chi (energia vital) no corpo, ou seja, treino e desenvolvimento da energia (do corpo humano).” Fonte: https://pt.wikipedia.org/wiki/Chi_kung
Dos mais conhecidos, podemos citar as técnicas ou Postura da Árvore (Zhan Zhuang Chi Kung), a postura ou técnica do Chi Kung da Tartaruga Dourada, Chi kung da Camisa de Ferro, Chi Kung da Palma de Ferro e tantos outros. Com o tempo, inquiria-me ansiosamente e silenciosamente quando que Sifu Li Hon Ki iria me ensinar a “atravessar as paredes... (???)”


Nos mais de 35 anos de prática e ensino, percebo que estes mitos ainda são vigentes. Encontram-se bastante arraigados na cultura ocidental, presos talvez a nossa ancestralidade e que ao lado da vertente “filosófica”, muitas superstições associadas a algum panteão, continuam vivos até hoje, ao menos dentro do universo marcial que estou inserido. Pensamos sempre na via mais fácil, com atalhos, e que esse caminho tem uma relação com fatores externos ao nosso ser.

Desde que me conheço como indivíduo e faço parte do campo das artes marcais comumente me deparo com espetáculos em que os executantes fazem coisas extraordinárias, totalmente fora da nossa realidade. Monges de Shaolin viajam o mundo fazendo demonstrações fantásticas com números que transcendem nossa lógica e compreensão, sem falar é claro, dos filmes de Kung Fu que também retratam e enfatizam estes feitos marciais sobre-humanos.

Um ancião que estava à margem de um rio encontrou Buda e lhe disse: Passei toda a minha vida treinando e agora consigo caminhar sobre as águas do rio. Então Buda respondeu. “É mesmo, mas eu prefiro atravessar o rio de barco.”
Sabemos que, no passado, certos artistas marciais na China se concentravam e criavam ilusões “denotando um domínio excepcional de poderes mágicos”. Pessoas que podiam realizar proezas, como elevar pesos que contrariavam as leis de gravidade e a capacidade humana, pessoas capazes de voar e de se teletransportarem e outras que tinham o poder da telecinesia, ultrapassando os limites da física clássica e da biomecânica. No entanto, estes números eram apenas de ilusionismo.

Do mesmo modo, o ocidente também tem seus mágicos, como os conhecidos Mister M e o David Coperfield. Este último já voou o Gran Canyon (próximo a Las Vegas nos EUA), fez desaparecer a Estátua da Liberdade, sumiu com um avião e atravessou a exuberante e imponente Grande Muralha da China. Porém, torno a afirmar a redundante assertiva de que tudo não passa de mágica, que são truques, ou melhor, números de ilusionismo.
“No cinema, “aceitar” essas liberdades não é diferente, vemos um homem que nasce velho e cresce até virar bebê. Em outro cenário cinematográfico, um mundo habitado por trolls, elfos, Orcs, homens de 200 anos e magos poderosos. Em outra história, vemos um grupo de pessoas que vive em uma realidade imaginária e que, despertados, luta contra as máquinas, que dominaram o mundo e induzem toda a humanidade a um sono hipnótico.” Fonte: http://www.upf.br/pontodecinema/?p=447
Ao assistirmos a um show de ilusionismo em que uma moça seja serrada ao meio, temos a lucidez de saber que não foi mágica (algo real) e sim que se tratava apenas de técnicas de ilusionismo, mas que para que tivéssemos “o barato do show”, eliminamos o ceticismo e nos divertimos com “os poderes sobrenaturais dos artistas”. E então a razão nos faz a seguinte pergunta: "como podemos aceitar tamanhos absurdos sem contestar em nenhum momento o que estamos vendo à nossa frente?"

Do ponto de vista sócio histórico, o lúdico é um fenômeno cultural e não biológico, Huizinga (2008). A “mágica ou a ilusão” está carregada de valores afetivos e relacionais que envolvem o encantador e o encantado, o sedutor e o seduzido, ou seja, repleto de "ludicidade". Por isto somos capazes de assistir um filme ou um show e ficarmos extasiados, e tudo isto graças a um determinado “estado mental permitido”. Esta ideia denominou-se como “suspensão voluntária da descrença”, termo tradicionalmente aplicado no cinema, na literatura, no teatro e até em jogos dos games.

Por outro lado, se sairmos do show ou cinema e alguém quiser nos vender um carro voador, mesmo que o vendedor possa demonstrar algo que tente nos convencer de que de fato o carro voa, precisamos exercer o nosso ceticismo para não sermos enganados. Como se diz no popular: “levar gato por lebre”. De alguma forma em outros filmes, o simples fato de um homem pular de um telhado, cair rolando no chão e sair correndo nos faz exclamar que “ele deveria ter quebrado a perna ali, não poderia seguir correndo?” Não aceitamos a cena, discordamos da fantasia, isto porque neste instante estamos exercendo o ceticismo, o nosso raciocínio crítico. A “suspensão voluntária da descrença” permite que aceitemos certos absurdos e a ausência deste estado também nos faz que não perdoemos coisas bem mais simples...

O cultivo do “chi ou da energia” no ser humano é de fato um compromisso que assumimos com nós mesmos e com o nosso desenvolvimento e isto se traduz em treino e muito treino, sem firulas, ilusões, truques, sem devaneios e sem fórmulas mágicas. Leva muito tempo, sendo fundamental a paciência, muita prática e os resultados refletem nas atividades simples da vida diária (AVD) que são as nossas atividades ordinárias (estas mesmas do cotidiano), nada do outro mundo que contrarie leis e princípios universais. Os exercícios não são fórmulas transcendestes de saúde eterna e longevidade, mas processos que nos ajudam a “estarmos no aqui e agora”, vivendo o presente e aprendendo a lidar da melhor forma possível com as demandas da vida, com as impermanências e intempéries da existência, sempre em conformidade com as nossas reais potencialidades e limitações.

“Entre a força e a técnica, vence a técnica. Se a força e a técnica forem iguais, vence o Espírito.” (Miyamoto Musashi)
A filosofia chinesa ou pensamento chinês tem seus primórdios, suas raízes em priscas eras, com tratados e prolegômenos sobre política e ética:

"A filosofia chinesa corresponde ao pensamento filosófico que foi desenvolvido na China ao longo de milhares de anos. Se caracteriza pelo aspecto prático, procurando orientar o ser humano sobre como se portar com harmonia em sua vida cotidiana, em oposição à especulação teórica pura típica da filosofia grega. O conceito de união com a natureza e o conceito de forças opostas Yin Yang do taoismo também são elementos capitais na filosofia chinesa, bem como a ênfase na benevolência, justiça, retidão e respeito à autoridade. Como uma de suas obras fundamentais, cita-se o "Livro das Mutações", ou I Ching". Fonte: https://pt.wikipedia.org/wiki/Filosofia_chinesa

O “Chi Kung”, em sua gênese, é uma arte de “recarregar as nossas baterias”, de reorganizar a estrutura corporal, otimizando o seu potencial energético. De uma forma harmoniosa, busca fundir relaxamento, movimento, serenidade, concentração e disciplina - aspectos que são inerentes a essas “práticas energéticas”. O treino consiste de posturas que são alternadas com exercícios dinâmicos, onde se enfatiza o aquecimento e trabalha exercícios que auxiliam uma maior compreensão do método, sendo este apenas uma ferramenta meio.

“Chi Kung” é “filosofia oriental” com ciência ou vice-versa, pois:

“A ciência do Qigong é baseada no axioma de que a mente tem a capacidade de dirigir o chi. Você pode praticar qigong e começar a sentir os nervos, e esta capacidade aumenta com o tempo. Você pode literalmente aprender a ir dentro do seu corpo com a mente, sentir o que está lá, e direcionar o seu chi, onde ele precisa ir. Este não é um processo misterioso, mas natural, que pode ser adquirido com o tempo e esforço.” Fonte: http://www.praticasalternativas.com/qigong.php


Considerações Finais:

Nos conceitos da Medicina Tradicional Chinesa, o trato com o corpo e a psique humana estão diretamente associados com a qualidade e quantidade da “energia chi”.  As artes orientais como práticas expressivas, psicossomáticas e integrativas buscam a harmonia e autoconsciência utilizando-se da experiência corporal. “Pela linguagem do corpo, você diz muitas coisas aos outros e o corpo antes de tudo é um centro de informações, sendo essa uma linguagem que não se mente, comunicação não verbal”, (WEIL, 1986). O lugar do corpo no paradigma do ser integral se apresenta tanto como o lócus da integralidade do ser dentro de uma visão teórica, mas também como um espaço por onde se é possível ensaiar e conhecer essa integralidade. O trabalho educativo destas práticas baseia-se na concepção de “corpo multidimensional” e na práxis que se objetiva em perceber estas dimensões, de modo que esse conhecimento não seja um falar sobre, mas sim um entrar em contato com, na busca do autoconhecimento. O “Chi Kung”, em linhas gerais é um método ou uma técnica de cultivar a nossa relação com a força da vida.


Meus Respeitos aos Ancestrais e a todos os Mestres das AMC !!!

Muito Obrigado a todos!


sábado, 12 de agosto de 2017

"Isso não é Taijiquan!" - compreendendo a arte marcial sem limitações




Desta vez, nosso blog abre espaço a um convidado que é mais do que de casa. Fabrício Pinto Monteiro é uma das principais referências técnicas e teóricas da Federação Mineira de Kung Fu Kuoshu. Tem sido o responsável pela padronização do seu Sistema Básico de Graduação e pela continuidade da formação técnica dos nossos instrutores e professores, dentre os quais me incluo. O Fabrício possui uma vida (tão longa quanto alguém tão jovem permite dizer...) dedicada às artes marciais chinesas. Começou a praticar o Zhong Wudao na academia do Ms. Huang Yu Sheng há mais de 20 anos. Hoje, como aluno do professor Niltoamar, importante referência em Uberlândia-MG, formou-se em algumas escolas: o próprio Zhong Wudao, o Nanbei Wudao (compilação de alguns estilos realizada pelo professor Niltomar e articulados conforme a sua leitura de arte marcial), o Wushu Moderno do Ms. Huang Hsiao Po e, atualmente, dedica-se à escola de Neijiaquan do Ms. Wu Tan Xien, de Hong Kong, representada, no Brasil, pelos seus dois filhos: Wu Tan Qing e Wu Tan Ming. Fabrício é também historiador de formação e professor na educação básica. Publicou já vários artigos e livros, sendo alguns deles sobre aspectos da história social do Kung Fu. Destaca-se, entre eles, "História das Artes Marciais Chinesas: Tradição, Memórias e Modernidade", no qual ele apresenta, após densa introdução ao desenvolvimento do kung fu na China, a proposta de Zhong Wudao do Ms. Lin Zhong Yuan, de Taiwan. Para finalizar, é preciso dizer que o Fabrício, além de um excelente amigo, é um parceiro sem o qual nosso programa e nossos projetos não existiriam. Sua interlocução, apoio e trabalho são indispensáveis para nós, de modo que não há agradecimento que seja suficiente no caso dele. Ainda assim, muitíssimo obrigado, Fabrício!

Vamos ao Texto!


"Isso não é Taijiquan!" - compreendendo a arte marcial sem limitações

Por Fabrício Pinto Monteiro


O tema deste texto não é exatamente novo, mas considero que sua discussão é interessante para que estudantes que estão começando sua prática nas artes marciais possam, desde o início, refletir sobre sua relação com as mesmas. Pensá-las um pouquinho além da atividade esportiva, por exemplo, e vivenciá-las como um Caminho mais amplo para suas vidas.

Para começar, deem uma olhada no vídeo abaixo:




Este é Nick Osipiczak, um lutador profissional britânico, praticante e professor de Taijiquan, Yoga e Qigong, que estuda as artes marciais internas para uso, entre outros focos, no MMA.

Não se preocupem! Não falaremos do desgastado assunto “Taijiquan funciona mesmo como arte marcial?”, ou ainda, “as artes marciais tradicionais são páreo para o MMA?”. A discussão aqui é outra e provém das impressões de várias pessoas ao assistirem um vídeo como o de Osipiczak, em que um lutador apresenta-se de forma explícita como praticamente de determinado estilo ou escola em um contexto esportivo de artes marciais mistas.

Em muitos comentários vemos afirmações como “Ah! Isso que ele está fazendo não é técnica de Taijiquan!”, ou, “Esse golpe é do boxe, aquele é do Jiu-jitsu, o seguinte é do karate etc.” Alguns chegam a clamar por um "Chicote Simples" ou um "Repelir o Macaco" e defensores da arte passam a jurar que viram uma "Agulha no fundo do Mar" aos 2:47…

NOTA: Chicote Simples (单鞭, danbian), repelir o macaco (倒撵猴, daonianhou)
e agulha no fundo do mar (海底针, haidizhensão exemplos de técnicas presentes na
Forma Longa estabelecida pelo Ms. Yang Chengfu na nomenclatura
pela qual são conhecidas em português no Brasil.

Tudo bem, mas será que cada arte marcial define-se por uma lista de técnicas que lhe são tradicionais? Existe uma geopolítica das lutas, em que o cruzamento de uma suposta fronteira é considerado uma afronta aos domínios de certa escola? E mais: desconsiderando o egoísmo infantil de alguns estudantes e professores que defendem que aquele chute bonito é propriedade de sua escola, nós mesmos às vezes não nos auto-limitamos? Não colocamos barreiras às nossas próprias artes quando, com certa surpresa ao perceber que em certo treino com um colega “saiu” uma técnica típica de outro estilo, nos policiamos para nos ater aos movimentos “originais” de nossa arte marcial?

Nick Osipiczak parece ter uma consciência muito clara de “onde está” seu Taijiquan no UFC, e ele a ensina de maneira bem direta em vários de seus vídeos e entrevistas. Como uma arte interna, o Taijiquan não se define por seus movimentos externos. É meio lógico, não? O Taijiquan (e, na verdade, qualquer outra arte marcial) não nos ensina simplesmente golpes fixos; ele não deve nos limitar, pelo contrário, deve expandir nossa consciência corporal e mental em direção a uma movimentação livre e natural. As artes marciais ensinam a nos movimentar, apenas isso. E esse “apenas” não é pouca coisa, certo? Movimentar-nos de forma mais eficiente, econômica, harmônica, flexível… Movimentos, de preferência, que gerem energia e aproveitem a que está ao nosso redor; não que consumam nossa própria energia até o esgotamento. Sendo um pouquinho mais profundo, as artes marciais nos ensinam como nos relacionar – nos mover, física e mentalmente - com tudo o que está ao nosso redor, tendo em vista essa harmonia e essa criação de energia. Tendo consciência desse ensinamento das artes marciais, começamos a escapar de sua vivência apenas como um esporte (o que continua sendo um aspecto válido e útil) e nos abrimos para experienciá-las como Caminho, como um todo em nossa vida.

“Tá”, você me responde, “mas que aquele gancho é do boxe, é!”. Tudo bem, você está certo. Chegamos aí em um outro aspecto importante das artes marciais: elas são históricas. A luta, a guerra como um todo são elementos humanos e históricos. Por mais que a propaganda do UFC afirme que o octógono é o “ambiente definitivo” de contenda entre dois homens ou mulheres, o cara-a-cara mais cru possível para testar a eficiência objetiva das técnicas de cada um, sabemos que isso é um exagero.

Em cada época e ambiente social, luta-se de acordo com formas aceitas e criadas por determinadas culturas. Não é difícil perceber como os atletas de lutas mistas lutavam de modos diferentes há 20, 40 e 100 anos, por exemplo. Cada cultura, nesse caso específico, temporalmente falando, possui um jeito “certo” e “eficiente” de lutar para aquele determinado grupo social. Claro que aproveita-se a experiência do passado, mas não há uma linearidade rumo ao “sistema perfeito” como muitos propagandeiam – senão, depois de milhares de anos de guerras, a humanidade já deveria ter chegado na arte marcial perfeita, não é?, uma arte que inexoravelmente venceria todas as outras.

Desde o século XIX, as nações ocidentais – e depois as orientais, desde os processos de domínio, colonização e influências culturais – tiveram alguns paradigmas fortes sendo construídos como parte da estética, da ética e da técnica consideradas “belas” e “boas” para as lutas de mãos vazias. Paradigmas que envolveram o boxe inglês, a luta romana e a esgrima francesa, sobretudo. Não vou usar a palavra “contaminar”, pois ela conota algo negativo e não se trata necessariamente de julgar isso como algo mal, mas essa cultura influenciou e influencia de várias maneiras diferentes nosso modo de lutar, independente da arte marcial praticada.

Uma luta é um diálogo, como se diz na capoeira, mas só existem respostas para as perguntas quando minimamente se fala uma língua parecida. Deve-se considerar a Huka-huka tradicional menos eficiente que o jiu-jitsu ao pegarmos um indígena do Mato Grosso e ele perder uma luta em um tatame? Acho que não. Lembram que o Anderson Silva tentou isso (ver o vídeo abaixo) e se deu mal enquanto as regras eram dos indígenas… mas, milagrosamente seu grappling voltou a ganhar eficiência logo que as regras mudaram para as dele…

NOTA: Huka-huka é uma arte marcial de algumas etnias indígenas do Mato Grosso, especialmente nas áreas
do Xingu e dos Bakairi. Trata-se de uma luta com forte conotação ritual, estando associada ao culto dos
ancestrais, na "festa" do Quarup, em reverência ao herói Mawutzinin. Atualmente, a modalidade
vem ganhando popularidade como uma arte marcial de caráter étnico e está inserida, assim como a
Capoeira e a luta Marajoara, em currículos de Educação Física na Educação Básica do Brasil.
O vídeo é uma clara peça publicitária para vender suco de açaí, fruta associada à região amazônica.




Voltemos agora a Nick Osipiczak e o taijiquan.

Há uma cultura, uma linguagem muito particular nas lutas de MMA e no UFC, traduzida em proibições e permissões de movimentos, duração dos combates, o que é considerado “vitória”, o papel da plateia, da mídia e patrocinadores no combate, a área onde a luta ocorre, o que se considera fairplay ou não e, sobretudo, as motivações de cada um estar ali. Se você não participar dessa cultura, não há luta: seja porque um deles será “derrotado” de forma rápida e estrondosa, seja porque um deles sequer estará lá.

O que o professor Osipiczak nos ensina é que o Taijiquan enquanto arte marcial consegue, se este for o desejo, participar desse diálogo. Seus princípios internos podem se manifestar externamente em palavras, quero dizer, em técnicas, em movimentos, que os demais envolvidos no MMA entendem. Ganchos, uppercuts, armlocks e tal carregam em seu interior projeções de energia, enraizamento, centros de equilíbrio, trabalho de respiração, desvios e redirecionamento de força, trabalhos de pernas e bases caríssimos ao Taijiquan. Mesmo não sendo fã dele, ou do UFC, recomendo voltarem depois a seu canal no Youtube, “Raised Spirit”, e conhecerem alguns dos vídeos instrucionais, bem como em seu website.

Você pode não gostar de suas lições ou considerar que suas pesquisas não estão sendo pertinentes ao Taijiquan ou ao MMA, mas é uma experiência muito válida que está compartilhando conosco.

Ah… e antes de terminar, um bônus para outra discussão: o Taijiquan de Nick Osipiczak é de estilo Yang, quando nos últimos anos estamos (mal) acostumados a pensar diretamente no Taijiquan Chen ao nos referirmos aos aspectos marciais dessa arte...

domingo, 6 de agosto de 2017

O que fazer quando um aluno questiona uma técnica?


Nosso blog, hoje, abre espaço para a colaboração do excelente educador em artes marciais, Jerônimo Marana. Jerônimo é educador físico pela Unicamp e possui formação em diversas artes marciais, especialmente o Hapkido, o Shaolin do Norte e o Yiquan. Mantém um dos mais interessantes blogs sobre o tema na Internet brasileira, que inclui um canal no Youtube. Ele também é colaborador do portal Wuxia, site especializado em artes marciais chinesas. É professor na Academia Trajano Center, em Valinhos-SP. Nós, do projeto "Caminhos Marciais, Humanidades e Educação Integral", temos muito orgulho de recebê-lo por aqui e de tê-lo como interlocutor. Convidamos todos a conhecer melhor as ideias deste professor, que quebra paradigmas engessados e propõe um olhar atual e sério sobre as artes marciais tradicionais, explorando a sua enorme riqueza para o desenvolvimento humano.
Vamos ao texto!

O que fazer quando um aluno questiona uma técnica?

Por Jerônimo Marana

Existe uma situação muito frequente nas aulas de artes marciais, que acontece quando o aluno questiona uma técnica. Eu já presenciei diversas situações como essa e embora seja muito simples de lidar, infelizmente muitos professores fazem isso da maneira errada.


Erros que os professores cometem quando o aluno questiona uma técnica

Muitas vezes, ao aprender uma técnica, o aluno pergunta: "mas professor e se o cara fizer isso?". Então ele faz alguma coisa que impede o professor ou companheiro de aplicar a técnica. Não há professor que não passe por isso ou que não tenha passado e se não passou, ainda vai passar. Então o professor, sabendo de antemão o movimento do aluno, recorre a uma maneira arcaica de calar o aluno. A tática é assim que o aluno impedir a aplicação do golpe, dar uma pancadinha em algum lugar para distrai-lo. Então, o professor aplica a técnica com força para subjugar o aluno, dizendo que o agressor nunca sabe o que você vai fazer, pois a técnica é elemento surpresa.
Acontece que o aluno está em desvantagem, pois o professor já sabe o movimento do aluno, que por sua vez não sabe qual vai ser o movimento do professor. Existem "professores" que orientam os seus subordinados, seus instrutores, a recorrer a essa prática quando o aluno questiona uma técnica. Eles dizem que é preciso fazer a técnica funcionar, não importa como, porque o professor não pode deixar dúvida para o aluno.
Outro erro é dizer o que ou quanto o aluno é ou não capaz de aprender. Há mais ou menos um ano atrás, eu assisti um vídeo que me deu a ideia de falar sobre esse assunto. O professor ensinava uma técnica muito simples. Em um momento ele disse que muitos alunos fazem aquela mesma pergunta do início do artigo. Então ele disse que ensinaria apenas uma técnica, porque senão seria muita coisa e o público não iria conseguir aprender. Isso ilustra bem alguns erros cometidos frequentemente por muitos professores.

Dois paradigmas que precisam ser quebrados

Existe nisso um paradigma que precisa ser quebrado, que é achar que é preciso dominar uma técnica antes de aprender outra. Eu já desmenti essa crença em um dos primeiros vídeos do meu canal, que você pode assistir abaixo. Nele eu explico que é muito mais fácil dominar uma técnica se você aprender outras.

O segundo é achar que um aluno não é capaz de aprender alguma coisa, pelo motivo que for. Professores dizem que os alunos devem aprender apenas uma técnica por vez, caso contrário, é muita coisa de uma vez só. É muita informação e por isso o aluno não vai conseguir assimilar. Ou então porque a técnica em questão é mais simples e o que o aluno quer aprender é mais difícil. Eu tenho que ser crítico nesse aspecto e perguntar qual é a base para dizer o quanto ou o que alguém é ou não é capaz de aprender. Só diz isso quem não entende o processo de aprendizado. Se alguém não consegue aprender, é porque alguém não é capaz de ensinar.

O que pode acontecer quando o aluno questiona uma técnica

Quando o professor diz que o aluno não vai conseguir aprender, duas coisas podem acontecer. A primeira é perder sua confiança, o que é justo, pois é ruim para o próprio professor. A segunda é levá-lo a criar uma autoimagem de alguém dependente do professor, que nunca conseguirá ultrapassá-lo e nem mesmo igualar-se a ele. O próprio aluno passa a duvidar da sua capacidade e aceitar que outra pessoa defina o que ele/ela é ou não capaz de fazer.
É preciso entender que o que é difícil para um nem sempre é difícil para outro. As pessoas tem dificuldades e facilidades diferentes por causa da sua história de vida e das suas experiências motoras. O caminho que o professor percorreu não é igual ao de nenhum aluno, cada um tem as suas particularidades. Ninguém começa na arte marcial ou em qualquer outra atividade com as mesmas habilidades. É preciso explorar as potencialidades e habilidades de cada um para ensinar a partir daquilo que lhes é mais fácil. E o que é mais fácil para o aluno nem sempre é aquilo que o professor considera mais fácil. Da mesma forma o que é mais fácil para um aluno, nem sempre é mais fácil para outro.

O que fazer quando o aluno questiona uma técnica

O terceiro erro é não levar em consideração as ideias do aluno, pois elas podem ter um valor imenso. Quando o aluno questiona uma técnica é importante demonstrar e convidar a experimentar. O que o aluno pergunta tem significado para ele e por isso pode ser mais fácil ensinar a partir daquilo. Nós professores precisamos estar preparados para redirecionar a aula e ensinar a partir daquilo que os alunos trazem. Muitas vezes isso pode ser necessário e às vezes funciona melhor do que o que foi planejado, afinal nem sempre o que planejamos dá certo ou é o melhor caminho. É preciso ter sensibilidade para mudar de acordo com o que o momento exige.


Se não for possível trabalhar com a questão naquele momento, é preciso primeiro demonstrar interesse por ela. É preciso comentar a respeito e demonstrar algum exemplo. Só depois se deve dizer que naquele momento aquela questão não será aprofundada porque será feita outra coisa. Então, assim que possível ela deverá ser trazida de volta. Se não for possível naquela aula, é preciso planejar para abordá-la em outra. Se não tiver uma resposta imediatamente, é preciso dizer que vai pensar e tentar responder em outro momento. Ou, melhor ainda, convidar os alunos para tentar descobrir uma resposta juntos.
Quando o aluno questiona uma técnica é muito fácil lidar com a situação, se houver conhecimento e boa didática. O que não se deve fazer em hipótese alguma é fazer o aluno se sentir ignorado. O aluno deve sentir que as suas ideias tem importância, mesmo que não funcionem. É preciso colocá-las para serem estudadas, mesmo quando sabemos que não dá certo. Essa é a melhor forma de ensinar. Mas infelizmente o professor comum dirá que aquilo é difícil para o aluno ou que é muita informação de uma vez.