terça-feira, 1 de agosto de 2017

Reaprender as artes de viver.


Hoje, pretendo sair um pouco do tema mais específico das artes marciais para falar um pouco mais dos papéis da educação integral no mundo contemporâneo e sobre a urgência de modelos alternativos à educação para o trabalho e para o consumo.


Em um famoso texto no meio acadêmico, o historiador marxista britânico Edward Palmer Thompson expôs sua tese sobre os efeitos subjetivos de uma nova concepção de tempo, que surgiu em conjunto com o desenvolvimento da tecnologia do relógio, em compasso com as demandas de exploração do trabalho na época do Capitalismo Industrial. Em contraste com outras sociedades e culturas "rurais" ou "pré-industriais" - nas quais os ritmos de trabalho obedecem ciclos irregulares e intermitentes, oscilando momentos de intensa atividade com hiatos de "ociosidade" -, as sociedades urbanas do capitalismo industrial desenvolveram um ritmo regular da produção e, com ele, uma disciplina do trabalhador, organizada conforme uma economia do tempo. Semelhante reflexão é possível quando assistimos ao filme Tempos Modernos, do genial Charles Chaplin, uma sátira tragicômica do fordismo, vivida por personagens marginalizados dos grandes centros urbanos.

Voltando a Thompson, ao final de seu texto, nos deparamos com trechos em que o autor ensaia algumas possibilidades de transformação da experiência do tempo na medida em que haja maior automatização da produção industrial. É interessante lermos este texto na atualidade, aproximadamente 50 anos depois que foram escritos e publicados pela primeira vez, na revista Past and Present. Podemos, hoje, testar as suas hipóteses de futurologia e refletir até que ponto elas ajudam a compreender o mundo atual. Escreve:

"Se vamos ter mais tempo de lazer no futuro automatizado, o problema não é 'como as pessoas vão conseguir consumir todas essas unidades adicionais de tempo de lazer?', mas 'que capacidade para a experiência terão as pessoas com este tempo livre?'. Se mantemos uma avaliação de tempo puritana, uma avaliação de mercadoria, a questão é como empregar esse tempo, ou como será aproveitado pelas indústrias de entretenimento. Mas se a notação útil do tempo se torna menos compulsiva, as pessoas talvez tenham de reaprender algumas das artes de viver que foram perdidas na Revolução Industrial: como preencher os interstícios de seu dia com relações sociais e pessoais mais enriquecedoras e descompromissadas; como derrubar mais uma vez as barreiras entre o trabalho e a vida." (THOMPSON, E. P. Tempo, disciplina de trabalho e capitalismo industrial. In: Costumes em comum, São Paulo: Editora Schwarcz, 1998. p. 302.)
O "futuro automatizado" a que se refere o autor já chegou. Ele é o nosso tempo presente. Em comparação com 50 ou 100 anos atrás, os processos de produção industrial do mundo capitalista tornaram-se muito mais instrumentalizados pela tecnologia. Computadores sofisticados e robôs ultra precisos fazem trabalhos que outrora ou eram realizados por homens, mulheres e crianças ou simplesmente não eram sequer possíveis. Mesmo a nossa agropecuária exige muito menos mão de obra humana ou tração animal. As máquinas são como as antigas ovelhas do século XVI e, nas últimas três ou quatro décadas, se levarmos em conta a realidade brasileira, vivemos uma verdadeira inversão demográfica, com o esvaziamento do campo e a superlotação das grandes cidades. Homens de negócio fecham transações à distância, por meio de ligações e videoconferências, formalizam contratos com assinatura digital... Entretanto, apesar dos grandes índices globais de desemprego e nunca antes a humanidade demandar tão pouco trabalho humano, vivemos a sensação de que estamos sempre ocupados.

Nossa vida privada também vivencia os "benefícios" da automatização. Os computadores pessoais e os atuais celulares poupam-nos até mesmo de enfrentarmos filas de bancos e, até mesmo, irmos pessoalmente fazer compras de supermercado. Nossas roupas são lavadas por máquinas, bem como a nossa louça... Até para fazer a barba utilizamos energia elétrica. Temos freezers que não acumulam gelo (alguns mais jovens nem sabem do que estou falando...)... Carregamos dezenas de ferramentas em nossos bolsos, confinadas em um microchip. Se no trabalho doméstico e na vida profissional estamos tão assistidos de instrumentos que nos poupam tempo, por que não temos tempo livre? Será que não temos mesmo ou não sabemos o que ele é, nem como pode ser verdadeiramente utilizado?

O tempo livre que nós temos nós o consumimos. São tantas as opções de lazer quanto de pequenas tarefas que achamos disponíveis para nós no mercado de entretenimento. Algumas chegam a se mesclar de tal forma em nosso "tempo útil" que mal notamos o quanto elas são distrações. Jogos, redes sociais, compras, viagens de turismo, imagens, séries, filmes... Não há quem não gaste horas por dia com atividades distrativas sem nem notar. Entre elas, podemos inserir algumas tarefas que são quase "trabalho" ou uma nova forma de trabalho que concorre com a profissão e as tarefas domésticas: o suposto "cuidado de si", que não passa, na maioria dos casos, de um cuidado contra o envelhecimento, para uma estética específica e uma concepção fantasiosa de saúde e bem estar. Nesta modalidade de trabalho, temos as academias, as corridas, as caminhadas, os salões, as consultas médicas, as terapias... Até mesmo as artes marciais e, quiçá, as religiões... Nos ocupamos tanto com estas "obrigações" em nossa rotina, nos devotamos tanta energia e tanto tempo a elas como se elas fossem parte do nosso tempo útil.

Quanto à família, nossas relações interpessoais mais difíceis de contornar, bem... esta, como dá "trabalho"! Filhos? Muito trabalho. Idosos para cuidar? Muito trabalho! Assim como em nossa profissão esperamos pela aposentadoria, na vida familiar, esperamos pelo momento em que nos tornaremos avós... Parece que só lá poderemos ter tempo para "curtir", tempo para "nós mesmos"... Pura ilusão. Primeiro, porque a velhice também dá trabalho, até porque a fragilidade natural do corpo, com o tempo, vai nos demandando mais e mais esforço para aquelas mesmas tarefas que realizávamos sem maiores dificuldades enquanto jovens. Segundo, porque depois de décadas não nos dando tempo para nós mesmos, quando chegamos na velhice, acabamos vítimas da depressão e da falta de sentido na vida.

Por falar em velhice, ela é mais um fator que nos tem dado mais tempo na vida. O avanço da medicina e das condições de prevenção a doenças contagiosas, desde a Revolução Industrial, colocou o mundo, em média, numa condição ímpar: nunca mais vivemos declínio demográfico, só aumento! A expectativa de vida também cresce nos meios urbanos, especialmente para as classes altas e médias, mas também para os mais pobres. A química nos trouxe "soluções" para diversos problemas que nos tomavam "tempo de vida" ou "tempo para curtir a vida": pressão alta, colesterol, impotência, depressão... Para tudo isso existe algum tipo de comprimido! Com algum investimento, a medicina deu para as mulheres meios até de contornarem alguns efeitos da menopausa, como é o caso da reposição hormonal. Rugas, queda de cabelo? Quando não há cremes, há próteses, implantes, cirurgias... É verdade: temos mais tempo de vida e de juventude, se quisermos, mas ter isso também demanda um certo trabalho e, necessariamente, consumo! E para podermos consumir: trabalho!

Daí, pergunto, será que temos, como aparece no texto de Thompson, sabido preencher os interstícios de nossos dias de trabalho, o nosso "tempo livre" com relações mais enriquecedoras e descompromissadas? Será que estamos vivendo o nosso tempo conosco mesmos e com os outros? Quando digo "nós mesmos", não penso em nossos personagens sociais e nas nossas máscaras. Penso nos seres frágeis, carentes, perecíveis e desejantes que vivem sufocados em nossas carcaças. Quando digo "os outros", não penso em avatares de redes sociais, nem em amizades de conveniência, nem em parentes que visitamos protocolarmente, nem naqueles sujeitos que, vivendo sob o mesmo telhado "conosco", insistem em ser algo que nós não queremos... Penso no outro como seres dignos em si mesmos, ricos em sentimentos, expressões e beleza própria, com os quais podemos trocar nossas angústias e alegrias; nossos sucessos e frustrações.

Poster do filme (musical) The Wall, de 1982, que representa
o sistema educacional (do século XX) como uma máquina de moer carne.

Vivemos uma época perigosa para a educação. Mais e mais nossos sistemas de ensino focalizam a "vida" como se ela fosse um objeto a ser consumido. A ideia (ideologia) do "projeto de vida", muitas vezes vendida como proposta de educação integral, é um eufemismo para educação para o trabalho no mundo contemporâneo. Ou melhor, trabalhos, pois hoje eles não se restringem à profissão e às tarefas domésticas. Envolvem uma verdadeira tecnologia de "gestão de si mesmo". Ela prepara para o "mundo", mas entendendo o mundo como uma realidade concreta sobre a qual é possível realizar, por meio de planejamentos e esforço, as fantasias do consumo. Prepara ela para o nosso encontro inevitável um dia para a morte? Prepara-nos para as frustrações e os "nãos" que este mesmo mundo volta e meia nos oferece? Prepara-nos para nos conhecermos profundamente, para distinguirmos nossos desejos mais verdadeiros dos estímulos do marketing? Prepara-nos para o encontro realmente respeitoso e aberto com a alteridade? Prepara-nos para desenvolvermos sentimentos e ações altruístas? Se for possível pelo menos um "meio sim" para cada uma destas perguntas, eu abandono estes meus projetos e vou apoiar o modelo de educação que nós temos aí. Mas se as respostas forem desoladoras, como suponho que sejam, buscar alternativas é urgente. Precisamos de uma educação que nos faça reaprender as artes de viver. Mas não se engane, pois há quem venda "isso" também...

4 comentários:

Unknown disse...

Isso tudo está alinhado com o que falam os (ou alguns) teóricos do lazer, que são em grande parte sociólogos, que é a educação para o lazer. É preciso educar as pessoas por meio do lazer e também para o lazer, de forma que elas saibam o que fazer com o seu tempo livre, tempo de lazer, ócio, tempo de não-trabalho ou qualquer outro termo equivalente do meio. Sem essa educação para o tempo livre, é grande o risco de desperdiçá-lo em atividades que empobrecem ao invés de enriquecer, de dar significado à vida.

Guilherme disse...

Sim. Obrigado pelo comentário, Jerônimo.

Unknown disse...

Adorei o texto. Parabéns.

Guilherme disse...

Obrigado, Diana. Este texto foi resultado de uma boa discussão com os alunos de Estágio Supervisionado I, do curso de Licenciatura em História, no primeiro semestre de 2017. Discutimos a respeito de tecnologias contemporâneas e as novas percepções do tempo, aproveitando os insights de Thompson sobre o tempo do relógio na época da Revolução Industrial.