sexta-feira, 23 de junho de 2017

Afinal, qual a graça do Nunchaku?


Quando apresentei o nunchaku à minha turma de crianças em Cruzeiro dos Peixotos, a primeira referência deles foi a personagem Michelangelo (acima, fig. 01), da série Tartarugas Ninjas. Nenhum deles nunca ouvira falar de Bruce Lee... Na minha infância/adolescência, outra personagem de desenhos famosa pelo uso do nunchaku foi o Panther, da série Thundercats (abaixo, fig. 02).


Hoje, eu gostaria de abordar um tema bastante específico: o treinamento com armas tradicionais como método de desenvolvimento de determinadas habilidades e de consciência corporal. Em Cruzeiro dos Peixotos, no projeto no centro comunitário Culturarte, com crianças de 6 a 10 anos, utilizamos técnicas de bastão (gun, 棍) como meio de desenvolver rudimentos mais gerais de movimentações e posturas corporais marciais (fig. 03). Porém, não falarei disso. Tratarei de uma outra arma, cheia de incompreensões e mal entendidos, muito famosa (graças ao cinema e à mídia), porém pouco conhecida, seja em sua história ou em relação às suas técnicas: o "nunchaku", como é mais notória, na sua nomenclatura "japonesa".

Fig. 03: aula do projeto de Cruzeiro dos Peixotos.
Trabalho específico  voltado ao ensino da base gongbu e da técnica de kaigun.

Devo começar explicando que meu contato com o "nunchaku" é muito pouco "formal". Ao contrário de outras armas, como o bastão (gun, 棍), o sabre (dao, 刀), a espada reta (jian, 剑) e a lança (qiang, 枪), não há nenhuma técnica nem tampouco rotinas de "nunchaku" no sistema de "kung fu" que eu venho estudando. Muito menos, há qualquer vestígio de "nunchaku" (nem poderia...) no Tai Chi da Família Yang, que também pratico. Na minha adolescência, embora um dos estilos de karatê que cheguei a praticar ser bem ligado às tradições de Okinawa, o Kenyu Ryu, ao menos nas etapas mais básicas e intermediárias de treinamento, só havia mesmo técnicas de punho livre. Em suma: eu nunca realizei sequer um único curso de técnicas desta arma, nem mesmo tive uma única aula mais específica sobre ela.

Nestas alturas, o leitor deve estar se perguntando por que raios escrevo sobre uma arma que "não conheço"... Pois bem, arriscando ser polêmico, escrevo sobre uma arma que ninguém conhece... Uma arma cuja exploração técnica é muito recente, cujos registros na história são raríssimos, cujas "técnicas" são muito mais fruto de explorações intuitivas de artistas marciais contemporâneos do que da transmissão tradicional no interior de escolas mais antigas. É claro que há artistas marciais habilidosíssimos nesta arma e, hoje, principalmente no Kobudo, no Karatê, no Kali, no Jeet Kune Do, no Wushu Moderno, no Hapkido e em muitos outros sistemas, já existe um grande acúmulo de experiências e técnicas consolidadas para o nunchaku. O que eu quero dizer com "ninguém conhece" é outra coisa: que o caráter intuitivo, aberto e plástico desta arma ainda permite muitas "descobertas".

Fig. 04: Sensei Hirokasu Kanawaza em postura preparatória: Jodan Ichimonji Kamae, em base kokutsudachi.
Sensei Kanawaza é um exemplo relativamente recente de estudioso do nunchaku. No seu caso, ele combina conhecimentos sobre a arma advindos do Kobudo e os integra a princípios do Karatê Shotokan.

Fig. 05: Imagem do filme Game of Death (1978), em que Bruce Lee encena um combate com nunchaku contra personagem interpretado pelo artista marcial filipino Dan Inosanto. A postura de Bruce Lee, nesta imagem, é bem similar à da imagem anterior, executada pelo Sensei Kanawaza.

Um dos sinais de que a arma é "nova" no meio das artes marciais chinesas é a quantidade de nomes por meio dos quais ela é referida. Embora uma (ou algumas...) das versões sobre a origem dela apontem a China como sua terra natal (especialmente durante a Dinastia Song), os nomes pelos quais ela é conhecida na China são variados e muito "literais", quase "descritivos". Há um caráter mitológico evidente na atribuição de origem do Nunchaku durante a Era Song. Segundo a lenda, o imperador teria observado agricultores utilizando um instrumento para a colheita de grãos e concluiu que aquele objeto poderia se transformar em uma poderosa arma na luta contra os mongóis. Assim, ele teria levado alguns daqueles instrumentos para estudo e treinou o seu exército para manejá-los. Com isso, teria conseguido vitórias importantes contra os guerreiros do Khan. Ahaaaam...

Há uma interpretação de que o termo "japonês", nunchaku, seria derivado da pronúncia de 兩節棍 em dialeto falado em Fujian (Sudeste da China): "nnd-chat-kun". Em Mandarim, a romanização da palavra seria "liang jie gun", literalmente, "dois bastões conectados". Com base na figura do ideograma liang (兩), cuja ideia de par deriva de duas representações de zhu (竹), bambu, chegou-se a supor que as primeiras versões da arma seriam fabricadas deste material (sendo as cordas de fio de seda ou de crina de cavalo, conforme diferentes versões). Também se costuma supor que a arma seria uma simplificação de outra (esta sim mais tradicional nas artes marciais chinesas), o san jie gun (三節棍). Importa, neste caso, dizer que o "nunchaku", nas artes marciais chinesas, pode ser entendido como um bastão articulado (節棍) de duas partes. Algumas vezes, esta noção de dois aparecerá como liang (兩), outras como shuang (双), outras como er (二), sem muita preocupação em padronizar.


Vídeo 01: No Wushu Moderno, as formas de liang jie gun privilegiam os movimentos mais acrobáticos, combinados a uma leitura mais "artística" ou "espetacular" das técnicas marciais. Neste vídeo, percebe-se uma clara releitura do nunchaku como arma elegante e associada à religião budista. Nem elegância nem relação com a religião budista encontram qualquer verossimilhança na história do surgimento e do desenvolvimento do nunchaku, mas... arte é arte... E, convenhamos: que espetáculo bonito temos neste vídeo!

No "kung fu", há pouco destaque para o nunchaku como arma tradicional, figurando apenas como uma entre um incontável catálogo de artefatos. Isso só muda um pouco a partir da década de 1960, quando foi apresentada, por Bruce Lee (fig. 05), em seus filmes. Adotada com mais destaque, a partir de então, pelos praticantes de Jeet Kune Do, ela passou a ser muito associada com as artes marciais chinesas. No entanto, mesmo no Jeet Kune Do, as técnicas de "nunchaku" são provavelmente mais inspiradas nos estudos de Bruce Lee e Dan Inosanto sobre Arnis (Kali ou escrima), arte originária das Filipinas. Entre os filipinos, o "nunchaku" é conhecido como tabak-toyok. Os movimentos mais performáticos de giros velozes, muito presentes nos filmes de Bruce Lee, são bem característicos de técnicas filipinas de tabak-toyok, como se pode perceber com uma rápida pesquisa no Youtube, procurando por praticantes de artes filipinas executando técnicas e formas com a arma (vídeo 02).

Vídeo 2: é interessante neste vídeo a combinação de técnicas de arnis e de tabak-tayok (nunchaku) no Kali filipino. 

Mas, também no Kali, o tabak-toyok é uma arma de importância menor em comparação com os famosos rattan e outros tipos de yantok (bastão). Ele é muito associado às lutas de rua, por ser considerado relativamente fácil de esconder. Nas artes malaias e filipinas há muitas armas de pequeno porte, disfarçáveis e também improvisadas (como partes do próprio vestuário). Elas abrangem armas de corte, como facas, e também armas flexíveis, como chicotes. Tratam-se de armas muito mais relacionadas ao uso cotidiano de pessoas comuns (e de classes mais baixas) do que de uso militar por pessoas de uma elite aristocrática "feudal", como Samurais japoneses ou generais chineses educados no Confucionismo, por exemplo (ah, sim, e monges budistas, como sugere o vídeo 1... Se ainda fosse o sai...).

É difícil saber ao certo, mas a origem do tabak-toyok é muitas vezes associada ao contato filipino como o Ryukyu kobujutsu ou o que seria mais tarde reinventado como o Kobudô, de Okinawa. Historicamente, isto faz muito sentido. No século XVI, os espanhóis estabeleceram-se em Manila, lugar a partir do qual buscaram expandir comercialmente para outras partes do leste asiático. Entre o final do século XVI e início do XVII, os espanhóis conseguiram estabelecer missões religiosas no Japão e fomentaram o comércio entre as duas regiões. Quando houve a perseguição aos cristãos pelo xogunato Tokugawa, uma grande quantidade de japoneses convertidos ao cristianismo emigrou para as Filipinas. As relações comerciais entre Manila e o Japão persistiram com muita força até o século XVIII, quando o xogunato estabeleceu a política isolacionista conhecida como sakoku. Assim, ao longo de um período de mais de 100 anos, Filipinas e Japão estiveram em intenso contato de troca material, cultural  e de fluxo de pessoas.

Fig. 06: mapa holandês, da década de 1650, localizando as Ilhas Filipinas, antes nomeadas Manila. O nome "Filipinas" associa-se à monarquia hispânica da dinastia dos Habsburgos, cujo ápice foi vivido pelos Reis Filipe II, Filipe III e Filipe IV. Note-se a proximidade das ilhas com Macau e Formosa (hoje Taiwan), que, na época, eram, respectivamente, entrepostos comerciais importantes de portugueses e holandeses. Estas áreas funcionaram como aquecidos centros comerciais da Ásia no período, alimentados pelas demandas de produtos orientais na Europa e pelo ouro e a prata que chegavam das Américas.

Naquela época (século XVI e início do XVII), Okinawa, conhecida como Ryukyu, era um reino independente do Japão. Tratava-se de um entreposto comercial, fortemente conectado à China e a outras áreas do Sudeste Asiático. A Dinastia Sho, então dominante em Ryukyu, a fim de refrear o poder se senhores locais, preservando-se de sedições, proibiu o porte e a posse de armas  pela população, o que, a partir da intervenção japonesa no início do século XVII, foi reforçado. Com isso, foram desenvolvidos modos de lutar na região que primavam pelo combate de mãos vazias e também pelo uso de armas improvisadas, como utensílios e ferramentas utilizados no dia-a-dia. Daí, muitas das armas do Kobujutsu (fig. 07), como o sai e a tonfa, por exemplo, foram inventadas a partir de instrumentos de trabalho. O nunchaku não foge à "regra". O instrumento utilizado, no caso, era o muge, uma espécie de arreio para cavalos. Ainda hoje, há uma variação da arma que carrega o nome de "muge nunchaku" e guarda similaridades formais com o artefato original (figs. 08, 09 e 10).

Fig. 07: Exemplos de armas que foram introduzidas no Kobudo como fruto de experiências com instrumentos do dia-a-dia nas Ilhas Ryukyu (Okinawa).

Fig. 08: muge, muge-nunchaku e nunchaku moderno, colocados lado a lado.
Fig. 09: cavalos arreados ao modo tradicional asiático, com o muge.
Fig. 10: nunchaku no formato "original" de muge.

As primeiras sistematizações de técnicas de nunchaku no interior do Kobudo (vídeo 3), diferentemente de técnicas de outras armas da região, como o bo, a tonfa e o sai, que possuem formas datáveis desde o século XVII, deram-se, no entanto, somente em meados do século XX, nas formas criadas pelos mestres Taira Shinken e seu sucessor Akamine Eisuke, no contexto da Ryukyu Kobudo Hozon Shinko Kai. Também no Kobudo, pode-se dizer que as técnicas de nunchaku são "invenções" ou "reinvenções" relativamente "modernas".


Vídeo 3: Neste vídeo, o Sensei Nakamoto Masahiro executa o kata Maezato No Nunchaku, forma tradicional presente no Kobudo, idealizada pelo Sensei Taira Shinken (Shinken Maezato, 1897-1970). Em comparação com os vídeos 1 e 2, é interessante notar a ênfase em movimentos com pegadas de duas mãos, o que indica uso de aplicações de torção e de controle do oponente.

Fig. 11: Famosa imagem de Sensei Taira Shinken com várias armas de Kobudo ao fundo.
Não se vê, entre elas, nenhum nunchaku.

Arma de improviso, utilizada por setores sociais subalternos; técnicas sem longa tradição de sistematização, abertas ao experimentalismo e à intuição do praticante... É assim que eu vejo o nunchaku e a sua graça. Aí parece residir um potencial muito interessante para o treinamento e a experiência pessoal em arte marcial. O nunchaku, caso não nos limitemos a mimetizar movimentos fetichizados, extraídos de filmes de Bruce Lee, pode nos permitir experimentar possibilidades de migração de princípios de técnicas de punho e também de outras armas para as suas características particulares. Em outros termos, ele favorece a aplicação criativa de princípios cinéticos e energéticos estudados por outros meios. Isso permite explorar novas interpretações, inclusive, para técnicas de punhos e também de outras armas.

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