Por Guilherme Amaral Luz
Quando
eu digo que desenvolvo projetos de extensão universitária com kung fu e
humanidades voltados a crianças e adolescentes, é comum (e muito compreensível)
que as pessoas reconheçam muito diretamente tais iniciativas como “projetos
sociais”. De fato, é o que eles são, mas este rótulo esconde, por trás de si,
significados muito variáveis, de modo que acaba não indicando nada de mais preciso.
O que eu pretendo traçar aqui são as linhas gerais das diferenças e
articulações entre três tipos de projetos: educacionais, culturais e sociais.
Nesta
tipologia que proponho, o tipo mais geral não é o dos “projetos sociais”, mas dos
“educacionais”. Isso porque opero com a concepção das artes marciais como “caminhos”
(道, 도, dao,
do...). O “caminho marcial” é mais do
que o aprendizado de técnicas voltadas à defesa pessoal ou ao espetáculo
artístico. Ele supõe o desenvolvimento global do ser humano, a educação
integrada de seu corpo, da sua mente e do seu espírito com vistas a tornar-se
melhor, mais livre e potencialmente mais feliz. Assim sendo, todo trabalho com “caminhos
marciais” é, no limite, um projeto educacional. Aquilo que assim o define é o
seu objetivo primeiro: colaborar com o processo natural, constante e inacabável
do desenvolvimento humano, orientando-o numa perspectiva virtuosa. Os “projetos
educacionais” não são exclusivamente aqueles que se desenvolvem em escolas. A
própria educação escolar não é mais do que uma forma de educação, cujos espaços
e práticas vão muito além daqueles da escola (moderna). A educação é o
aprendizado constante da cultura na medida em que há convívio e trocas de
saberes e de experiências entre seres humanos em desenvolvimento.
“Projetos
sociais” possuem objetivos mais específicos que os “projetos educacionais”.
Porém, em certo sentido, os “caminhos marciais”, como “projetos educacionais”,
possuem valor social intrínseco. Isso porque a formação do ser humano possui
aspectos individuais e coletivos, internos e externos; inclui o “pequeno
caminho” (小道) e o “grande caminho” (大道). Como
ser social, o ser humano aprende uns com os outros, em convivência e por meio
de uma faculdade talvez singular da nossa espécie e essencialmente coletiva: a
linguagem. Todo ser vive em relação com outros seres e aprender a viver implica
o aprendizado da convivência. “Projetos sociais” são aqueles cujos objetivos
primordiais são a promoção da convivência entre os “iguais” e os “diferentes”,
buscando meios de reduzir as distâncias sociais provocadas pelas desigualdades
e promover harmonia, respeito e paz entre os diferentes. “Projetos sociais” não
devem ser encarados, portanto, como filantropia ou meios de reduzir a violência,
o uso de drogas ou algo que o valha; eles são mais do que isso: são caminhos de
promoção da fraternidade e da cooperação. Não objetivam “formar vencedores”, mas
cidadãos conscientes e comprometidos com o seu espaço de (con)vivência social
(o que inclui o mundo, o país, a cidade, o bairro, a família, a escola etc.).
Falta,
agora, falar um pouco dos “projetos culturais”. Quando pensamos em “artes
marciais”, sobretudo aquelas ditas “tradicionais”, supomos que elas se
distinguem de outras modalidades esportivas por conta de sua relação muito
estreita com determinada cultura, povo, nação ou etnia. Nesta perspectiva, o
substrato filosófico e cultural das “artes marciais tradicionais” é dos seus
aspectos mais essenciais, mais valorizados e cultuados entre os praticantes
avançados e conscientes do seu legado histórico. Em última instância, é a relação
com determinada cultura que fornece a identidade própria e o entendimento daquilo
que os “caminhos marciais” têm a ensinar. “Projetos culturais” são aqueles cujo
principal objetivo é preservar, estudar e divulgar o legado cultural e
filosófico que dá inteligibilidade aos “caminhos marciais”. Isso não se
dissocia, inclusive, do legado propriamente técnico dos movimentos das artes
marciais, que apresentam, na sua forma e nos seus sentidos, maneiras de dar
inteligibilidade a princípios e teorias, o que depende, por sua vez, da imersão
do praticante em determinada “visão de mundo”. A linguagem gestual das “artes
marciais” é, em outros termos, um código cultural.
Como
espero que tenha ficado subentendido, há diferenças entre os três tipos aqui
definidos de “projetos”, mas também uma profunda relação de interdependência
entre eles. É impossível trabalhar exclusivamente numa perspectiva educacional
sem levar em conta as dimensões culturais e sociais envolvidas. Do mesmo modo,
trabalhar exclusivamente os aspectos culturais ou sociais não funciona. Quando
digo que um projeto é “educacional” isto quer dizer que predomina o seu
objetivo de formação humana integral frente aos demais. Se digo que é social,
predominam os objetivos da convivialidade e da ética nas relações humanas. Se
digo que é cultural, predominam os objetivos de estudo, preservação e divulgação
do universo cultural das artes marciais e de seus “povos originários”. Porém,
em qualquer um dos tipos, os aspectos educacionais, sociais e culturais estão
presentes, alimentando-se mutuamente. Assim, talvez a expressão genérica mais
eficaz para nomear tais projetos seja “projetos educacionais-sociais-culturais”
ou tão somente “projetos” ou, ainda, simplesmente “caminhos”, retornando-se,
enfim, para o lugar de onde toda a reflexão originou-se.
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