sábado, 29 de julho de 2017

Ritual de agachar-se. Afinal, para que serve, qual o seu valor?

As artes marciais asiáticas, em especial as chinesas, coreanas e japonesas, estão cheias de "rituais". Desde modos de cumprimentar, dirigir-se aos colegas, professores e mestres, até as atitudes e gestos protocolares diante do espaço de treino, há muitas formalidades em um "dojo". Afinal, quais os sentidos destes ritos para o praticante de caminhos marciais no ocidente moderno?

Há alguns anos, eu pratico Kung Fu e Tai Chi em horários intercalados na academia. No Kung Fu, temos o hábito de começar e terminar cada treino em "postura de meditação". Certa vez, minha professora de Tai Chi fez um comentário: achava muito engraçada aquela nossa "meditação fast food", que não durava "nem uns 10 segundos". Rimos juntos, pois, de fato, como meditação, a postura não valia muita coisa. Qualquer qigong que praticávamos na aula de Tai Chi era muito mais meditativo do que aquela "posição de meditação". Desde então, eu fico intrigado com a presença da postura em nossos treinos de Kung Fu. Ela foi introduzida pelo mestre na sua antiga academia, a Wushukuan, e nunca mais deixou de figurar nas aulas de seus alunos e ex-alunos, como no caso do meu professor.

Desde cedo, somos instruídos a entender aquele gesto como um meio de, no início, fechar-se para o mundo exterior, abrindo-se para o treino, e, no final, como meio de concentrar no que foi aprendido. Mas o fato é que não dá nem tempo para tudo isso. Mal nos acomodamos na postura e já está na hora de cumprimentar e levantar. É uma postura agachada, semelhante ao kiza (跪座) das artes japonesas, que, em Chinês, poderia ser pronunciado como guizuo.

Fig. 01: posturas de seiza e kiza em artes japonesas.

A utilização do kiza como postura meditativa, em si, é estranha. Normalmente, trata-se de uma postura de transição para o seiza (正座, zhengzuo, em Mandarim), ela sim bastante utilizada em meditação zen-budista.

Fig. 02: exemplos de posturas de meditação em diversas tradições asiáticas. Entre elas, o seiza, típico do Budismo Zen japonês.
A diferença básica entre o seiza e o kiza é a postura dos pés. Em seiza, é o peito do pé que encosta no solo. Em kiza, quem encosta no solo é o metatarso. Para alguém levantar-se de seiza precisa transitar para kiza e esta transição é que justifica a sua existência. Note-se que seiza ou zhengzuo significa, literalmente, "forma correta de sentar-se". Correto (正), no caso, não se trata apenas de uma questão anatômica, mas também moral. Pode-se dizer que não é somente a maneira correta de sentar-se, mas igualmente a maneira do homem correto assentar-se. No Confucionismo, busca-se, com o ritual, a obtenção do efeito visual externo de um princípio moral devidamente internalizado. O gesto do homem cultivado é sempre, portanto, a expressão do seu coração. Por isso, a importância de assentar-se corretamente.

A postura de 正座 é muito antiga. Ela pode ser observada em imagens artísticas de séculos atrás. Um dos temas iconográficos em que mais aparece é tipicamente confucionista: o do "amor filial" (xiao, ).

Fig. 03: Exemplo de iconografia que representa o "amor filial".

No Confucionismo, a base da vida social nasce do "amor filial", que progride na direção do "amor aos mais velhos" e do "amor a todos". Este "amor" ou "respeito" relaciona-se à consciência de pertencimento à tradição (da família). É por meio do laço parental que o sujeito se reconhece como parte de algo muito maior e muito mais duradouro. Por meio deste coletivo, ele aprende os valores e cultiva a sua benevolência natural, conhece a cultura e a literatura, enfim, se faz homem. Sua maior expressão é o culto à ancestralidade, o compromisso que cada um deve fazer de preservar a essência da sua linhagem e a honra da sua casa.

Não é preciso ter muita familiaridade com os ambientes de artes marciais tradicionais, sejam elas coreanas, japonesas ou chinesas, para saber do peso que a ancestralidade tem para os seus adeptos. Em muitos casos, no ocidente, ela tende até mesmo a ser afetada, estereotipada, transformada em fetiche e dogma; mas, seja como for, ela é importante como amalgama dos grupos que se reúnem em torno de um mestre, um sensei, uma associação, uma academia... Se é assim, faz total sentido a preservação de gestos de reverência e respeito a partir das posturas de seiza e de suas variantes, como o kiza. Chamada de "postura de meditação", não necessariamente ela serve a este propósito. Muitas vezes, ela é uma postura ritual.

Como um exemplo de ritual nas artes marciais que parte da postura de seiza, é muito paradigmática, no Karatê Shotokan, a saudação inicial e final das aulas. Protocolarmente (como no vídeo abaixo), começa-se com a recitação do Dojo Kun, uma lista de compromissos éticos do praticante do karatê. Em seguida, o sensei, seguindo procedimento típico também do Judo, volta-se à imagem do mestre (ou simplesmente para as costas do sensei) e se faz uma saudação, o Shomen (正面) Ni Rei; depois, voltando-se para a turma a saúda e é por ela saudada com as palavras de Sensei (先生) Ni Rei. No caso do vídeo abaixo, acrescenta-se o Senpai (先辈) Ni Rei, quando os próprios alunos voltam-se uns para os outros, saudando-se fraternalmente.

Vídeo 1: Dojo Kun em uma aula/curso de Karatê.


Shomen, Sensei e Senpai são, todas, formas de tratamento respeitoso, ordenadas hierarquicamente do mais importante (e mais antigo), o mestre fundador, àqueles que estão no mesmo patamar dos praticantes ou em um patamar mais próximo: os "irmãos mais velhos", os alunos com mais tempo de prática ou maior graduação. Entre eles, está o sensei, o professor, que faz a mediação entre o passado da arte (de onde a aprendeu) e o seu futuro (aqueles a quem a ensina). Agachar-se é, neste caso, um gesto de humildade e respeito, por meio do qual todos tacitamente se reconhecem como parte de algo muito maior. Trata-se de um compromisso com a continuidade da prática e de seus valores, uma forma de lidar com o tempo e com a dialética da permanência e da impermanência. É similar ao culto da ancestralidade, do respeito funerário e de valorização do legado. Ao mesmo tempo, é um compromisso com as novas gerações, um colocar-se em serviço delas, com humildade e respeito também.

Honrar (a ancestralidade) e servir (ao senhor) são dois valores centrais do Bushido, o antigo código de conduta dos samurais japoneses, desenvolvido por volta do século IX da nossa era cristã, fortalecido no século XVII e cultuado até o século XIX, quando há o declínio do xogunato (Tokugawa). Não por acaso, a postura de seiza é das mais comuns na representação dos samurais. Ela indica e sintetiza estes valores, identificando o status da pessoa representada.

Fig. 04: Nakaoka Shintarō (1838-1867), samurai japonês do final do período Tokugawa,
representado na postura tradicional de seiza.
Fig. 05: Sensei Morihei Ueshiba (1883-1969), nascido no Japão já na Era Meiji,
fundador do Aikido, representado na postura tradicional de seiza.


O Budo apropriou-se tanto dos valores quanto dos gestos associados à antiga classe guerreira do "Japão feudal". Não por acaso, artes como o JudoKendo e o Aikido possuem tantas técnicas que partem da postura seiza e de suas variações, quando não, métodos completos de luta nessas condições. Em Kendo, por exemplo, os combates iniciam e terminam em posição de respeito denominada sonkyo (蹲踞), dunju, em mandarim, postura também bastante típica no Sumo. Não se trata de uma variação de seiza, mas também é uma postura agachada, intermediária entre o totalmente assentado do seiza e o totalmente de pé.

Fig. 06: praticantes de Kendo alinhados em sonkyo para o início de combate.


Uma das artes mais importantes do kendo é a de desembainhar a espada. Há inúmeras técnicas que envolvem-na e, geralmente, elas também são técnicas de elevação do corpo desde uma postura de repouso em seiza, kiza ou sonkyo para ficar em pé. O vídeo abaixo, em seus primeiros minutos, está recheado de exemplos.

Vídeo 2: Sensei Haga Junichi, demonstração de técnicas de Kendo por volta de 1957.


No Aikido, o mais belo exemplo é o suwari waza (座り技). Mal compreendido, algumas pessoas podem questionar a eficiência de suas técnicas em circunstâncias atuais de autodefesa. No entanto, além de ter um sentido muito preciso de treinamento para o Aikido, reduzindo consideravelmente as possibilidade de compensar falta de técnica com força bruta, o suwari waza faz todo sentido quando se pensa em hábitos mais recorrentes de posturas agachadas em sociedades como a japonesa durante o xogunato. É uma luta entre "cavalheiros", acostumados a se sentarem como tais.

Vídeo 3: Sensei Shirakawa Ryuji, demonstração recente de técnicas de suwari waza.


E não é só nas artes marciais que a postura agachada, especialmente de seiza, é utilizada no Japão, na China ou na Coréia. Ela está presente em quase todos os rituais cotidianos mais tradicionais, tais como as cerimônias do chá, por exemplo. Também é utilizada em outras artes, tais como a caligrafia e a Ikebana, inclusive por mulheres, pois a postura não é exclusivamente masculina.

Fig. 07: mulher, em trajes japoneses tradicionais, prepara Ikebana em postura de seiza.


A pura repetição irrefletida de posturas não ajuda a desenvolver nem técnica nem eticamente um sujeito que busque praticar artes marciais como um "caminho". Elas precisam ser compreendidas em seus sentidos tradicionais e repensadas conforme as circunstâncias do presente. Assim, retomo o uso do kiza  (guizuo) ou da "posição de meditação" em nosso sistema de guoshu. Seu uso atual não é nem a meditação propriamente dita nem a reverência cerimonial a que está convencionalmente associada. É, na verdade, uma combinação suavizada ou "liquefeita" de ambas. A postura cumpre o seu papel, que é organizar as atitudes dos alunos no Daochang. Ela busca ensinar que, ali dentro, deve-se adotar um comportamento de serenidade, humildade, respeito, seriedade e concentração; virtudes que se esperam no conjunto da vida de cada um daqueles sujeitos e não só durante os treinos. Ela também hierarquiza o grupo, sem perder de vista que, diante da turma, professores e instrutores também agacham-se com humildade e reverência. Ela resguarda uma atitude "filial" imprescindível para a prática do caminho marcial como memória e sentido de pertença. Mas, para meditar "mesmo", não passa de fast food...

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