segunda-feira, 10 de julho de 2017

Caminho Marcial e a Lógica do Combate

O aprendizado da luta, como desenvolvimento do saber-reflexo, está na base do que entendemos por caminhos marciais.

Em postagem passada, sobre os princípios de caminhos marciais e as suas potencialidades na educação contemporânea, deixei sugerida a insuficiência do treinamento de luta como método voltado ao aprendizado de princípios de formação integral. Não quis dizer com isso que as lutas sejam dispensáveis no processo. Pelo contrário, defendo que elas sejam indispensáveis, porém, elas só adquirem algum sentido de caminho quando compreendidas para além da eficácia em combate.

Um amigo, educador físico e professor de Hapkido e de Artes Marciais Chinesas, Jerônimo Marana, escreveu certa vez, em um grupo de discussão nosso, que aprender a aplicar e receber um golpe é um modo disponível aos alunos para conhecerem, comunicarem e harmonizarem-se uns com os outros. Não utilizou a expressão, mas tomo a liberdade de traduzir este modo como uma linguagem ou, para utilizar sua ancestral grega: uma lógica. Se pensarmos o combate ou a aplicação de técnicas marciais como algo que faz sentido dentro de um sistema lógico, talvez comecemos a dar passos na direção de criar hipóteses em torno de fundamentos da luta como método de formação do ser humano.

Quando digo lógica, não quero subtrair das artes marciais as suas dimensões motoras, afetivas, sociais, restringindo-as ao aspecto cognitivo. Longe disso! Muito pelo contrário, penso em uma lógica abrangente. Não me refiro à Lógica "clássica", de matriz aristotélica, fundada em silogismos. Refiro-me ao logos dos pré-socráticos, modo de "enunciação" de uma ordem cósmica (kosmos), que é o fundamento de toda verdade e de toda a beleza. Refiro-me a um logos poético, o verbo criador, como traduziu, para o Latim, São Jerônimo, ao verter o livro Genesis da sua versão grega.

Também já escrevemos, neste blog, a respeito da relação entre as artes marciais chinesas e o poético. Importantes mestres chineses e japoneses de artes marciais deram atenção ao aspecto poético de seus sistemas. Um deles foi Jigoro Kano. Dentre as suas criações para o Judo Kodokan, é possível destacar os Itsutsu No Kata (五の形). Explica o Sensei:

"(...) Também existe o itsutsu no kata. Eu comecei a ensinar estes por volta de 1897 e eles trouxeram uma completa mudança para o judô. No antigo ju-jutsu, o propósito de todas as formas de exercício era, direta ou indiretamente, o ataque ou a defesa contra ataques. Entretanto, as últimas três formas do itsutsu no kata expressam a energia natural por meio do movimento e não têm nenhuma relação com ataques ou defesas. O quinto [princípio] destes kata é ligado a uma onda que se avoluma, bate no cais e retrocede, levando consigo os navios e casas que se encontram no caminho. No futuro, eu gostaria de criar vários kata desse tipo com o propósito de desenvolver um sentimento estético por meio do movimento de várias posturas, ao mesmo tempo em que treinamos o corpo". (KANO, J. Energia mental e física, São Paulo: Pensamento, 2008. p. 26)

A denominação Itsutsu No Kata não foi inventada por Jigoro Kano. Kano a tomou do Tenjin Shinto-ryu, que estudou sob a tutela do Sensei Masatari (Iso Matauemon Ryukansai Minamoto Masatari). A ideia positiva que Jigoro Kano desenvolveu do Aikido do Sensei Morihei Ueshiba relaciona-se à influência de princípios do Tenjin Shinto-ryu tanto no Judo quanto no Aikido. Estes princípios estão na base do próprio nome do estilo, que faz alusão à dobra de um salgueiro mediante o forte vento. Ou seja, os princípios de que alguém deve controlar o forte, sendo fraco, e controlar o duro, sendo flexível. Seu fundamento é o mesmo presente em artes marciais chinesas, decorrendo da dialética do yin/yang.

No seu projeto de Itsutsu No Kata, Jigoro Kano vislumbrava a possibilidade de abstrair por completo os princípios "universais" da "poética do movimento" da sua aplicabilidade marcial mais evidente. Entretanto, tamanha abstração é rara no conjunto das artes marciais (inclusive no próprio Judo). O mais comum é a presença sincrônica de aplicações e princípios gerais nas formas e técnicas, de tal modo que a aplicação ilustra os princípios e os princípios fundamentam as aplicações. Não há separação, mas sincronicidade de aprendizado. No limite (e em tese), seguindo este raciocínio, aquele que domina a técnica marcial com maior habilidade também é aquele que acumula maior conhecimento de princípios, tornando-se, portanto, mais sábio. É aquele que enuncia com maior riqueza as "leis" que regem a ordem do universo. É aquele que incorporou em si e em sua estrutura corporal a lógica do combate.

Porém, precisamos tomar alguns cuidados e estabelecer algumas mediações culturais para não tomarmos esta incorporação da lógica (do combate ou do "universo") como mero acúmulo de enunciados de preceitos. É preciso relacionar este "conhecimento" ligado ao combate com uma categoria presente no Confucionismo de caráter naturalista, tal como aquele desenvolvido por Wang Yangming: "conhecimento real". Conforme Philip Ivanhoe, nesta perspectiva,

"Conhecimento real é auto-ativado tal como as virtudes genuínas. Uma pessoa com conhecimento real, quando confrontada por situações de determinada maneira, agirá simplesmente respondendo de modo adequado. Não há necessidade de perceber, selecionar, julgar ou mover a intenção; isto seria excessivo. A pessoa aperfeiçoada responderia como um espelho, correta e imediatamente, 'refletindo' a circunstância". (IVANHOE, P. "Wang Yangming". In: Confucian Moral Self Cultivation, Indianapolis: Hackett, 2000. p. 63.)

Como "reflexo", a noção expressa acima não pode ser colocada em equivalência com a conceituação de "arco reflexo", na fisiologia ocidental moderna. Não se trata de pura resposta involuntária de um corpo a partir do estímulo de um nervo motor. É mais semelhante ao que, no senso comum, atribuímos aos reflexos de um goleiro de futebol. É uma habilidade que envolve posicionamento, previsão, tomadas de decisões extremamente rápidas, domínio natural das técnicas, conhecimento profundo do "jogo" e, sobretudo, percepção aguda do outro. É o reflexo do goleiro posicionado para a cobrança de um pênalti. Com a prática, com a repetição, o treinamento, este reflexo se aperfeiçoa; o goleiro vai se tornando hábil na leitura do corpo do batedor, dos seus ritmos, do timing, das tendências de força, direção, lado, altura, efeitos... Tudo se decide em uma fração de segundos. Ele treina inúmeras vezes para acertar aquela jogada, única, rápida, decisiva.

A ideia de "espelho" sugere outro aspecto deste "reflexo", que é a sua relação com o "outro". Não existe este "conhecimento real" fora de uma determinada circunstância em que o sujeito se depara com estímulos originados fora de si mesmo. Neste sentido, o "reflexo" envolve um imiscuir-se no outro, no seu movimento, tornando-se um com ele. É o que o nosso amigo Jerônimo falava sobre a comunicação e o harmonizar-se com o outro... Assim, a técnica marcial seria como uma mediação, um veículo por meio do qual o si mesmo e o outro tornam-se, por um instante, uma única estrutura cinética.

Neste vídeo, aluno de 7 anos do projeto do Culturarte aprende aplicação de técnica de bastão, adaptando-a para movimentos de punho livre, para bloqueio de soco, seguido de qinna (torção de articulações). O objetivo não é ensinar à criança a se defender ou a "bater" em brigas, mas a compreender as múltiplas possibilidades de uma técnica, ajudando a constituir um modo de pensar plástico, flexível e ajustado ao desenvolvimento do saber-reflexo.

Enfim, não se trata de uma construção acumulativa de conhecimentos. A educação na lógica do combate é uma construção orgânica de mediações técnicas para o "saber-reflexo". Não é uma forma de educação para solucionar problemas previsíveis, mas para lidar adequadamente com o imponderável, para tomar decisões justas mediante às contingências. Ela não se encerra com o domínio da técnica, mas precisa passar ao nível do que, em várias artes marciais, por inspirações taoistas ou zen, nomeia-se como "não-técnica". Ela é um treinamento integral das faculdades cognitivas, afetivas, bio-motoras, sócio-culturais, direcionando-as para a prática no caos da vida humana. É um treinamento que passa pela "luta corporal", cuja lógica/poética exige e promove o desenvolvimento das sensibilidades e habilidades pertinentes à constituição de um "conhecimento real" em suas efetivas materializações éticas.

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