Introdução
Em nossos projetos, a prática da arte marcial está sempre à serviço da educação integral e, neste sentido, são frequentes os diálogos com as disciplinas da educação escolar. Nosso foco principal são as disciplinas de humanidades (História, Geografia, Filosofia, Sociologia), entretanto, sob ótica interdisciplinar e privilegiando eixos temáticos transversais.Ao trabalhar com estudantes do ensino médio, notadamente no projeto na Escola Estadual Sebastião Dias Ferraz, em Tupaciguara, várias vezes senti-me aguçado a arriscar interpretações dos movimentos do kung fu a partir de conceitos básicos de Física e de Matemática. Elas são perfeitamente possíveis, mesmo para alguém tão pouco treinado nestas disciplinas quanto eu. Nunca levei isso muito adiante, pois precisaria de ajuda específica. Teria arriscado caso eu tivesse alguém da área no grupo que pudesse me auxiliar na explicação. Os professores participantes do projeto são coincidentemente todos da área de humanidades.
Não é nenhuma novidade a incorporação de conceitos científicos ("ocidentais" ou "modernos") nas artes marciais. Desde o século XIX que isso vem sendo promovido, tanto no Japão, se pensarmos no próprio Judo, quanto na China, se pensarmos no desenvolvimento do que os chineses chamavam de Tiyu (体育). O desenvolvimento do "intelecto" (zhi, 智) é um dos objetivos mais centrais das artes marciais como sistemas de educação integral. No Zhong Wudao (中武道) do Mestre Lin Zhong Yuan, no qual nos inspiramos em nossas propostas, ela se realiza na fusão entre o que o mestre chama de wen (文) e wu (武). Esta "cultura" (wen, 文) aparece de modo especial em um dos cinco aspectos do seu treinamento: o wuxue (武學 ou 武学), "estudo" ou "ciência marcial". Neste estudo, de acordo com o Mestre Lin, tudo o que ajuda a compreender as artes marciais e o seu universo amplo deve ser estudado, o que inclui a ciência e a educação física ocidentais.
O mito da ciência universal
No sentido exposto, trata-se de um pré-conceito difundido no senso comum afirmar que as artes marciais tradicionais são anti ou pseudo-científicas, que os mestres mais antigos rechaçam qualquer aproximação com a ciência e que as teorias em que as artes marciais se fundamentam são fantasias místicas, fórmulas mágicas ou derivações do pensamento religioso. Assim, há muita gente que se acha "tradicional" ao se colocar contrária a dar entendimento às artes marciais com base na ciência ocidental moderna. Inversamente, há aqueles que militam pelo abandono do que julgam "supersticioso" nas artes marciais, reduzindo-as a fenômenos a serem compreendidos no âmbito exclusivo das ciências modernas.Eu pretendo abordar (e refutar) mais o pensamento do segundo grupo: daquelas pessoas que apostam na Ciência (com "C" maiúsculo) como a redentora das "fantasias marciais". Há alguns pressupostos na base do que elas defendem. Vamos a eles:
1. "A ciência é universal". Há uma confusão neste raciocínio. Sim: de fato, parece-me razoável supor que os objetos analisados pelas "ciências da natureza" sejam "fenômenos universais". Isso quer dizer, por exemplo, que a força gravitacional da terra independe de como cada civilização compreenda ou perceba os seus efeitos. Porém, o objeto ser universal não é o mesmo que afirmar que só seja possível compreendê-lo por meio de uma única e imutável teoria. Esta é uma crença cientificista já bastante questionada no meio acadêmico. A pá de cal neste tipo de ingenuidade foi dada em meados do século XX. Autores como Thomas Kuhn (faça download de sua obra mais conhecida aqui) demonstraram que as ciências possuem historicidade, que seus paradigmas, por mais que eficazes por algum período, transformam-se. A ciência não é um efeito direto dos objetos que estuda, mas envolve mediações. As ciências desenvolvem-se em sociedades, com suas instituições, linguagens e culturas próprias. Por mais que o seu auditório seja pretensamente toda criatura racional, sua verossimilhança depende de acordos de sentido, definidos pela comunidade (científica);
2. "Sendo a ciência universal, não há ciência dos chineses, dos japoneses ou dos 'ocidentais', mas apenas 'ciência'." Este raciocínio, decorrente do primeiro, é o efeito etnocêntrico da racionalidade moderna. Por meio dele, fora dos paradigmas aceitos pelo estado momentâneo da comunidade científica, só o que pode existir é superstição, pensamento mágico, pseudo-ciência, "empiria" e por aí vai... Não há, assim, "ciência do outro". Teorias formuladas em outras culturas, sociedades e civilizações são sempre imperfeitas ou falsas. Somente são tomadas como válidas quando encontram similaridades com a ciência moderna, quando são, de algum modo, familiares. Fora isso, são incompletas, falhas, contaminadas pelo pensamento pré-racional...
3. "A ciência traz evolução e progresso". Este é o terceiro e último passo que queremos abordar do preconceito científico: o seu caráter "expansionista". Ao entender que não existe "ciência do outro", mas "ciência universal", vigora, no senso comum, uma tese, formulada por volta do século XVIII, segundo a qual levar ciência para onde ela "não existe" é o mesmo que "civilizar". Em miúdos, para não entrar muito nos meandros da conversa, foi esta ideologia que fundamentou em grande medida os imperialismos inglês e francês (e outros) na África e na Ásia ao longo do século XIX. Taxados como "atrasados", africanos, americanos, asiáticos e povos nativos da Oceania foram infantilizados e ridicularizados. Suas "visões de mundo" foram tidas como ultrapassadas e inferiores. Era "fardo do homem branco" levar luzes para aquela "gente ignorante e bárbara". O movimento romântico, ao construir o seu orientalismo, resgatou a positividade de formas do pensamento asiático; porém, naquele momento, já assumido como irracional, místico, mágico...
Atualmente, quando muitas das artes marciais tornaram-se esportes de alto rendimento, envolvendo competições entre países em escala global, a ciência (moderna ocidental) tornou-se língua franca. Como tirar maior rendimento dos atletas? Como aumentar a força, a flexibilidade, a resistência, a efetividade das técnicas? Como compreender a mecânica dos movimentos no corpo humano e potencializá-la? Como elevar aquele salto, como tornar aquele chute mais rápido, aquele soco mais forte, aquela chave de braço mais eficaz? Para todas essas perguntas e muitas outras é possível investigar conforme métodos científicos e dar respostas muito eficientes, a serem testadas nas competições. Não há nada de mal nisso. O problema é quando isto se torna imperativo e universal. Quando esta passa a ser a "ciência do esporte" e todo o resto das artes marciais é jogado no porão das frivolidades.
Experiência de caso: a "ciência chinesa" retorna
No ano passado (2016), durante várias ocupações de escolas que aconteceram como resposta de movimentos estudantis contra a Reforma do Ensino Médio, desenvolvi uma atividade pensada em função das questões levantadas acima. Eu tinha acabado de voltar de um seminário sobre Leibniz e o pensamento chinês, realizado na Unicamp, durante o qual eu havia comprado o livro "Escritos de Leibniz sobre a China", organizado pelo professor Antônio Florentino Neto. Dentre os escritos selecionados para o livro, chamava-me a atenção uma troca de correspondências entre Leibniz e o missionário jesuíta Pe. Joachim Bouvet por volta dos primeiros anos do século XVIII.
Na primeira destas cartas, buscando a boa vontade do padre, de modo a conseguir as informações que precisava, Leibniz explicou a teoria matemática que ele estava a desenvolver: uma teoria que, segundo ele, poderia ser extremamente útil à missão, inclusive para provar a existência de um único Deus, criador de todas as coisas! Tratava-se da teoria da Progressão Binária ou da Progressão Geométrica Dupla.
Os missionários jesuítas na China eram, majoritariamente, homens de ciência, com sólida formação matemática e Leibniz sabia disso. Na corte imperial da Dinastia Qing, os jesuítas gozavam da reputação de sábios, colaborando em assuntos astronômicos, cartográficos e de infraestrutura, por exemplo. Com os sábios chineses, estes jesuítas aprenderam sobre os clássicos da sua tradição filosófica, científica e literária.
A resposta do Pe. Bouvet a Leibniz foi muito interessante. Dizendo-se muito impressionado pela descoberta matemática do filósofo, ele partiu para demonstrar que aquela teoria já era conhecida pelos chineses desde os temos de "Fohi" (Fuxi, 伏羲), sendo uma teoria milenar, conforme acreditava. Tratava-se da teoria dos gua (卦), ou "coua" (conforme grafado na carta). Pe. Bouvet demonstrou, partindo do que ele havia aprendido do seu contato com o Neoconfucionismo, que os gua do "Clássico das Mutações", o I Ching ou Yijing (易經), podem ser vistos como uma progressão geométrica dupla, que decorreria da análise do movimento circular a partir das polaridades yin e yang, que poderiam ser traduzidas, numericamente, por 0 e 1...
Assim, tive a ideia de explorar, em uma oficina para alunos do ensino médio, a leitura geométrica em transições de mabu para gongbu presentes no quantao xibuquan, do Sistema Básico de Kung Fu Kuoshu da FMKK. Desenvolvi a oficina na Escola Estadual René Giannetti, em Uberlândia, aproveitando a troca de correspondências entre Leibniz e o Pe. Bouvet, informações sobre o clássico Taiji Tushuo (太極圖說), escrito na Era Song pelo sábio Zhou Dunyi, e a matemática envolvida na formação dos gua do Yijing. Mostrei como a teoria poderia ajudar a compreender a movimentação básica do kung fu e como o vocabulário do yin/yang poderia ser compatível com noções matemáticas da racionalidade moderna (presente em Leibniz, por exemplo).
Foi uma oficina de Kung Fu (assim as pessoas recordam-se dela), mas o que exploramos naquela manhã foi além da arte marcial em si, envolvendo estudo da história, da filosofia e da matemática em perspectiva intercultural. Tal perspectiva busca romper com a visão arrogante e simplista de que tudo se torna ouro (apenas) pelo toque de midas da ciência moderna. Há sim a ciência dos outros. O I Ching, muitas vezes visto como um "livro mágico", encantado pelo imaginário new age, é um exemplo de que a "magia", a "religião" e a "ciência" foram separadas por fronteiras artificiais, nem sempre intransponíveis, nem sempre necessárias. O desafio não é modernizar as artes marciais por meio de ciência, mas utilizar as artes marciais para olharmos a ciência de um modo mais atual, mais moderno, mais intercultural.
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