quarta-feira, 1 de fevereiro de 2017

"Filosofia" e "Artes Marciais Chinesas"


Discorrer sobre as relações entre "filosofia" e as "artes marciais" ou, mais perigosamente ainda, sobre a "filosofia das artes marciais" é terreno pedregoso. Talvez fosse uma tarefa bem mais fácil se optássemos por abordar a questão no caso do Budo (武道) japonês ou na sua tradução chinesa, Wudao (武道). Porém o problema se transforma em algo mais complexo para aquilo que convencional e genericamente denomina-se "kung fu" ou "wushu", sobretudo, no atual contexto das sociedades (orientais ou ocidentais) contemporâneas.

Existe uma "filosofia das artes marciais"? Diferentes autores dão respostas distintas para isso. Há uma tendência geral de colaboradores do periódico Ido Movement for Culture, por exemplo, de considerar que há uma filosofia própria das artes marciais (em geral). Seu principal exponente é o professor polonês de Educação Física e sensei de várias artes do Budo japonês, Wojciech Cynarski. Segundo ele, "a filosofia das artes marciais é tanto a prática de sistemas axio-normativos, determinando estilos de vida quanto a descrição da internalização de certos valores. Há também uma sub-disciplina filosófica emergente, que resulta de uma antropologia dos caminhos do guerreiro. Finalmente, ela é uma metateoria para a área de conhecimento e as disciplinas científicas descritas como a ciência das artes marciais"(Cynarski, 2013: 05). Perceba-se que, para ele, não só existe uma filosofia própria das artes marciais como também há, mais recentemente, um campo científico para as artes marciais em geral. Se pesquisamos os artigos do periódico, vemos que este campo científico e esta filosofia são abordados não somente no universo das artes marciais asiáticas, mas de todas as culturas, como, por exemplo, as da cavalaria na Idade Média ou a Capoeira do Brasil.

A concepção, no entanto, que informa os pressupostos o Ido Movement for Culture é aquela que advém do Budo. É uma concepção cuja universalidade parece ser problemática. No próprio periódico, um outro importante autor, Fuminori Nakiri, ex-presidente da Academia Japonesa de Budo, defende a singularidade deste termo em relação às noções mais gerais de "arte marcial" ou de "esporte de combate". No Budo, segundo ele, o que há de mais característico é a confluência entre treinamento físico e treinamento técnico para o desenvolvimento mental e moral do praticante. Isso não se confundiria nem com "defesa pessoal", nem com "competições", nem com "espetáculo", nem mesmo com "prática de caráter religioso" (Nakiri, 2015: 11-25). A partir disso, podemos considerar que quanto mais genérica a definição que adotamos de "artes marciais", mais ela poderá compreender práticas com usos e naturezas diferenciadas. Neste caso, valeria perguntar, seria mesmo possível pensar numa filosofia comum ao Judo, ao Huka-huka dos índios do Xingu ou à Esgrima europeia? Tudo isso é "luta" ou, pelo menos, podemos assim chamar, mas seria isso suficiente para fazer emergir uma "filosofia" em comum ou uma "essência" a ser estudada por uma ciência geral das artes marciais? Parece-me que muito dificilmente.

E no caso das "artes marciais chinesas"? Será que podemos pensar em uma filosofia geral para elas? Para isso, inicialmente, talvez precisássemos decidir sobre como nomeá-las, tarefa, por si só, bastante difícil. Wuyi (武艺)? Wushu (武术)? Gongfu/Kung Fu (功夫)? Guoshu/Kuoshu (国术)? Wuji (武技)? Shoubo (手搏)? Sanda (散打)? Quanshu (拳术)? Cada um desses termos, embora sirvam para falar de práticas muito próximas de artes chinesas de lutar, trazem singularidades muito agudas. Guoshu, por exemplo, foi um nome muito popular na primeira metade do século XX e, depois, se expandiu para Taiwan. Guarda relação com a ideologia do Partido Nacionalista, o Guomintang/Kuomintang (国民党). Neste caso, traz consigo uma preocupação do uso das artes marciais para a formação de um "novo cidadão chinês", que se apropria da ciência e dos saberes modernos e ocidentais, de valores trazidos do Budo japonês, mas os integra em uma concepção de essência chinesa, inspirada em clássicos da literatura ética, metafísica e religiosa dos antigos chineses, como a do Budismo, do Taoismo e do Confucionismo. Muito próxima dessa concepção é aquela presente no conceito de Wuyi, palavra muito utilizada, por exemplo, no contexto da Associação Jingwu de Xangai (e das suas diversas filiais espalhadas pelo mundo). 艺, yi, é uma palavra chinesa para "cultura", cujo sentido mais arcaico remete-se à agricultura. Supõe a noção de "cultivo", no caso, de "cultivar-se" por meio da prática marcial, em sentido próximo àquele do Budo japonês. Não por acaso, outra palavra comum na época para "artista marcial" era 武士, wushi, palavra derivada do japonês (Bushi) que significa "guerreiro" ou "samurai", daí a expressão "bushido" (武士道), "caminho do guerreiro".

Nas perspectivas do guoshu  e do wuyi, não resta dúvida de que há uma "filosofia" intrinsecamente relacionada à prática da arte marcial. Mais do que isso, há relações diretas e historicamente verificáveis entre ela e a perspectiva do Budo japonês. Mas nem tudo é guoshu ou wuyi nas artes marciais chinesas e, mesmo estes termos, ao longo da história, mudam de significado e assumem uma polissemia tamanha, a ponto de não guardarem, muitas vezes, nenhuma relação com qualquer "filosofia". Estilos de artes marciais que foram compilados e ensinados nas Academias Nacionais de Guoshu espalharam-se pela China e pelo mundo, continuaram as suas histórias e ganharam outros usos. Também não há nenhuma razão para crer que, antes do movimento do guoshu, eles tivessem qualquer conteúdo filosófico intrínseco ou o sentido de auto-cultivo como determinante. Do mesmo modo, estilos mais antigos ou mais recentes de "artes marciais chinesas", dependendo de como são praticados, podem focalizar o seu aspecto de "caminho marcial" (budo, wudao, wuyi...) ou se definirem como algo distinto, tais como: "esportes de combate", "arte de espetáculo", "defesa pessoal", "sistema de luta", "prática fitness" ou mesmo atividades "menos nobres", como puras técnicas para matar ou para brigar na rua. Podem ainda se tornar fetiches orientalistas convertidos em crafts para vivências exotéricas ou new age, técnicas terapêuticas para a saúde e o bem estar, meios de meditação para místicos etc. Daí, temos que perguntar: em cada um desses casos (fora outros...), temos "filosofia"? E, tendo "filosofia", ela é sempre a mesma?

Esta questão nos leva a uma necessidade de precisar um conceito: filosofia. Sua etimologia grega é bem conhecida. Filo vem da palavra philia (φιλíα). Esta palavra significa "amor", porém em sentido bastante específico. Ela é conhecida a partir da fonte de Aristóteles, particularmente, da Ética a Nocômaco. O amor "philia" em Aristóteles é um sentimento altruísta. É um amor virtuoso, que não envolve paixões, mas um desejo de fazer aquilo que é bom para aquele a que se ama apenas por querer o melhor para ele. "Sophia" (Σοφία), por sua vez, é possível traduzir como uma das palavras gregas que remetem à "sabedoria". Mas não se trata simplesmente de conhecimento. "Sophia" é um modo de saber que, sendo conhecido, eleva o homem às virtudes da prudência, da razão e da temperança. Filosofia, neste sentido, é uma busca amorosa por favorecer a sabedoria que eleva o homem. Ela é a atividade do homem livre na Grécia Antiga e compõe Paideia (παιδεία), como arte liberal. Uma educação completa na Grécia Antiga envolvia tanto o estudo de artes voltadas ao intelecto - dentre as quais a Filosofia - quanto artes voltadas ao desenvolvimento físico, como a Ginástica (γυμνασία) e a luta, "palé" (πάλη).

Na Antiga China, pelo menos desde a Dinastia Han (206 a.C. a 220 d.C.) até as vésperas da República (no final do século XIX e início do século XX), o modelo educacional destinado à formação do "homem  livre", ou do "oficial do império", o "servidor público", envolvia algo semelhante àquilo que os gregos nomeavam Philosophia (φιλοσοφία). O nome disso era 儒学 (ruxue). O termo, literalmente, significa "estudo" () do Confucionismo (). Porém, 儒, por analogia, é sinônimo de "cultura", de "refinamento" e de "cortesia". A partir da Dinastia Song (960 a 1279), o Ruxue (儒学) foi amplamente revisto e ganhou o nome de Daoxue (), "estudo do Caminho", também conhecido como Neoconfucionismo. O 学 incorporou ao Confucionismo questões metafísicas típicas do Budismo e do Taoísmo. É desta época um grande desenvolvimento de teorias ligadas aos conceitos de ying e yang (阴 阳) e também em torno das substâncias qi e li (气 ).

Não é por acaso nem por fetiche "folclorista" que vários símbolos e um rico vocabulário proveniente da Metafísica Neoconfucionista estão presentes nas tradições literária, visual e oral das artes marciais chinesas. Desenvolvidas no exército, em famílias ou em templos, estas artes eram praticadas por comunidades de pessoas que, desde cedo, engajavam-se nos estudos do Daoxue () nas escolas das suas vilas. Não havia nada socialmente mais valorizado do que esses estudos, que eram as portas de entrada para o serviço público (inclusive para o exército). O artista marcial era também um "homem de cultura", refinado pelo estudo dos clássicos e de seus comentários canônicos. Evidentemente, nem todo "lutador" era um "erudito" e as artes marciais chinesas, ao longo da história, também beberam de fontes "populares" e menos "nobres". Contudo, a estrutura social herdada pela maioria das escolas e estilos tradicionais ainda existentes é aquela da "boa sociedade", fundamentada em valores tais como a filialidade () e a benevolência (), conceitos tipicamente confucionistas. Seu vocabulário é devedor do Ruxue (儒学e do Daoxue (). Na dinâmica histórica, pode ter incorporado conceitos e valores de outros sistemas filosóficos e de outras culturas, mas ainda é possível perceber uma presença forte dos traços desta longa tradição filosófica.

Daí, podemos nos colocar algumas questões (para finalizar): o que fazer com a "filosofia" nas artes marciais chinesas? Temos alguma obrigação com ela? Podemos relegá-la a segundo plano ou mesmo abandoná-la em nossa prática? Devemos fidelidade à filosofia dos chineses? Podemos alterá-la? A resposta, como quase todas, é depende. Depende do sentido que se dá à prática da arte marcial. Se ela é praticada como um "caminho", ou seja, meio de desenvolvimento humano, não faria sentido abstrair as suas dimensões filosóficas, que dão sentido a este "caminho". Nesse caso, a filosofia pode ser reinterpretada, atualizada, reapropriada, mas não é desejável que desapareça. Já se alguém pratica artes marciais com outros fins, como para manter a boa forma física, por exemplo, a filosofia é dispensável. Do mesmo modo, não é necessário conhecer nada do universo cultural e filosófico do wushu para vencer competições de taolu ou lutas de ringue. E tudo isso, sim, é kung fu.

Em nossos projetos, as artes marciais chinesas são abordadas como "caminhos marciais", portanto, culturalmente inseparáveis de escolas do pensamento chinês, cujas tradições estão vivas e em movimento, no diálogo que constituem com o mundo moderno. Assumir uma abordagem filosófica não se confunde com intelectualizar a nossa relação com as artes marciais, estudando-a na "pura teoria" ou repetindo o que imaginamos ser os seus "ensinamentos". Muito menos é uma busca pelos seus clichês e lugares comuns. Tampouco, é revestir militarismo, misticismo new age ou ideologia do vencedor com um verniz de orientalismo. Considerar a dimensão filosófica presente nos "caminhos marciais" é uma atitude que busca compreendê-los em seus fundamentos próprios. Visa colocar a mente e o corpo na dinâmica destes fundamentos, experimentando-os marcialmente em luta e no treinamento solitário. Isso envolve mobilizar todas as ferramentas que temos ao nosso dispor, sobretudo, a inteligência e a sensibilidade.

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