quarta-feira, 7 de fevereiro de 2018

O que é Tantui (Parte 2 - O Método)

Introdução

Na primeira parte desta série de textos sobre o Tantui, abordou-se um pouco da sua história, das suas origens étnicas e das suas relações com o Jiaomen Chanquan e outros estilos relacionados, sobretudo, da província de Shandong. Vimos que ele se originou como um estilo específico, hoje não mais existente no seu "todo", e que acabou sendo reduzido a um conjunto estruturado de sequências de movimentos (taolu, quantao, kati...) vistos como introdutórios para escolas de "punho longo" ou também para escolas "norte" de Kuoshu ou Wushu.

Nesta segunda parte, pretende-se abordar um aspecto um pouco mais específico relativo à estruturação das sequências ou "linhas" do Tantui. Não se pretende esgotar o tema, tampouco aprofundar nas hipóteses em torno dos motivos desta estruturação, para o que tenho poucos elementos, inclusive. O objetivo principal é refletir sobre esta estrutura como uma proposta pedagógica voltada aos dias de hoje.

As "Formas", Tao Lu (套路):

Alguém que está familiarizado com a prática de artes marciais chinesas certamente já se deparou com os termos 套路 (taolu), 拳套 (quantao) ou kati. Recentemente, um praticante avançado de Shaolin do Norte me passou uma explicação de que a palavra kati, ao contrário do senso comum que às vezes a supõe como uma adaptação do japonês kata (型) , vem do chinês e é termo próprio das artes marciais chinesas. Segundo esta explicação, o termo chinês, na verdade, seria 架子, jia zi, que pode significar "estrutura". Kati seria uma pronúncia de jia zi a partir do cantonês.

Todas estas palavras - inclusive a palavra kata, do japonês, pronunciada xing, em chinês - têm sentidos semelhantes. É comum, no âmbito das artes marciais, tomarmos todos eles como sinônimos e traduzi-los como "forma". Não é errado, porém, isto elimina alguns sinais de entendimento que cada uma destas expressões sugere sobre o próprio uso que podemos fazer das práticas que nomeiam.

套, tao, é um ideograma importante neste caso. Neste contexto (em outros, pode significar até mesmo preservativo masculino...), seu significado mais próprio é o de "pacote" ou de "classificador para um conjunto ou uma coleção". Coleção significa um conjunto de objetos singulares correlacionados entre si. Se eu possuo uma coleção de moedas, cada moeda vai ser de um material diferente, de um tamanho diferente, cada uma terá seu valor, sua procedência, sua datação, seu formato, mas todas serão classificáveis como "moedas", o que supõe relativa unidade de sentido, de uso, de função etc.



Nos quantao ou nos taolu, o que colecionamos que pode ser classificado? Esta resposta parece simples, mas não é tanto assim. Colecionamos chutes, socos, torções, projeções, chaves, golpes? Sim, mas os termos "golpes" ou "socos" não são suficientemente genéricos para classificarem uma coleção. Mesmo quando dizemos 拳套, quantao, não queremos dizer que a nossa coleção é de quan, punhos. O que queremos dizer com isso é que colecionamos técnicas marciais: 拳法 (quan fa). 法 é um ideograma que significa método, modos. No caso, quan  não significa apenas "punho" mas é uma sinédoque (uma figura de linguagem que permite tomar o todo pela parte) para se referir a todas as partes do corpo que podem ser utilizadas como "armas", para ataque e defesa.

Se quisermos, podemos utilizar a expressão inteira para a entendermos: 拳法套路, quan fa tao lu. Para entender a expressão, falta entender o conceito de linha. Até aqui está claro que se trata de uma organização (tao), de métodos ou técnicas (fa) marciais ou do corpo como arma (quan). Mas qual o sentido da linha (lu)? 

Linhas (lu, 路):



O termo "linhas" talvez não seja o melhor para traduzir lu, embora seja muito utilizado em português (e mais ainda em inglês) no meio marcial. Seu significado mais próprio e mais sugestivo é o de estrada, rota, viagem... Mesmo como "linha", seu sentido mais usual é como linhas de meios de transporte, como, por exemplo, linhas de ônibus. Veja (acima) novamente a imagem que utilizamos na publicação anterior. A imagem sugere percursos de um início até o fim, numa espécie de ziguezague, como um trajeto de jogo de tabuleiro. Mas esta é apenas uma representação gráfica. A prática do Tantui se dá sobre apenas uma reta, em deslocamentos da direita para a esquerda e da esquerda para a direita. Porém, cada deslocamento, de um ponto ao outro até inverter a direção novamente é chamado de uma "linha": 路. Cada uma destas linhas é um percurso, um deslocamento, um processo de sair de um lugar para chegar a outro e, a partir dele, tomar outra direção. No final do conjunto (ou da coleção) destas estradas, tem-se formado um todo. Este todo se forma pelo acúmulo destes caminhos, cada qual com as suas particularidades, mas todos partícipes desta inteireza, com os seus princípios gerais.

A analogia do percurso do quan fa tao lu com a ideia de uma viagem também aparece em manuais de outras formas e estilos diferentes do Tantui. Por exemplo, um manual de 1936, escrito pelo Mestre Miao Ganjie, sobre o Bajiquan (八極拳), afirma que o estilo pode ser condensado e aprendido a partir de uma única "rotina". Para se referir à rotina, ele se utiliza de uma palavra diferente das que já vimos: 趟, tang, que quer dizer, literalmente, "viagem". Esta "viagem" ou rotina, por sua vez, subdivide-se (no caso, em seis). Ele poderia chamar cada subdivisão de "linha" ou "estrada", lu, entretanto, ele prefere o termo 節, jie, que quer dizer "parte" ou "seguimento" (no caso, da viagem...). Cada uma das seis partes abriga oito "técnicas" (術, shu), o que perfaz um total de quarenta e oito movimentos.

Outro exemplo de arte que também se utiliza bastante de "estradas" ou "linhas", lu, para a composição de exercícios educativos e rotinas é o Louva Deus, o Tanglangquan. Na escola onde comecei a estudar um pouco deste estilo, por exemplo, tínhamos um educativo nomeado Jiben Shilu (基本十路); isto é: dez linhas básicas. Cada uma destas linhas trazia uma sequência de técnicas com valor em si. Quando vistas em conjunto, elas apresentam uma visão geral de aspectos fundamentais do estilo. O exercício não chegava a ser um taolu, não precisa ser praticado em uma ordem padrão e nem do início ao fim, todas as "linhas". São exercícios, em tese, preparatórios para que o praticante possa se desenvolver tecnicamente, desde o início, focalizando a qualidade de cada movimento ou o entendimento (físico e mental) de cada princípio que o subjaz.



Em Louva Deus, alguns estilos também desenvolveram rotinas de
Tantui (彈腿). Neste vídeo, temos um exemplo de 十四路彈腿, um
Tantui de 14 "linhas" do estilo 七星螳螂 (Louva Deus 7 Estrelas). É
interessante que, nesta versão, as linhas não se limitam ao sentido
leste-oeste, mas vão também em outras direções, inclusive diagonais.

Por coincidência ao não, os dois exemplos fornecidos aqui como comparação vêm de estilos que nasceram nas vizinhanças da terra natal de Tantui. O Tanglangquan nasceu e se desenvolveu sobretudo na província de Shandong, a mesma em que nasceu o Tantui. O Bajiquan, por sua vez, embora tenha prosperado no sul da China e em Taiwan, teria nascido no norte, na província de Hebei (onde fica a capital, Pequim), fronteiriça à província de Shandong. Rotinas e educativos formados por "estradas" (lu) foram muito populares no início do século XX, quando diversos manuais sobre estilos e rotinas foram escritos, publicados e difundidos em academias, institutos e associações que cresciam pela China. Por meio deles, várias rotinas e estilos tornaram-se célebres. Em meio a isso, o Tantui, em diferentes versões, ganhou bastante visibilidade.

Passaremos, agora, para aquelas operações que o treinamento por "estradas" ou "linhas" enfatizam como método de treinamento. Muito do que traremos aqui são reflexões iniciais e interpretações a partir de estudos teóricos e práticos. Seria bastante salutar que praticantes de diversas escolas opinassem a respeito destas hipóteses e nos ajudassem a construir um entendimento mais adequado disso tudo. Vamos as tais "operações".

Primeira Operação - Memória:

É bastante recente, nas artes marciais asiáticas, a preocupação de realizar registros mais regulares na forma de textos ou imagens a respeito das técnicas e das rotinas. Existem manuais mais antigos, porém, até o final do século XIX, eles eram muito menos numerosos e circulavam em meios muito mais restritos do que se tornaram a partir da modernização/ocidentalização da China. Hoje, anotações em cadernos, vídeos e fotografias são alguns dos meios de registro muito usuais no cotidiano de aprendizagem de artes marciais. Porém, no passado mais distante (há 100, 150 anos), os suportes da memória das técnicas eram muito mais dependentes da oralidade e da corporeidade.

Em uma antiga postagem neste blog, já falamos sobre o 对联 (duilian). Trata-se de uma forma poética em que linhas de 5 ou 7 caracteres (ideogramas) são dispostas em pares opostos (conforme a dialética do yin e do yang), seguindo certos padrões tonais e semânticos.  Note a "coincidência": as rotinas ou exercícios por "linhas", lu, via de regra, compreendem seguimentos em número par: 6, 10, 12, 14... Será coincidência mesmo? Penso em outra hipótese: na tentativa de criar modelos facilmente memorizáveis, semelhantes àqueles da poesia oral. Isto se confirma quando percebemos que os "versos regulares" (forma poética desenvolvida desde a Dinastia Tang) são utilizados frequentemente para a composição de súmulas das rotinas de arte marcial. Dou um exemplo retirado de um manual de Shilu Tantui:

崑崙大山世界傳。名曰彈腿奧無邊。
頭路。衝掃似扁擔。
二路。十字人拉鑽。
三路。盖捶雙披打。
四路。轉磨生奇關。
五路。裁捶登來益。
六路。堪管封畢然。
七路。雙稱十字腿。
八路。庒跥如轉環。
九路。碰鎖重閃門。
十路。裁花如箭彈。
世人莫看式法單。多踢多練係根源。

Alguém que pratica exercícios de "linhas", lu, e conhece o nome de cada um dos seguimentos deve ter notado que a tradução nem sempre consegue ser literal daquela movimentação. Às vezes, chega a ser obscura, metafórica ou relacionada a apenas alguns dos movimentos presentes na sequência. Isso se dá porque aqueles nomes, muitas vezes, são versos. Aquelas palavras, muitas vezes, foram escolhidas pela sua sonoridade ou pela relação (fonética ou semântica) com algum outro "par" da "linha" ou "verso" anterior ou posterior. Para que serve isso? Serve como método mnemônico.

Também por este motivo, é possível perceber algumas regularidades em rotinas formadas por "estradas", lu. No Shier Tantui do Sistema Básico da Federação Mineira de Kung Fu Kuoshu, por exemplo, há um esquema nas primeiras linhas que é bem regular (mas se perde um pouco nas linhas finais). Este esquema é um padrão de iniciação dos movimentos entre as linhas ímpares (1, 3, 5...) e pares (2, 4, 6...) que também sugere ênfases ora em movimentos amplos típicos de "punho longo" (changquan, 長拳) ora em movimentos mais rápidos e contidos, típicos de duanda (短打).

Segunda Operação - Classificação e Análise:

Análise é um procedimento típico da racionalidade moderna. Em certo sentido, ela é estranha às práticas tradicionais de ensino-aprendizagem da China ou do Japão antes do processo de ocidentalização. Jigoro Kano conta uma história interessante em que ele pedia para o seu mestre de Ju Jutsu exlicar uma técnica de arremesso em diagonal (sumi-gaeshi). A explicação do seu professor resumia-se a aplicar repetidamente aquela técnica sobre ele. Depois de receber a técnica de novo e de novo, Jigoro Kano é mais explícito na interpelação: "pedi a ele que explicasse em detalhes, como puxar os braços, como posicionar as pernas, como abaixar o quadril, sem usar o waza em mim". Hoje em dia, isso que Jigoro Kano, com a sua cabeça já bastante ocidentalizada e intelectualizada, solicitava ao seu mestre é algo comum. O que ele pedia era para que aquela técnica fosse dividida e explicada pedacinho por pedacinho, descrita em cada detalhe para que, juntando-os, o estudante a pudesse compreender e executar. Isso é o que se chama de análise.

Nas ciências modernas, o microscópio é um dos principais
instrumentos idealizados para efetuar análises, pois permite
a observação detalhada das partes que compõem um organismo.

Quando, na China, as artes marciais começavam a se difundir publicamente, nas primeiras décadas do século XX, lá também se passava por um processo de modernização ou de ocidentalização das práticas educacionais. A racionalidade técnica e científica e os seus procedimentos, como os de análise, estavam em voga. O próprio Budo serviu de inspiração para modelos de "educação física nacional" na China, que dialogavam fortemente com as ginásticas ocidentais, como foi trabalhado em outras publicações deste blog. Ora, segundo uma racionalidade de tipo analítica, tomar um todo e dividi-lo em seguimentos é uma metodologia que faz total sentido. Por isso, as "linhas", lu, tornaram-se tão adequadas aos novos métodos de ensino de artes marciais.

Ao tomarmos cada linha isoladamente para praticar e observar os mínimos detalhes, o que procedemos é uma operação de análise. As linhas fornecem uma classificação de todos os elementos da forma em subconjuntos. Por meio dela, prestamos atenção nos detalhes das posturas estáticas e em movimento: angulações, transições, torções, contrações musculares, extensões, relaxamentos, respiração, sincronias, diacronias... Podemos subdividir os movimentos dentro de uma mesma linha e analisá-los minuciosamente, tanto quanto pudermos e conseguirmos. Trata-se de um modo sem dúvida formidável de operar correções finas na técnica e atenção localizada em aspectos a serem lapidados, aprimorados, treinados. A consciência de cada fragmento do todo torna-se altamente potencializada.

Terceira Operação - Síntese:

Síntese é a contraparte necessária da análise. Se a análise parte de uma fragmentação do todo para o estudo minucioso de cada detalhe, a síntese é a operação que re-coleciona estes pedaços e busca, no seu conjunto, fórmulas mais gerais de entendimento. Na síntese, revelam-se os princípios que subjazem na essência de cada "linha" e, nela, de cada técnica ou movimento em isolado.

No mesmo manual do qual retiramos a "canção" ou o "poema" do Shilu Tantui, o autor explica um aspecto importante da relação entre a parte e o todo no Tantui:
一本書。所以用各路分開。單獨演習。使學者。專一練習不致蹈博而不專之弊。(各路練習精熟後。均可連續演習。)
Tradução de Paul Brennan – "In this book, the reason the lines are divided up into isolated drills is to induce you to have a concentrated practice rather than making the error of turning it into an unfocused dance. (Once you have become skillful with each line, you may of course connect them all into a continuous practice.)"
Traduzindo para o português: "Neste livro, a razão pela qual as linhas são divididas em treinos isolados é para induzi-lo a ter uma prática concentrada, ao invés de cometer o erro de transformá-la em uma dança sem foco. (Uma vez que você se torne hábil em cada linha, você poderá, claro, conectá-las em uma prática contínua)".

Esta recomendação do Mestre Wu Zhiqing resume o processo da síntese. Não se deve partir do todo desde o início, pois não haveria foco em cada parte e a prática viraria só uma coreografia sem sentido. O todo só poderia ser formado como conexão das partes após o domínio adequado de cada uma delas em isolado. A síntese, o todo, é muito importante, mas como uma dialética entre as diferentes partes e não como um bloco homogêneo. Este método das linhas sugere este tipo de atenção. Por isso a admoestação final do poema, após detalhar cada linha: 世人莫看式法單。多踢多練係根源 ("as pessoas comuns não notam as posturas individuais, apenas reparando naquilo o que parece: mais chutes, mais práticas"). Ou seja, no final, olhando de fora, tudo parece uma coisa só, mas, na verdade, é um conjunto harmônico de individualidades.

Considerações Finais:

As operações não param por aqui. Há outras que exploraremos em textos posteriores, como a experimentação e a aplicação. Contudo, elas são mais específicas e podem ter desdobramentos que tornariam esta publicação longa demais. Por hora, como desfecho, é importante recapitular que o Tantui, como sequência (não como estilo completo), é um conjunto organizado de linhas de técnicas marciais (quan fa tao lu). Sua forma de organização - regular e facilmente memorizável - sugere um percurso progressivo, parte a parte (análise), minuciosamente perseguido rumo a compreensão geral (síntese).

Leia a Parte 3: Experimentação e Aplicação

Bibliografia:

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