quinta-feira, 1 de junho de 2017

Princípios de Caminhos Marciais para a Educação Contemporânea


Como podem os caminhos marciais fornecer princípios gerais para a orientação de um sujeito livre, ético e responsável no planeta? Orientados conforme uma perspectiva antropológica, os caminhos marciais podem ser aliados formidáveis de uma educação humanista na atualidade.

No dia 27/05/2017, tive a oportunidade de apresentar algumas de minhas ideias sobre caminhos marciais e educação integral na Casa Plural de Tupaciguara-MG, uma de nossas instituições parceiras mais queridas de projetos. Na ocasião, defini o paradigma das propostas que faço de articular metas da educação escolar com estudo e prática de caminhos marciais: promover a abertura antropológica do homem livre e ético para o mundo.

Talvez se trate de um paradigma urgente no contexto contemporâneo. A virada do milênio, em certa medida, frustrou os sonhos e utopias de dissolução de fronteiras entre os povos. O avanço dramático dos conflitos geopolíticos em diversas partes do globo; o fenômeno do terrorismo; a circulação maciça de imigrantes e refugiados no centro do mundo capitalista; o crescimento dos discursos de ódio, intolerância e preconceito; a profusão de posturas etnocêntricas e fundamentalistas nos âmbitos das culturas e de diversas religiões, enfim, toda a sorte de separatismos, segregacionismos e exclusivismos da verdade vêm marcando as nossas experiências no presente. Vivemos um momento crítico de impaciência com o "outro", de empobrecimento antropológico, de afirmação de identidades e de tratamento da alteridade como ameaça.

Como os caminhos marciais podem servir para ajudar a reverter ou a amenizar esta tendência contemporânea para os monólogos e ventriloquismos culturais? Como eles podem colaborar com objetivos semelhantes àqueles das humanidades na educação escolar básica no Brasil, conforme expressos na segunda versão da minuta da BNCC: "cultivar a formação de estudantes capacitados a articular categorias de pensamento histórico, geográfico, filosófico e sociológico, intelectualmente autônomos em face de seu próprio tempo, e capacitados a perceber e refletir sobre as experiências humanas, em tempos, espaços e culturas distintos e sob diversas lógicas de pensamento"?

O contato com caminhos marciais, conforme seja trabalhado, traz consigo o aprendizado de categorias formuladas em outros tempos, espaços e culturas, conforme lógicas de pensamento distintas da nossa. Isso não impede, contudo, que as experienciemos de modo próprio, atribuindo novos significados e novas aplicações a elas. Isto, por si só, é um tremendo exercício gerador de abertura para o horizonte do outro e de consequente enriquecimento antropológico. Tal enriquecimento representa um ganho na medida que fomenta o florescimento cultural, o aprendizado mútuo em perspectiva cosmopolita.

Gostaria, agora, de comentar a respeito de algumas dessas categorias, enfatizando as suas potencialidades de entendimento e aplicação em face a desafios do mundo atual. Tais categorias derivam de exemplos de princípios focalizados em determinadas tradições marciais e que são verbalizados/textualizados em escritos de alguns de seus mais prestigiados mestres.


Roda de Conversa - Tupaciguara-MG, 2016.

(1) Harmonização dos opostos (polaridades) com vistas à resolução dos conflitos e promoção da paz.

Como aparece, por exemplo, nos escritos de Morihei Ueshiba, compilados e editados pelos seus discípulos, a meta do Aikido (合気), em um combate, não é destruir fisicamente o oponente. Antes, é vencê-lo espiritualmente, de tal modo a convencer o agressor a largar de bom grado a sua conduta ofensiva. Seu método não é o confronto de forças, visando o aniquilamento de uma delas. O método é a harmonização entre as forças: assumir uma postura capaz de compreender o movimento do outro e entrar nele, misturar-se com ele e, a partir daí, conduzi-lo. Harmonização da "força" ou da "energia", o chamado "ki" (気), é o que se nomeia aiki (合気).

Há categorias semelhantes no "pensamento chinês clássico", que foram assimiladas em textos fundadores de diversas tradições marciais. É o caso da conhecida noção taoista de wuwei (无为): o "não-agir". Este conceito não é sinônimo de passividade nem de apatia diante da vida. A "não-ação" é um modo de agir específico: um modo de agir em harmonia absoluta com o movimento natural do Tao (). "Não-agir" é não provocar perturbações no curso do universo, não fazer nascer agitações, não criar artifícios. É não entrar em choque contra o inevitável. É agir de tal modo que quem aja não seja si-mesmo, mas o próprio Tao. De tal modo que não haja separação entre o si-mesmo e o Tao.

Como último exemplo, trago ainda a própria palavra wushu (武术). Certas interpretações muito difundidas nos ambientes marciais partem de uma análise do ideograma wu (). Conforme esta leitura, o ideograma seria formado da fusão entre zhi (止) e ge (戈). Conforme o dicionário de Kangxi, composto no século XVIII, durante a dinastia Qing, zhi pode significar "parar". Ge, por sua vez, definiria um tipo de arma chinesa antiga, semelhante ao que chamamos, em português, de alabarda. Nesse sentido, a fusão de zhi  e ge em wu indicaria uma ideia de "parar as armas", "parar as ofensas" ou "parar a guerra". Traduzido como "militar" ou "marcial", wu teria, portanto, uma conotação ligada ao fim do conflito e não ao conflito em si. Wushu, dessa maneira, seria uma arte de encerrar os conflitos. Esta concepção de marcialidade não é estranha à tradição literária chinesa de clássicos sobre a guerra. É famosa, inclusive entre praticantes de artes marciais, a máxima de Sun Zi, de que a vitória militar mais sublime é aquela que se conquista sem nem mesmo haver a necessidade de lutar.

Conflitos, agitações e perturbações acontecem cotidianamente na vida humana. Lidar com eles, seja no plano macro da geopolítica seja no dia-a-dia de nossas relações pessoais, familiares ou profissionais, constitui um desafio permanente. Compreender as forças que atuam em determinado momento de agitação e constituir estratégias de neutralização de tais forças é uma forma de inteligência exercitada e desenvolvida pela prática de uma disciplina marcial como caminho. Ela nos prepara, assim, para saber (não-)agir diante das situações de desequilíbrio, buscando os meios adequados para a restauração de uma ordem justa, em que os polos encontrem-se devidamente harmonizados.

(2) Uso eficiente da energia.

Imiscuir-se no movimento do outro, a partir da compreensão de suas dinâmicas e intenções, como dissemos acima, é um modo de superar conflitos e harmonizar as oposições. Se isso encontra-se na base do Aikido, também é válido no Taijiquan. Para isso servem, inclusive, alguns exercícios muito enfatizados pelos seus praticantes: o tuishou (推手). Várias outras artes marciais possuem exercícios semelhantes, tendo como um dos seus objetivos desenvolver uma "escuta" das intenções de movimento do oponente através do tato. A importância deste "sentir" está no fato de que é a partir do movimento do outro que, em um combate real, decide-se pela técnica ou movimento a se aplicar como resposta. Isso porque a eficiência da aplicação será sempre relativa àquilo contra o que nos defendemos, sempre buscando neutralizar a ofensa com o menor dano possível ao nosso corpo e com o menor gasto possível de energia.

Este princípio "econômico" presente em muitas escolas e estilos de artes marciais é o fundamento primeiro do Judo Kodokan, tal como idealizado por Jigoro Kano. Ele é nomeado, abreviadamente, como seiryoku zenyo (精力善用), "bom uso energético". A mesma expressão (com os mesmos ideogramas) fazem sentido semelhante em Mandarim, língua na qual seria pronunciada mais ou menos como jingli shan yong, ou seja, "bom uso" ou "uso proficiente" (shan yong) da "essência da força" ou da "energia" (jingli). No Taijiquan, um dos princípios que auxiliam nesta meta de economia de energia é aquele presente como o sexto princípio no cânon do Mestre Yang Chengfu: 用意不用力, yong yi bu yong li, literalmente: "usar a intenção (mente, inteligência, vontade), não empregar força".

Colocar sensibilidade e inteligência em todas as ações para ter bons resultados sem esforço excessivo, tomando cuidado para não causar danos à saúde e desequilíbrios é o que se chama de "uso eficiente da energia". Trata-se de um conceito aplicável a vários domínios da vida, inclusive coletivos, tais como os da ecologia e da administração, por exemplo. É, antes de uma fórmula de "sucesso", uma proposta ética: um chamado ao cuidado se si, do outro e do planeta. Sua finalidade é preservar a vitalidade, evitando excessos e desperdícios. Este conceito complementa o anterior. Na medida em que propõe que a resolução dos conflitos permite reserva de energia para atividades cooperativas, enquanto a própria forma de resolvê-los deve enfatizar o uso de sabedoria, não de força.

(3) Agir cooperativamente em prol da coletividade.

Em Jigoro Kano seiryoku zenyo não é um princípio que vem sozinho. Sua primeira meta é o cultivo do homem de corpo e mente saudável. Porém, ele só cumpre plenamente o seu objetivo quando desdobra-se em jita kyoei (自他共栄), literalmente, "prosperidade de si e do outro", também traduzido no "ocidente" como "benefícios mútuos". Em Mandarim, os mesmos ideogramas combinados seriam pronunciados como zita gong rong. Isto é: "glória comum" (gong rong) de "si" (zi) e dos "outros" (ta).

Com clara inspiração no Budô japonês e, portanto, nestas ideias mais centrais de Jigoro Kano, desenvolveram-se, desde o final da Era Qing e início da época republicana na China, ideologias que reforçavam o papel da "educação física" para formar o cidadão e fortalecer o país. Em parte, houve assimilações de teorias e concepções da educação física ocidental, nomeada pelos chineses de tiyu (体育). Porém, junto a ela desenvolveu-se o conceito de guoshu (国术), "artes nacionais". Atualmente, o termo praticamente está restrito às artes marciais chinesas, mas, nas primeiras décadas do século XX, seu sentido abrangia um conjunto mais amplo de atividades físicas entendidas como tipicamente nacionais, livres de influências estrangeiras.

O compromisso do artista marcial, praticante do budo ou de guoshu, tal como concebido por idealizadores destes movimentos no Japão ou na China era também um compromisso social e político com a nação. É impossível, naquele contexto histórico, não associar tal compromisso a uma questão militar. Nos referimos ao Império do Japão, entre as eras Meiji, Taisho e Showa, envolvido em conflitos com a Rússia, com a própria China, com os EUA e aliado de Hitler na II Guerra Mundial. Nos referimos à China afundada em confrontos com a França, a Inglaterra, o próprio Japão e submersa em guerras civis, no seu tumultuado processo de fim do Império e constituição da República. Porém, a questão mais geral aqui colocada não é a do compromisso de ordem militar, mas com a coletividade. É a ideia de que nada adianta o indivíduo em si se ele não se colocar também a serviço do outro, participando da (re)construção de algo maior do que ele.

Sentido público, coletivo, cidadão: sem construir este tipo de sentimento no praticante, não se consegue chegar à meta do jita kyoei. Respeito pelo bem público, preocupação com o bem-estar social, agir em prol da garantia dos direitos básicos dos concidadãos e, por que não, de toda a humanidade e demais seres viventes: é isso que, no final das contas, busca-se atingir, como meta de formação humana, a partir dos caminhos marciais.

(4) As possibilidades infinitas de novas formas a partir da essência das tradições.

O último dos conceitos que gostaria de apresentar expressa-se, em Mandarim, pela palavra tiyong (體用), literalmente "essência-função". Este é um conceito metafísico, primeiramente introduzido nos clássicos da filosofia chinesa por Wang Bi, em seus comentários ao Daodejing, especialmente sobre o zhang 22. Por esta ideia, entende-se que os usos, aplicações ou funções (yong) são manifestações provisórias de uma essência permanente (ti). No século XIX e início do século XX, intelectuais chineses utilizaram-se deste conceito para justificar a introdução saberes e tecnologias ocidentais na China, argumentando que eles seriam apropriados quando compatíveis com a essência da tradição do país. Eles não alterariam a essência da cultura chinesa. Antes, seriam possíveis funções compatíveis com os seus fundamentos.

No Taijiquan o binômio "essência-função" ganha um destaque especial na obra Taijiquan Tiyong Quanshu, de Yang Chengfu. Ou seja, "Essência-função do Punho da Extrema Polaridade". Neste contexto tiyong expressa uma ideia de que o aprendizado de uma forma (ensinada no livro) envolve estudo de princípios e das suas múltiplas possibilidades de aplicação.

Isso se faz presente em quase todas as artes marciais. Um movimento, tal como um "soco", um "chute" ou uma "puxada", antes de ser um "soco", um "chute" ou uma "puxada", é um movimento. Se compreendemos os princípios da dinâmica deste movimento, um "soco" pode se tornar, por exemplo, "uma puxada". Além disso, é possível, a partir de um único princípio, derivar, dele, muitas variações de técnicas, apenas por meio de interpretações sutis ou deslocamentos das circunstâncias.

A ideia de "essência-função" é muito diferente, portanto, de um apego fanático a modelos pré-fabricados, entendidos como tradição imutável. Tiyong permite uma reverência ao legado cultural do passado como terreno fértil para inovações históricas. Assim, é possível enfatizar o valor da preservação da memória e do patrimônio cultural herdado e, ao mesmo tempo, manter uma abertura constante para o novo.

Considerações finais

Concluindo, os caminhos marciais podem ser preciosos aliados na formação de sujeitos preparados para desafios típicos do mundo atual. Tais sujeitos podem ser pensados, paradigmaticamente, como abertos à alteridade cultural e às novidades do seu tempo histórico. Ao mesmo tempo; sujeitos socialmente referenciados, conscientes da herança das passadas gerações e participantes ativos na construção da fraternidade humana. Sujeitos que cuidam de si, dos outros e do planeta, evitando o desperdício de recursos e os desequilíbrios próprios de sociedades consumistas, adoecidas pelo estresse e reguladas pelos ritmos da produtividade capitalista. Sujeitos que cultuam e promovem a paz, buscando sempre os meios mais eficazes e suaves para a superação das crises e dos conflitos. Sujeitos solidários, generosos e altruístas; cidadãos voltados ao bem comum à prática da justiça. Para isso, não basta simplesmente começar a treinar lutas, é preciso mais. Porém, este já é um tema para outras postagens.

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