Desde que comecei a trabalhar com estes projetos que articulam artes marciais e humanidades em educação integral, criei (e só agora inicio a perceber) uma fissura em minha identidade como professor. Acostumado com o universo acadêmico do ensino superior, sobretudo, com os âmbitos da pesquisa, da orientação e do ensino de pós-graduação, as novas atividades colocaram-me diante de um terreno tão novo que não raro chego questionar a sua própria legitimidade, tamanha a estranheza que ainda me provoca. Frequentemente pergunto-me: "tenho formação para o que estou fazendo?" Estou fazendo um trabalho que seja realmente meu?" Será este o lugar certo para desenvolver o que tenho proposto?" Durante muitos anos, construí, como auto-imagem profissional, a figura do historiador erudito, estudioso dos séculos XVI e XVII, formulador de perguntas e inventor de respostas bastante especializadas. Olho para o ponto onde me encontro e não reconheço, nele, sequer vestígio daquele scholar.
Eu sabia que queria sair daquele personagem quando me coloquei noutra direção. Aproximar-me do ambiente da educação escolar era uma das prioridades. Outra era trazer mais para perto da minha vida profissional um "passatempo" que se tornava cada vez mais sério para mim, que me mobilizava física e intelectualmente: a prática do Kung Fu e do Tai Chi Chuan. Ao fazer isso, movi-me na direção de outros dois modelos de "magistério": o professor da educação básica e o professor de artes marciais. Tanto um quanto o outro, ainda muito misteriosos para mim.
Em um sábado de manhã, em 2016, fotografando a minha própria sombra em frente à E.E. Sebastião Dias Ferraz, em Tupaciguara-MG, antes da escola abrir para aulas do nosso projeto. |
O professor de arte marcial
Entre os participantes do projeto, sou reconhecido, primeiramente, como professor de Kung Fu. Ainda que me associem muito facilmente à universidade (UFU), não é como professor de história que eles me veem mais habitualmente lá aos sábados. Além disso, a Federação Mineira de Kung Fu Kuoshu é física e simbolicamente muito mais presente nos trabalhos do que a Universidade Federal de Uberlândia. O projeto é visto por eles, de modo geral, como aulas de Kung Fu, mesmo que envolva as rodas de conversa, os estudos e leituras propostos, o espaço de discussão e troca de informações sobre a China em rede social.
Este reconhecimento não é ruim nem casual. Deliberadamente, pretendemos inserir a noção de que o aprendizado de Kung Fu, dependendo de como é conduzido, pode chegar a fins muitos semelhantes (e até superar, com maior sucesso) àqueles ligados aos objetivos da educação básica e, nela, dos estudos de humanidades ou de disciplinas como a História, a Geografia, a Sociologia e a Filosofia. O que ele impõe é uma grande novidade para mim e, com ela, a necessidade de fazer pontes entre modos de conhecimento gerados em instituições e meios culturais com regras, protocolos e práticas muito diferentes entre si: a universidade, a escola, o Dao Chang...
O professor Universitário
O lugar do professor universitário vale-me pouquíssimo como prática pedagógica no projeto de Tupaciguara. Porém, vale muito para o planejamento e a preparação das suas atividades. Ele é fundamental para a escolha de temáticas e modos de abordá-las junto aos participantes. Embora busque respeitar os interesses deles e suas inclinações, procuro elaborar um percurso para fora do "si mesmo" e que busque o outro para além dos seus estereótipos do senso comum. O cuidado investigativo a respeito das artes marciais e de suas culturas associadas é um diferencial do projeto em relação ao panorama médio do ensino de artes marciais. Nele, não nos contentamos com a superficialidade de contato com o universo cultural chinês (ele próprio complexo e diversificado, diga-se), nos agarrando a modelos prontos e a pré-conceitos. Pretendemos problematizar, investigar, descobrir, como verdadeiros amantes da estranheza, um lugar desconhecido. O lugar do professor universitário e do historiador profissional neste projeto é um lugar da pesquisa.
O professor do ensino básico
Dizer que a pesquisa é um lugar para o professor universitário no projeto não significa o mesmo que excluir o professor do ensino básico deste mesmo espaço. Aliás, engana-se aquele que pensa que o ensino é o ponto de encontro maior entre o professor de universidades e o de escolas. Nosso maior denominador comum é a pesquisa. Ela é a atividade em que nos tornamos mais próximos uns dos outros. Isso porque, enquanto o ensino impõe particularidades muito grandes relacionadas ao público; em pesquisa, o público praticamente só interfere em alguns momentos, sobretudo, naqueles ligados à divulgação dos resultados (o que já entra, por sinal, na maioria das vezes, no âmbito do ensino...).
A face do professor da educação básica não me faz falta nem para o "ensino de kung fu", vamos assim dizer, nem para a pesquisa envolvida na preparação e no planejamento das atividades. Porém, talvez seja a face mais necessária em um projeto como o de Tupaciguara. Em primeiro lugar, pelas próprias características do lugar: nós somos abrigados por uma instituição escolar e temos como público majoritário a sua própria comunidade (professores e alunos). Em segundo lugar e mais importante, a produção de conhecimento que visamos construir (coletivamente) no projeto visa a formação do ser humano em desenvolvimento. Embora sejamos seres humanos em desenvolvimento desde o nascimento até a cova, é a educação básica escolar que, no ocidente moderno, reservou para si a tematização e a intervenção neste processo.
A produção do conhecimento que buscamos desenvolver visa a edificação de um saber generalista (porém, não superficial), transdisciplinar (porém, não sem rigor) e com sentido prático (porém, não puramente técnico). Ele mobiliza disciplinas (mas não se prende nos seus limites), ele vai aos detalhes (mas não se fixa neles); apropria-se criativamente dos seus produtos (mas não se preocupa em os instrumentalizar). Também se trata de um conhecimento que não vale por si mesmo, mas possui um valor social, uma vez que se propõe a colaborar para a educação da consciência crítica, das práticas cidadãs, da sensibilidade humana e da disposição ética dos sujeitos em desenvolvimento. Em vários sentidos, estes objetivos são compartilhados com aqueles dos professores de "caminhos marciais", mas não necessariamente presentes no mundo das "artes marciais" e, tampouco, apresentam-se com clareza em "mestres" sem uma devida formação.
Qualificações
Cada um desses "três professores" são como "três joias" ou "três tesouros", para utilizarmos uma metáfora tão comum em tradições religiosas e filosóficas da China. Se desenvolvermos os três em conjunto, chegaremos próximos do que pretendemos em termos de desenvolvimento e inovação.
O professor de "artes marciais" beneficia-se do "acadêmico" ao sair da superficialidade de compreensão do universo cultural do outro e, assim, das incompreensões não raramente pervertidas, que instrumentalizam uma outra cultura para objetivos exteriores a ela. Beneficia-se do "educador escolar" ao situar-se nos propósitos de formação do sujeito em desenvolvimento conforme as demandas e desafios do nosso espaço-tempo e ao utilizar-se dos seus meios para isso.
O professor universitário beneficia-se do professor de "arte marcial" ao poder dar corporalidade, materialidade a conceitos e noções. Ao poder experimentar, no próprio corpo, noções filosóficas do outro, as marcas de suas instituições presentes e passadas, o registro deixado por etnias e classes sociais de uma outra "civilização", as analogias entre os movimentos e uma outra paisagem... Beneficia-se do "educador escolar" para trazer esta experiência para a formação geral de outras pessoas, comunicando-a de forma acessível, porém, sem banalizá-la, a públicos diferentes de sujeitos em desenvolvimento.
O "educador básico" beneficia-se do "artista marcial" para introduzir formas contextualizadas de aprendizagem - integradoras de corpo e mente, trabalho e diversão - e de convívio entre educadores e educandos nas suas práticas pedagógicas. Beneficia-se do "acadêmico" para não permitir que a bem vinda generalidade do tratamento do universo cultural chinês desemboque na superficialidade e na repetição de conteúdos, refinando continuamente seu repertório de erudição e, principalmente, a sua capacidade de problematizá-lo, desestabilizá-lo e de procurar/descobrir novos e surpreendentes elementos a serem tematizados.
Enfim, estamos muito longe disso tudo. Mas dispostos a seguir a caminho. Há muito a fazer e mais a ainda a me acostumar.
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