terça-feira, 8 de agosto de 2017

Professor de artes marciais é mesmo professor?

Professor de artes marciais é mesmo professor? Você já se perguntou sobre isso? E já se questionou sobre os motivos desta dúvida? Neste texto, tentaremos problematizar um pouco a respeito deste tema.

Primeira aula (no início de 2016) ministrada para o Projeto de Tupaciguara, na Escola Estadual Sebastião Dias Ferraz.

A última postagem neste blog, de Jerônimo Marana, foi um sucesso de público. Seus acessos foram dez vezes mais numerosos do que a média dos textos publicados neste espaço. Segundo o autor, o número chegou a ser também mais expressivo do que aqueles dos textos presentes no seu próprio blog. O tema talvez ajude a explicar a razão do sucesso. Ao abordar uma questão didática, ele traz à tona uma velha polêmica: quem ensina artes marciais é professor? Se é, precisa de ter formação adequada?

Do ponto de vista jurídico, a questão está vencida. São águas passadas. Desde 2010, uma decisão do Tribunal de Justiça de São Paulo, motivada por ação de aikidocas contra o Conselho Regional de Educação Física (CREF) daquele estado, definiu a inconstitucionalidade e a ilegalidade do CREF querer fiscalizar ou cobrar qualquer tipo de taxa de instituições ou pessoas que ensinam artes marciais em geral e Aikido em particular. Isso porque houve o entendimento de que a educação corporal não é a atividade fim nem das artes marciais, nem da dança, nem do Yoga. Assim, elas extrapolariam os limites da Educação Física propriamente dita e dos objetos que compõem atividades exclusivas de seus profissionais.

Um efeito da decisão jurídica é que, para dar aulas de artes marciais, o sujeito não depende de qualquer formação específica. Na verdade, não depende de qualquer formação superior. Em tese, qualquer um pode ser professor ou instrutor de artes marciais no Brasil. Não há qualquer controle estatal sobre isso. Há apenas o controle de federações e/ou associações que, reconhecidas civilmente, habilitam instrutores e professores oficiais. Para isso, cada uma define os seus critérios e eles, não necessariamente, apresentam preocupações com a dimensão pedagógica da formação.

Porém, o fato jurídico de os professores de artes marciais não serem professores não resolve a questão, que não é legal, mas pedagógica e cultural. Para entender melhor a questão, é preciso aprimorar o nosso conceito do que seja um "professor", abstraindo a sua dimensão meramente escolar. Hoje em dia, os "espaços educacionais" não são compreendidos como sinônimos de "espaços escolares". Há também os espaços não-formais, em que ocorrem processos organizados de ensino-aprendizagem complementares ao sistema formal. Os espaços de prática e aprendizado de artes marciais são perfeitamente compatíveis com o moderno conceito de espaço educacional não-formal. Seus objetivos abrangem elementos típicos destes espaços, tais como o desenvolvimento de uma postura ética e cidadã, a fruição cultural e mesmo a profissionalização. Nesse sentido, sim, o professor de artes marciais é um professor, entendido como um "educador" inserido em espaço não-formal.

Daí advém um enorme complicador. Se os ambientes da educação formal são complexos e diversos, se a formação dos profissionais da educação, de modo geral, já é muito variável; no caso dos espaços não-formais, o que se tem é um universo ainda menos regulado. Se, por um lado, isso é ótimo, por conta da liberdade e da diversidade de expressões possíveis de encontrar; por outro, apresenta perigos muito grandes, pois não permite qualquer controle sobre as eventuais distorções e enganações que se alojam no interior deste mercado.

O perfil dos professores de artes marciais é muito variável. Traçar tipologias envolve riscos de simplificações e reprodução de estereótipos. Porém, é muito claro que um grande número de professores de artes marciais não tem nem mesmo consciência do que significa ser professor. Muitos nem mesmo se reconhecem neste lugar. Outros, no extremo oposto, supervalorizam a própria condição e querem se portar como "pais" ou "gurus" de seus alunos, inspirados por alguma fantasia presunçosa herdada de filmes e do imaginário de senso comum. Alguns vivem economicamente de dar aulas de artes marciais; outros o fazem em paralelo com outras profissões, muitas vezes sem nenhuma conexão com o magistério. Alguns têm formação superior; outros, não. Uma parcela tem escolaridade inclusive muito baixa e seus conhecimentos para dar aula são praticamente limitados ao conhecimento técnico de sua arte.

O resultado disso é que uma quantidade muito expressiva de professores amadores mal instrumentalizados, dependentes da sua própria sensibilidade, orientados (quando muito) por quem também não tem conhecimentos específicos nesta área e, por conseguinte, arraigados a processos educacionais tradicionais sobre os quais eles não conseguem refletir, mas apenas reproduzir sem qualquer criticidade ou inventividade. Tais professores sofrem de um mal terrível: o da confusão entre o que deve ser aprendido e como se deve aprender. Há bons estudos a respeito do assunto. No caso do wushu ou das artes marciais chinesas, sugiro o artigo de Marcelo Moreira Antunes e Diego Luz Moura, publicado em 2010 (baixar). Neste artigo, os autores identificam uma tendência dos professores de wushu formados em Educação Física terem estilos educacionais mais abertos e conscientes do que os professores sem esta formação. O artigo não aborda os casos de professores de artes marciais com formação em outras licenciaturas, no entanto.

Por outro lado, a tentativa da Educação Física apropriar-se das artes marciais como área exclusivamente sua também descamba em muitos problemas. Dados de um artigo recente sobre uso escolar de wushu no Brasil, mostram o quanto é importante a formação e a prática específica de uma arte marcial para que ela seja efetivamente trazida pelo professor de Educação Física à escola com a finalidade de desenvolver aspectos motores, cognitivos e socioafetivos nos estudantes (baixar). Ou seja, se a formação pedagógica é importante, a prática específica da arte marcial também é.

Ademais, quando se analisam os documentos oficiais de Educação Física (fiz, no caso, um exercício com a segunda versão da proposta de Educação Física na BNCC), é possível perceber o quanto a concepção sobre as artes marciais chinesas (especialmente) é limitada. Ainda que o documento parta de uma concepção inovadora de práticas corporais como patrimônio cultural, a tipologia que diferencia lutas de artes marciais ou de ginásticas, por exemplo, é absolutamente inoperante para o universo das artes marciais asiáticas em geral e, ainda mais, para o das chinesas. Ainda que a Educação Física tenha contribuições riquíssimas para o desenvolvimento do ensino de artes marciais (provavelmente as mais ricas contribuições), ela não se basta como área capaz de abarcar a formação deste professor em específico.

Ainda estamos muito longe, no Brasil, de termos uma formação pedagógica específica para professores de artes marciais e, talvez, criar algo assim nem seja a melhor das saídas. Por hora, o melhor parece ser o investimento na qualificação das formações de instrutores e professores no interior de associações, federações e confederações, aproximando-as de instituições de ensino, especialmente as instituições superiores que formam professores (de diversas áreas). Este é um dos objetivos mais centrais dos nossos projetos e envolve investigações sobre perspectivas de formação. Quando trazemos isso para a vizinhança das humanidades, queremos reconhecer o professor de artes marciais também como agente promotor de sensibilidades com o tempo, o espaço e as práticas sociais; difusor de culturas e do patrimônio cultural; formador de perspectivas éticas e cidadãs; facilitador de diálogos interculturais; conscientizador das responsabilidades dos sujeitos consigo mesmos e com a coletividade. Isso é possível e viável no âmbito da própria formação não-formal, em interlocução com os sistemas formais de ensino.

Por último, gostaria de abordar mais um aspecto da questão. Muitos professores de artes marciais, graças a ambiguidades do próprio meio marcial, confundem atingir altos graus de conhecimento e desenvolvimento técnico com a obtenção da função social de "professor". Há um senso comum de que faixa preta e professor são termos sinônimos... Este é um dos principais mecanismos de reprodução de práticas inadequadas de ensino no meio marcial. Um dos seus efeitos é uma espécie de "obrigação moral" de ensinar sentida pelo praticante graduado. É preciso ter clareza de que um praticante avançado de artes marciais não precisa se tornar um professor. Professor não é nível técnico, mas uma função social, quando não uma profissão. Requer vocação, formação pedagógica e sensibilidades específicas. O nível técnico deve ser um pré-requisito para alguém se tornar professor de artes marciais, mas não se pode confundir as duas coisas como se fossem uma só. O melhor professor não necessariamente é o melhor artista marcial. E o melhor artista marcial não necessariamente será o melhor professor.

Se você é professor de artes marciais pergunte-se sempre o que você precisa para se tornar cada vez melhor como professor. Se você aspira ser um dia professor de artes marciais, sempre indague-se a respeito de suas reais motivações. Se vai ensinar, tenha consciência de que você será um professor. Tenha consciência de que, para isso, não bastam as suas opiniões e impressões, que há como melhorar a sua formação, desenvolver instrumentos, melhorar seus métodos. Tenhamos sempre a humildade de nos reconhecermos como sujeitos em contínua formação e não tenhamos medo de nos depararmos volta e meia com os nossos limites. Eles são nossos, são parte da gente e podem ser alargados até o último momento de nossas vidas.

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